Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 11
Capítulo 11




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A chuva volta, a chuva sempre volta. E ela voltou agora. O apartamento está todo fechado, tentando se proteger dos raios, e nossa programação foi toda adiada. Sem passeios, sem lugares ambientados ou guardas da rainha. Estou sentada no sofá modular, Thomas está deitado com a cabeça no meu colo. Mexo suavemente nas mechas de cabelos desfeitas e onduladas. Frank está deitado no chão, ao lado da lareira, com os pés para cima no outro lado do sofá modular. Estranhamente, o apartamento tem uma lareira de metal circular bem no centro da sala, com os sofás modulares fazendo um U ao redor do objeto. Deve fazer bastante frio. A lareira está ligada e o fogo é azul e baixo, proveniente de um gás natural. Eu estou com meus olhos piromaníacos presos nas chamas, mesmo que meus dedos acariciem as mechas de Thomas. Pareço hipnotizada pelo azul da chama ou pelo calor exalado da lareira cromada. Meus olhos não piscam.

– Tem alguém aí? – Pergunta Thomas. Não percebo. – Oi, tem alguém aí?

Olho para os olhos dele, os verdes vidrados, e dou um sorriso suave.

– Oi. – Minha voz sai baixa e meu sorriso não desfaz com os movimentos de minha boca.

– Meu Deus, não faz mais isso.

– O que?

– Esse sorriso com essa voz. Sério, não faz porque... Meu Deus.

– Perdão.

Ouço um gargalhar baixo, quase inaudível. Thomas vira os olhos para Frank e percebemos que ele ri. Ri quase como se nós estivéssemos numa cena de filme e ele estivesse se divertindo. Se diverte como uma criança com o sorriso estampado no rosto.

– Vocês são uma comédia romântica.

Volto meus olhos para o fogo, ignoro a conversa que se segue. Thomas fala algumas coisas sobre mim que, sinceramente, não faço questão de entender e Frank parece me olhar toda hora aguardando a parte que eu protestava ou me explicava. Eu não o faço. Não tiro os olhos das chamas, não me defendo, só sorrio e pisco de vez em quando. Então um raio rasga o céu com trovões e relâmpagos e eu vejo Frank estremecer como uma tartaruga voltando para seu casco. Ele encolhe as pernas e os braços, tirando as pernas de cima do sofá, e quase abraça o tapete embaixo dele. Sinto vontade de rir, mas não o faço.

– Frank, a noite vai ser de trovoadas. É melhor, você sabe, pegar os tampões.

– Eu não uso tampões, Thomas. Não seja idiota.

– Você vai passar essa noite aqui? A chuva tá forte, pode ser arriscado.

– Eu vou para casa.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Absoluta?

Um trovão ruge. Frank encolhe de novo.

– Vou ficar.

Agora eu estou observando eles. Qual a idade de Frank? Deve ser alguns anos mais novo que Thomas. Bem, Thomas está entrando na casa dos trinta, então posso supor que, talvez, a minha idade. Ou, talvez, pouca coisa mais novo. Um ano ou dois. De qualquer forma, ele é um homem adulto. Devia ter abandonado os medos de criança. Um avião se materializa em minha cabeça e eu vejo a ironia que minha mente me prega. Nunca abandonei o meu, afinal.

– Vou ajeitar o seu quarto. Vou pegar os tampões, tenho dois, daquela vez que você dormiu aqui.

– Eu não...

– Está tudo bem. – Eu digo. – Os tampões são bons para evitar a entrada de insetos nos ouvidos. Tenho a certeza de que você os usa só para isso, não é mesmo? Acho até que vou aderir. Thomas, pode um para mim, por favor?

– Quando sua bondade acaba? – Pergunta Thomas, o sorriso visível, parece agradecido, mas também divertido, como se ouvisse uma piada interessante. Eu sorrio. Não vou usar os tampões, mas nossos medos são vertentes catastróficas que, se explorados, viram um enorme furacão nas nossas mentes. Devoradores de coragem e certezas. Então a gente finge, por um momento ou dois, que eles não existem e tudo fica bem. E tudo passa. Dormir enquanto a lata de metal flutua, orar enquanto o câncer consome o corpo enfermo de alguém... Sempre buscamos um jeito de recalcar nossos medos porque eles nos destroem.

