Noites de Um Século escrita por Dead Coyote


Capítulo 5
Capítulo 5 - Patric




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5- Patric

O sol atravessava a janela, uma luz fraca abafada pela neblina que encobria a manhã da cidadela. Batidas insistentes na porta acordaram o homem. Aquelas batidas pareciam estar dentro de sua cabeça, como todos os estranhos sons da noite que permaneciam em sua mente martelando junto com a enxaqueca. Abre os olhos, meio tonto. A febre ainda o fustigava fazendo-o suar frio, mas o corpo parecia recobrar aos poucos a vida. As batidas continuavam, mas ninguém dizia nada.

Tenta se levantar. Equilibra-se, apoiado na cama. Não arrisca caminhar até a porta.

“Quem é?” pergunta, mas sem resposta. Somente as batidas cessam por um momento, para depois recomeçarem.

Era dia, não deveria ser Ivan. “Quem está aí?” pergunta de novo, começando a ficar incomodado, preocupado. Aquelas batidas teimando, causando-lhe agonia, ansiedade. Tenta se levantar novamente. De pé, caminha com dificuldade até a porta. A pessoa estava dentro de sua casa, só não entrou no quarto, mas a porta estava destrancada. “Seja quem for, o que quer aqui? Como entrou em minha casa?” a voz estava fraca, mas forçava para que saísse mais alta. Segura a porta procurando a chave ao redor. Não acha.

“Senhor... posso entrar?” Era uma voz de criança. Um menino talvez. “Senhor?”

Patric não responde. A criança tenta abrir, mas ao sentir que o homem impede, ela não força.

Ambos permanecem em silêncio. Do lado de fora, ninguém bate ou tenta abrir a porta, Patric nem mesmo sabia se ainda teria alguém do lado oposto. Fica preocupado. Apoiando-se na parede pra não cair, sentindo as pernas fracas, ele abre a porta devagar.

O garoto estava lá, parado, parecia confuso pensando como agir. Olha para Patric.

“Senhor, vim te ajudar.”

Falando isso, a criança entra no quarto com cautela, olhando para Patric a todo momento. O homem também a observava. Era um menino, novo, não deveria ter mais que 12 anos. Cabelos castanhos claros, desbotados, caindo sobre os olhos até o meio do rosto. Aparentava-se pálido, usando um macacão sujo e desgastado. Deveria ser filho de pessoas humildes. Mas como entrou na casa? Trazia nas mãos uma bandeja com pães frescos, uma garrafa de leite de cabra e algumas frutas. O garoto viu que Patric investigava a bandeja com curiosidade.

“É para o senhor. Na cozinha tem um pouco de carne e caldo que vou esquentar se o senhor quiser.”

Colocando a bandeja sobre a cômoda, vira-se para Patric, estendendo a mão.

“Aqui. São as chaves. Eu fechei a porta da frente.”

O homem pega a chave com força da mão da criança. Olhava-o com desconfiança. Quem era aquele menino que aparecera ali de repente?

“Quem é você?” Patric tentava firmar-se de pé. “Como tem essa chave? Foi Ivan que te mandou aqui?”

Ivan. Agora se lembrava. Ele foi visitá-lo ontem à noite. Mas não se lembra do vampiro ter saído. Provavelmente adormeceu e não viu quando o outro deixou o quarto. Mas, e aquele menino?

“Eu... eu não sei, senhor. Coma alguma coisa. Você deve estar muito doente, não deveria se esforçar. Eu disse que vou cuidar do senhor e...”

“Não!” Patric o segura pelo braço quando ele ia pegar a garrafa de leite. “Não antes de você me dizer quem é. Se não me disser então vá embora!”

“Eu... Senhor, beba um pouco de...”

“Diga!”

“Ele disse que eu não podia falar... por favor, senhor. Se o senhor piorar ele vai me culpar e eu não quero...”

O menino parou de falar. Parecia confuso e assustado. Largou a garrafa na cômoda e correu para a porta do quarto. Mas antes que tomasse o corredor Patric o interrompeu.

“Ei! Garoto, volte aqui.” O ruivo chega até a porta, encostando na parede para se equilibrar. “Só me dia uma coisa. A pessoa que te mandou aqui era um homem alto, cabelos escuros, compridos, e...”

