Noites de Um Século escrita por Dead Coyote


Capítulo 4
Capítulo 4 - Febre




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1-         Febre

Quantas horas haviam se passado? Patric estava deitado sobre sua cama. Semi-acordado. Dormindo. A cabeça doía ainda mais forte, suava frio e sentia o corpo todo latejar. Se a febre piorava ou melhorava ele também não conseguia dizer. Perdera a noção do tempo, nem tinha tanta certeza se ainda estava acordado ou se era um sonho. Estaria morrendo? Não. Dizem que quando o fim está chegando revemos cenas de nosso passado. A mente dele, porém, estava vazia, apenas latejava, como se alguma criatura moribunda estivesse presa dentro de seu crânio, forçando em seus últimos suspiros para sair dali. Tudo ficou escuro novamente. Começou a esfriar.

Anoiteceu. Patric não percebera o passar do dia. Continuava deitado.

Ao amanhecer, chegou à porta de casa com passos pesados e subiu para o quarto. Sentia fome, mas tinha a impressão de que não conseguiria comer. Tinha náuseas. Deitou-se na cama e ali ficou durante todo o dia. O sol atravessou o céu e se pôs. Agora Patric tremia. O corpo gelado. Os lençóis da cama úmidos do suor frio que continuava a escorrer por sua testa, lentamente, à medida que as batidas de seu coração enfraqueciam, insistente ainda. Com a respiração fraca, o ruivo não pensava em nada, apenas era como se flutuasse no escuro. Já não sabia dizer se era frio ou calor que estava sentindo. Uma voz o chamava em sua mente.

“Patric...”

Não havia mais o latejar, apenas aquela voz.

“... Patric...”

...distante...

“Acorde...”

Estaria morto?

“Se não comer nada vai morrer nessa cama.”

Abre os olhos. Tudo parecia brilhar. Estava mesmo com os olhos abertos?

“Sua mãe ao menos lutou antes de morrer...”.

Sua mãe? Patric volta da entorpecência para dentro de seu quarto. Toma consciência de estar deitado à cama. A janela sobre sua cabeça projetava uma sombra nos lençóis e em seu corpo estendido. Inclina devagar a cabeça, a grande sombra impedia a entrada da pouca luz que vinha da rua. Só então percebeu que era noite, mas sua vista embaçava e não podia distinguir aquela forma.

“Você consegue se levantar? Acho que não.” A sombra insistia. “Se permitir que eu entre, posso te ajudar.”

Patric ouvia aquela voz ressoar distante dentro de sua cabeça. Como se ele estivesse muito longe de sua fonte.

“Patric?”

Os olhos do homem estavam turvos, tentando distingui-lo entre as sombras da noite, mas em vão. Conhecia aquela voz, só que a lembrança não vinha.

Ouviu a janela abrir-se lentamente. A sombra se movia esgueirando-se para dentro do quarto. Com seus movimentos a luz chega a seu rosto, iluminando os olhos negros e brilhantes de Ivan. O vampiro senta-se na cama de Patric, tomando-lhe a cabeça com as mãos. Fazendo-o sentar-se recostado ao seu colo, Ivan afasta as mechas ruivas de sua testa. O humano estava frio. As marcas de suas presas no pescoço de Patric incharam e estavam roxo-escuras.

“O que eu fiz...? Exagerei com você não é... Pensei que agüentaria.”

Com dificuldade, a mão trêmula segurou Ivan pelo braço, quando este fez um breve movimento para se levantar. Patric aos poucos retomava consciência de si e do ocorrido. Encarava Ivan com um olhar duvidoso, mas acusador.

“Vou buscar algo para você comer. Acha que se ficar assim vai sobreviver mais essa noite? O que tem na sua cozinha?”

O humano não respondeu. Não conseguia. Apenas continuava segurando Ivan. Entretanto o vampiro soltou-se com facilidade, se levantou e saiu pela porta, em direção ao corredor. Patric ficou novamente só no quarto, o corpo apoiado na cabeceira da cama, semi-iluminado pelo brilho bruxuleante que vinha do lado de fora da janela.

O outro retornou. Estava sentado ao lado de Patric com a bandeja na qual trouxe para o quarto um pouco de carne seca, dois pães dormidos e um pedaço de queijo envelhecido, além de uma garrafa quase vazia de vinho. Tudo o que pôde encontrar na cozinha que desse para se comer. Patric engolia devagar e com dificuldade os pedaços de carne e queijo, o pão molhado no vinho ajudava, mas não muito. Seu corpo parecia rejeitar a comida.

“Você precisa repor sangue que perdeu, e não vai conseguir se não se alimentar direito.”