Quando Thomas volta, com tampões nas mãos, quem sorri sou eu. Ele se senta do meu lado e joga os tufos no Frank e ele agradece.

– Frank tem medo de trovões desde que tinha quatro anos. Minha mãe não deixava ele correr para a cama dela então ele corria para a minha. Você sabe, o irmão mais velho que pode te salvar de qualquer coisa. No fim ele dormia.

Frank me olha, esperando que eu desvie a conversa.

– Quando eu tinha quatro anos eu tinha medo de morrer sozinha. Eu sei, não parece medo de criança, mas eu era filha única e quando eu imaginava minha vida sem meus pais, parecia que eu estava sozinha.

– E quando foi que você superou isso? – Pergunta Frank.

– Quando meu irmão nasceu.

– Irmão? – Indaga Thomas. Ele parece duvidar de mim.

– É. Bem, ele nasceu quando eu tinha sete anos, então eu posso dizer que foi uma surpresa. Pelo menos para mim. Mas, para meus pais, foi tudo exatamente como foi planejado. Um menino que deveria nascer no primeiro dia de inverno. Demorou tanto porque minha mãe já não estava numa idade boa para isso, mas os métodos do médico deram certo.

– E por que ele não foi no nosso casamento?

– Ele tem alguns problemas com meus pais. E eu não falo com ele a algum tempo.

Eu tinha medo de morrer sozinha por não ter irmãos e, quando ele nasceu, sumiu. Quando fez dezoito anos saiu de casa e nunca mais voltou. Nunca mais deu notícia. Eu não julgo e sei como deve ter sido difícil aguentar meus pais todos aqueles anos. Eles não aceitavam o fato de Pedro ser gay. Não aceitavam o fato do garoto não gostar de sorvete, de não gostar de esportes, de não gostar de economia. Não aceitavam o fato do garoto querer ser astro do rock, o fato do garoto gostar de música e filosofia. Mas eu aceitava. Eu ajudava, até. Acordava de noite e ia no quarto dele só para ouvir ele falar sobre metafísica e psicanálise. Só para ouvi-lo falar. Eu gostava de fingir amá-lo. E então ele se foi.

– E onde ele mora? No Brasil?

– Não. Na Austrália. Mudou-se para lá quando fez dezoito, ele estuda bastante, você sabe. Não tem muito tempo livre. Nem parece ser da família.

– Eu pensava que você era filha única, Estela. – Diz Thomas. Todos pensam. Mas eu fiquei bastante feliz no dia em que Pedro foi embora e que eu vi meus pais morrerem inúmeras vezes por não saberem notícias. Eu fiquei feliz. Eu via o sofrimento e queria dizer que aquele sofrimento todo tinha sido cultivado por eles mesmos. Que aquele sofrimento todo era falta de compreensão, falta de amor. Mas aí eu descobri que o amor, amor mesmo, não existe, e comecei a me culpar também. Talvez fingir amá-lo tenha ajudado a fazê-lo ir embora. Mas vê-lo ir embora foi bom, mesmo que meu medo de morrer sozinha pudesse reaparecer, porque eu já não aguentava mais encontrá-lo semimorto no quarto. Eu não aguentava mais abrir a porta do banheiro e ver sangue e bisturi, e ver caixas de comprimidos, e ver inseticidas. Eu não aguentava mais abrir as portas e sentir o cheiro da morte. E fingir não sentir-me mal por isso. E fingir não sentir.

– Não sou. Mas finge que sim, porque nunca vamos vê-lo, de qualquer maneira.

– Por que não? Só porque ele é ocupado?

– Bem, também.

– E por que mais?

– Porque ele tem problemas com meus pais.

– Mas não com você?

– Comigo nenhum. Até hoje, nenhum.

– Então você pode convidá-lo para cá, querida.

– É, eu posso, mas não tenho mais o número dele. Perdi. Estou sem falar com ele a quatro meses. Ele nem sabe que me casei. – Eu sorrio. Não quero parecer frágil diante isso porque já superei. Só tinha medo mesmo era de ser a pessoa a encontrar o cadáver no quarto e ter que ligar para os bombeiros. Só tinha medo mesmo de ser a pessoa a encontrar. Mas agora não tenho mais. Agora eu estou casada. Viajei duas vezes em um único mês na lata de metal. Estou tão invencível quanto nunca.


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