“Não posso dizer senhor.” Ele abaixa a cabeça antes de responder, sem retornar o olhar para o homem, como se estivesse com medo. Patric suspira fundo e volta para a cama. Senta-se e olha para o menino que se aproximava devagar da porta.

“Pare de me chamar de senhor, meu nome é Patric. E você, qual seu nome?”

O menino não responde. Continua olhando para o chão.

“humf...Então foi Ivan que te mandou aqui.” O garoto levanta o rosto para olhar Patric, e novamente volta à posição anterior. “Que seja. Me de um pouco de leite.” Ele ia falando como que para testar o garoto. Em algum momento ele teria que falar algo mais do que apenas lhe oferecer cuidados. A criança corre até o móvel, toma a garrafa e enche um copo. Pega também um pão, levando até a cama para Patric.

Enquanto bebia o leite, estudava o menino, tentando recordar se já o vira por ali. Ele olhava de volta para o homem, como um cão que esperava que o dono jogasse os ossos do frango ou o mandasse embora dali, sentado a um canto do quarto, no chão.

“Pode pegar algo se quiser. E sente-se naquela cadeira. Não precisa ficar no chão.”

“Mas é para o senhor... Eu não deveria...”

“Vamos. Aceite. Eu não consigo comer com alguém olhando.” O menino obedece, constrangido. Parte um pequeno pedaço do pão e come devagar, encolhido, com os pés em cima da cadeira estofada. A cabeça de Patric voltava a doer. Tinha se esquecido da febre até agora. O menino oferece uma fruta e ele aceita. Come e deita-se para dormir. Talvez assim a cabeça parasse de incomodar um pouco.

O dia vai passando. Patric de vez em quando acordava, comia mais um pouco e tentava conversar com a criança. Mas esta estava cada vez mais calada, à medida que o homem tentava perguntar sobre Ivan. Ao fim da tarde levantou-se e tomou um banho. Sentia-se melhor e a febre parecia passar. O suor frio deixou de umedecer-lhe a face, somente a cabeça continuava a doer, porém bem mais discretamente que podia até esquecê-la por vezes. Quando saiu do banho, o menino trouxe-lhe uma tigela com um caldo grosso de legumes e carne que Patric comeu com vontade. Não tinha reparado que estava com tanta fome.

Trocou a roupa de cama e deu uma coberta para o menino, que cochilava na cadeira. Recostou na cabeceira da cama e respirou fundo. Tentou relembrar o que Ivan lhe disse na noite anterior, pegou o velho caderninho na gaveta do criado, ao lado da cama, e começou a escrever. Escrevia o que vinha na sua mente. Palavras soltas e frases perdidas no meio de esboços do rosto do vampiro, borrado de nanquim. As pálpebras pesavam, começava a anoitecer. Colocou o caderno de lado e fechou os olhos.

...

“Eu disse para não escrever nada sobre mim.”

Acorda. O menino ainda dormia enroscado sobre a cadeira, como um gato. Sentiu um peso na cama. Vira-se para ver Ivan deitado ao seu lado. Estava escuro e a pouca luz do quarto mal permitia a Patric identificar o contorno do vampiro, que segurava em uma das mãos o caderno velho. Mas o vampiro podia enxergar bem durante a noite. Conseguia ler aquelas poucas palavras tão bem à pouca luz como se fosse o mais claro dos dias. O humano não falou nada, só o olhava.

“Ele cuidou bem de você?”

“Então foi mesmo você que o mandou?”

“Achou que ele estaria aqui como? Por vontade própria? Sim, fui eu que o mandei. E mandei também que não falasse nada a você.”

“Por quê?”

“Fiquei preocupado. Você não tinha nada em sua cozinha. Mas ele não precisava dizer nada. Aliás, lembro-me que tinha uma criada. O que aconteceu com ela?”

“Mandei-a embora depois da morte de minha mãe. Não sei pra onde foi.”

Fez-se então um silêncio. Por um instante Patric havia esquecido que Ivan era o responsável pela morte de sua mãe. Nesse momento, suspirou fundo e evitou encarar o vampiro, que logo compreendeu o pensamento que passou pelo outro.