Patric estava irritado. Não perdera sangue, Ivan que o roubou. E agora ele vinha querer ajudar... Pra que? Para poder alimentar-se de novo dele quando estivesse melhor? Ivan falava com naturalidade, como se ele estivesse com uma simples gripe. O ruivo encarava o vampiro enquanto lutava para não regurgitar um pedaço de pão. Bebe um pouco de vinho e arrisca falar.

“Por que está cuidando de mim? Não disse que iria me matar?” Sua voz saiu rouca e pausada. Muito baixa, como se não fosse sua, mas de alguém que sussurrava para ele das sombras do quarto. Ivan pode ouvir.

 “Disse que te contaria minha história, como pediu. Matar-te não estava em meus planos.”

Olharam-se em silêncio por um instante.

“Mas foi você quem decidiu. Estou enganado? Se quiser saio daqui agora e não nos encontraremos mais. Metade de sua vida por metade de minha história.” Ele parecia sorrir por detrás do olhar serio. O que incomodava ainda mais Patric. Ivan o oferece mais um pedaço de carne seca, que ele engole com mais facilidade. Ainda sentia febre e o corpo doía, mas o vinho e a comida começavam a aquecê-lo.

Ficaram em silêncio por mais um longo tempo, e o humano começou a relembrar as horas que passou naquele quarto. Lembrou de sentir frio. Fome. Lembrou do sol iluminando seu quarto, o calor que o incomodava. Lembrou de ter acordado no beco por este mesmo calor. Lembrou que foi atacado por Ivan três noites atrás, e novamente ontem. Ivan disse que o sol poderia matar um vampiro? Por que ele estava comendo aquele pedaço de queijo? Começou a ficar confuso.

“Eu não me tornei um vampiro? Você me atacou pela segunda vez e eu ainda sou humano.”

“Sim. Você é humano. Isso te incomoda?”

“Mas...”

“Somente ter o sangue sugado por um vampiro não quer dizer que você também se tornará um.”

Patric não falou nada. A cabeça começou a latejar forte. Parecia que quanto mais se esforçava, seu corpo acordava e com ele, a dor. Ivan demorou-se um pouco investigando os olhos verdes do outro, compreendendo sua dúvida.

“Lembre-se do que te contei. Quando fui atacado por aquele vampiro, ele me deu seu sangue também. A quantidade de sangue que deixei no seu corpo também te permitiria continuar vivo. Para que um humano se torne um vampiro é preciso que este esteja quase morto, e que receba de volta o sangue do maldito.”

“Você... já fez isso?”

“Eu? Não. E pretendo não fazer.” Ivan dizia olhando nos olhos de Patric, como se junto daquela pergunta pudesse ouvir um desejo curioso vindo do íntimo do coração humano, o desejo do poder. Abafou esse possível pedido continuando a falar, antes que Patric tivesse consciência dele se formando dentro de si. “Não tenho certeza de como deve ser feito. O que Antero fez foi apenas me transformar no que sou hoje, para ele não interessava me ensinar nada. Quanto menos eu soubesse, mais fácil seria me eliminar quando não precisasse mais de mim.” Falou aquele nome de propósito. Queria testar Patric, provocá-lo. Estava começando a, realmente, se divertir com aquela situação.

“Antero? Quem...? Você não me falou sobre ele...”

O humano inclinava-se em direção a Ivan, na cama. Pára quando seus olhares se cruzam. O vampiro tinha um estranho brilho no olhar.

“Quer mesmo que eu continue a contar?”

Patric não respondeu. Ivan finge não ter feito a pergunta.

“Antero. O vampiro que me atacou.”

Olha mais uma vez para o rosto pálido ao seu lado, os olhos embaçados, atentos às suas palavras. “Não sabia que o nome dele era esse. Foi minha mãe que o conheceu.”

A cada frase fazia uma breve pausa e observava a reação do humano. Fazia com que comesse mais alguns pedaços de carne ou bebesse vinho, e prosseguia. “Se me lembro bem, contei que voltei para minha casa e estava quase inconsciente. Mas minha mãe me alimentou...”. Dá um suspiro de deboche. “Você está numa situação parecida com a que eu me encontrava... Mas fique tranqüilo, você não é um vampiro!” Sorriu, e Patric desviou o olhar como que entediado. Na verdade não conseguia entender onde Ivan queria chegar com aqueles olhares e meio-sorrisos. “Eu também estava fraco e com fome, mas passava pela minha mente o desejo de terminar com tudo aquilo. Porém minha mãe me controlou.”

“Normalmente ela não falava nada, apenas estava do meu lado e me trazia animais dos quais eu pudesse me alimentar, em geral gatos ou galinhas, às vezes um leitão novo. Permitia que ela se aproximasse apenas para isso, e então a repelia. Imaginando que um dia poderia atacá-la. Não queria pensar nisso, mas a imagem voltava sempre a minha mente. Minha mãe caída no chão, aos meus braços, enquanto eu me banhava em seu sangue, rindo como um louco e ela morrendo lentamente.”