Ivan divertia-se com aquela situação e esperava a reação do homem.

Patric permaneceu em silêncio por um tempo. Então se levantou e tirou o caderno das mãos do vampiro, que ainda folheava, mas apenas por fazê-lo, pois já nem olhava para as páginas que passava. Ao virar-se na cama vê que o garoto já tava acordado e olhava para a cama, meio duvidoso se ainda deveria estar ali. Quando percebe que Patric o vê, finge olhar pela janela. Mas Ivan levanta-se e caminha em sua direção, fazendo-o revirar-se na cadeira, debaixo da coberta. Não sabia se olhava para o vampiro ou se mantinha a cabeça baixa.

“Parece que ele está bem melhor não é, Damien?”

“Hum... sim senhor.”

“Então você cuidou direitinho dele?”

“Como o senhor mandou.”

O menino respondia rapidamente. Parecia ter medo de cometer algum erro ou fazer Ivan esperar. Patric observava o vampiro se aproximar de Damien. Ivan pára por um instante, admirando o rosto ansioso da criança, ajoelha-se diante da cadeira e acaricia os cabelos emaranhados. Sorri para o menino, que em resposta ao afago, fecha os olhos brevemente, como um animalzinho doméstico. Ivan levanta-se novamente, agora observando a bandeja quase vazia, apenas com uma maçã e alguns farelos de pão. O cheiro do leite e da carne cozida confundido com o perfume da fruta fazendo-o recordar por alguns instantes de quando foi humano. Mal se lembrava do gosto da comida. Fica parado ali por um tempo, olhando a garrafa de leite vazia. O aroma quente do leite de cabra podia recordar-lhe antigas lembranças, fazendo-o se perder nas sombras daquele quarto e transferir-se para sua casa, em sua infância, quando junto com sua mãe ordenhava a cabra logo cedo, para ao desjejum terem leite fresco e ainda quente do calor do corpo do animal. Mas qual era mesmo o sabor do leite? Podia prová-lo pelo olfato agora, mas como gostaria de sentir-lhe o real sabor.

“Senhor, se estiver com fome, ainda tem carne e pães na cozinha...”

Ivan retorna para o quarto chamado pela voz do menino. Olha-o por um instante tentando compreender o que ele disse, ainda meio distante em suas lembranças.

“Não, obrigado.”

“O senhor já jantou?”

O vampiro sorri, e antes de responder vira-se para Patric, que o olhava da cama.

“Hum... já. E você? Patric deu-lhe algo para comer?”

“Sim... ele deixou que eu comesse um pouco.” Responde sorrindo. Toda a desconfiança que expressava durante o dia e quando Ivan chegou pareciam ter desaparecido por completo.

“Ótimo. Então pode ir agora.”

“Senhor, se você precisar...”

“Eu te encontro. Tome isso e pode ir.” Ivan entrega-lhe uma bolsinha de tecido, parecendo conter algumas moedas. O menino agradece, acena para Patric e sai rapidamente do quarto, deixando-os a sós. Após ouvirem a porta da rua se fechar, o silêncio que pairava entre o humano e o vampiro é quebrado.

"Você me pediu pra contar-lhe a minha história. Minha vida não deve ser muito interessante para um vampiro." Patric espera uma resposta de Ivan, que permanecia de costas para a cama, o olhar voltado para o corredor por onde o garoto desapareceu. Não respondera. Não por não ter ouvido, mas por que tentava entender do que o humano estaria falando.

Pedir para Patric contar-lhe sua história? Não havia feito esse pedido. Sim, é certo que passou por sua cabeça. Num breve instante, nas últimas duas noites, teve curiosidade de descobrir o que mantinha aquele estranho homem vivo, ainda mais ao experimentar a sua essência e quase mata-lo, mas sem poder conhecê-lo além daquele vazio negro de sua alma.

“Eu lhe fiz esse pedido?” Ivan volta-se para Patric, olhando-o dentro dos olhos. Poder-se-ia ter feito mesmo esse pedido, mas não imaginaria que Patric estivesse disposto a atender. Por isso principalmente não o fez.

“Mas acho que adormeci, não é? Amanheceu e eu nem vi quando você foi embora.”

Ivan se preocupou. Não havia perguntado nada sobre o humano. Lembrou-se que tinha pensado a respeito. Mas também se lembrava de ter parado a conversa ao se exaltar com Patric. Não falou mais nada após deixar claro o que o irritava naquele homem. A partir daí manteve-se em silêncio até Patric adormecer. Só então se colocando a pensar sabre a possibilidade de descobrir a sua história. Mesmo assim não pronunciou uma palavra em voz alta, conversando apenas com sua própria mente. Somente pensava, não tentando desvendar Patric através dos sentimentos e sonhos dele, pelo contrário, imaginava para si próprio o que poderia sê-lo. Neste momento teria se aproximado tanto do inconsciente do humano que ele poderia ter ouvido seus pensamentos e os entendido como um pedido feito quando ainda estava acordado, durante aquele diálogo? Não. Ivan teria percebido se algo assim acontecesse. Mesmo porque um humano só poderia penetrar-lhe os pensamentos com sua permissão, só poderia ver o que Ivan quisesse mostrá-lo. Aquilo o estava inquietando.

“Será que meu inconsciente queria que você ouvisse...?”

“Como?”

Ivan falou em voz alta, mesmo sabendo que não faria sentido para Patric.

“Eu não te fiz esse pedido. Você imaginou isso.”

“Não Ivan. Eu tenho certeza que você me pediu.”

“Patric. Quando te ataquei dessa última vez, o que sentiu? O que viu em sua mente?”

“Nada.”

“Não viu nada? Não sentiu nada? Eu deixei minha mente parar, esvaziar de qualquer pensamento para compreender algo em você. E você não me mostrou nada a não ser esse insuportável vazio.” Ivan começava novamente a se irritar. “Você viu apenas o vazio da minha mente, eu que esperava algo de você naquele momento, e você só queria saber de mim! Quem é o vampiro aqui Patric? Quem é que precisa sugar a vida de quem para sobreviver? Você parece precisar mais de minha vida do que eu de seu sangue vivo.”

Patric ficou em silencio agora. Realmente estava buscando uma vida em Ivan. Fazia sentido. Ivan olha ao redor do quarto, e então para fora da janela.

“Patric...”

“Eu sou assim Ivan. Eu não preciso me lembrar de nada de meu passado. Prefiro assim. Não tenho lembranças, nada me importa em minha vida. Nada me marcou, nada que eu pudesse chamar de ‘meu’. Tudo que tenho são cenas de um passado que preferia não ter, pois não fazem mais sentido para mim.” O vampiro recostou-se na janela, ouvindo com atenção. “Desde que você me encontrou, não, antes, desde que aquela mulher que era minha mãe foi morta por você. Meus 24 anos passados desapareceram. Somente depois que você me atacou, que estive nessa cama entre delírios, prestes a morrer, que tudo começou a fazer sentido, compreendi o que você quis dizer. Sim. Eu sou vazio. Sou vazio por dentro, mas rico de máscaras por fora. Tentei ser todos, mas nunca fui eu mesmo.”

“Todos usam máscaras Patric.”

“Mas eu sou as minhas, Ivan, apenas isso.”

Ivan suspira. Não havia feito aquela pergunta, não pretendia, mas agora via que teria uma boa história para ouvir. Ainda sentia-se perturbado por aquele acontecimento. Silenciou sua mente, ignorou os sons do mundo, fechou os olhos. Por um breve instante, menor que um segundo, ouviu uma risada baixa, distante, que desapareceu como o último som que o incomodava. Aquela risada viria de fora ou de dentro de sua mente? Abriu os olhos. Para Patric, o vampiro apenas piscou. Fitou dentro dos olhos do humano, e não querendo se preocupar com sons em sua mente, sorriu e fez o pedido, agora em voz alta e pessoalmente.

“Quer me contar sobre suas máscaras então?”

... 


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Notas finais do capítulo

.........................................................
Bem gente... o que estão achando até aqui?
A partir desse capítulo as coisas tomaram um rumo que eu não planejava e estou revisando os próximos cap. aos poucos... só devo postar mais alguma coisa qndo entrar de férias da facul, só em dezembro... E se tiver motivos para postar né! ^_^

Paciência é uma virtude...
Até mais!



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