“Eu não sabia como essa idéia alojara-se em mim. Não podia me livrar dela.”

“Até que um dia a segurei quando ela se aproximou. Apertei firme seu braço fazendo com que ela soltasse o filhote de cão que trazia para mim. Este saiu chorando para um canto da sala. Mas ela não parecia ter medo. Eu a puxei contra mim e a apertei em meu peito. Abracei seu corpo contra o meu e comecei a falar. Não me lembro como, as palavras saiam de minha boca como se não fosse eu que as pronunciasse, como se apenas repetisse. Não me lembro o que eu disse. Eu não ouvi. Estava longe, ouvia apenas ecos confusos. E de repente eu já estava encolhido a um canto, minha mãe do outro lado da sala. Olhava-me com horror. Ela estava assustada, apavorada. Eu também. Tanto por não saber o que aconteceu como por vê-la daquele jeito. O que eu fiz pra ela me olhar assim? O que eu falei? Nunca soube.”

“E, num instante, tudo voltou ao normal. Os olhos de minha mãe encheram-se de lágrimas e ela veio me abraçar. Tudo não passou de um momento que desapareceu assim como veio. Foi a primeira vez que a vi chorar. Ela ajoelhou-se diante de mim e me contou sobre ele, Antero.”

Ivan fez uma pausa. Olhou para Patric, que prestava atenção, a respiração ofegante.

“Não vou continuar.” O vampiro se levanta da cama, deixando rolar sobre o lençol a garrafa de vinho já vazia que Patric deixou cair entre eles depois de tomar o último gole.

“Espere. Por que não? Ainda não amanheceu...”

O homem tenta levantar-se, mas cambaleia e continua sentado. Ivan faz com que ele se deite novamente, cobrindo-o com uma coberta grossa. “Você precisa descansar para se recuperar. Não vou falar mais nada. Além do que, você não me respondeu. Vou te dar um tempo para pensar.”

“E se eu não agüentar até amanha?”

“Vamos ver se você agüenta... Ainda tenho algumas coisas pra contar e não pretendo resumir tudo até antes do amanhecer.”

O vampiro se afasta e senta numa cadeira do outro lado do quarto, de frente para a cama.

“Durma. Eu ficarei aqui mais um pouco caso precise de algo... caso esteja morrendo.”

“Desgraçado...” O vampiro sorri. “Você disse que eu sou vazio, que te procurei pra ter algo que me servisse de objetivo de vida... mas e você? Está contando essa historia pra mim por quê? Apenas por passa-tempo? Também não procura algo para te manter vivo mais tempo?”

“Suas palavras são bonitas Patric. Poderiam ser até sábias, não fosse você tão imaturo. Não suponha conhecer aquilo que nunca nem experimentou. Ainda não sabe metade do que sou, e nunca irá saber. Eu tenho a eternidade pra buscar vidas que me distraiam, você busca a vida na minha eternidade... ilusão.”

“Você não...”

“Não volte nesse assunto. Você já me irritou ontem com isso...” Ivan cala-se. Não queria ter se exaltado. Patric conseguiu tirá-lo do sério novamente. Em parte ele estava certo, ambos faziam a mesma coisa. Ambos buscavam a mesma falsidade para continuarem vivendo... Será?

“Não quero me justificar por ter te atacado, mas me decepcionei com você. Isso acabou servindo de motivo pra te atacar. Queria te fazer sentir medo, acordar. Mas vi que realmente você é assim. Que eu também sou assim. O monstro maior que nos assombra está dentro de nós mesmos, e como não conseguimos mata-lo sozinhos, buscamos alguém que possa fazer isso por nós, não é? Talvez não alguém que mate o monstro, mas que pelo menos o acalme por mais algum tempo... Esperava que você voltasse para me matar. Não que você conseguisse, mas que pelo menos tentasse. Que me odiasse. Achei que era por isso que tinha voltado naquela noite, esperei por isso ontem também. Tentei lhe fazer sentir esse ódio quando falei aquelas coisas... Mas não. Eu acabei acertando sem querer o ponto certo, não em você, mas em mim. Então tive vontade de te matar.”

Silêncio.

Um vento frio entra pela janela, balançando a cortina de tecido fino.

O silêncio continua.

“Eu poderia rastrear sua mente, como fiz em alguns momentos. Buscar no mais profundo de seus abismos aquilo que te faz existir como tal. Mas, Patric, eu não farei isso... não, nem que me permita.”

Silêncio. Patric ouvia como se aquelas palavras fossem apenas para si. Somente ele poderia compreendê-las. Os olhos do humano cerravam-se às sombras da noite.

“Patric... conte-me você sobre esse abismo. Quem é você?”


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