Noites de Um Século escrita por Dead Coyote


Capítulo 3
Capítulo 3 - Sangue Humano




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1-         Sangue Humano

Patric não podia aceitar aquilo. Passara o dia pensando em sua mãe, havia sido assim desde o primeiro encontro com Ivan. Durante o dia a idéia de encontrar-se com o vampiro parecia absurda e irreal. E então se lembrava de sua mãe e de como a encontrara, morta, deitada sobre a cama como se dormisse em paz, mas seca. Aí vinha toda a raiva. Por que não se vingaria daquela criatura que tirou dele a pessoa mais importante, que mais amava? E via-se novamente em contradição, aceitava que a mãe fora atacada por um vampiro, queria que assim fosse, só poderia acreditar nisso... Mas não acreditava em Ivan? Acreditava. Acreditava e odiava aquele vampiro. O dia corria e Patric direcionava todos esses sentimentos para descobrir um meio de vingar-se, por sua mãe. E logo já era noite. O dia acabara e lá estava ele, sentado na caixa velha no fundo do beco úmido. Ivan a sua frente o olhava, enquanto pensava calmamente em tudo que estava acontecendo.

O humano encarava o vampiro no fundo dos olhos, e o outro retribuía o olhar. Permaneciam o silêncio. Nada disseram ao se encontrarem e assim prosseguiam. Patric já não sentia mais raiva ou qualquer outro sentimento contra Ivan. Já não conseguia nem mais pensar em sua mãe. Só queria naquele momento saciar-se do que o vampiro tinha para dizer-lhe. Via dentro de si a antiga paixão pelo sobrenatural reaviver-se, paixão esta que ele mesmo dizia convertida em ódio. Dizia, mas não tinha mais certeza disso.

Era esse o efeito que Ivan provocava. A calma do vampiro como se aquilo tudo o tranqüilizasse e divertisse. Como se tudo fizesse parte de uma outra realidade e o dia fosse apenas um momento distante guardado na lembrança, mas que já não fazia mais sentido. Essa calma retirava Patric de si, levando-o para longe de qualquer pensamento ou sentimento mundano. Prendendo-o apenas ao vampiro, como se ele existisse ali apenas para Ivan e para aquele momento, aquela noite, e no dia seguinte já não seria mais ele. Se Patric ou Ivan queria assim, impossível dizer. O feitiço do silêncio que se prolongava foi enfim quebrado.

“Acordei. Não sei se na noite seguinte ou quantas noites após. Mas lembro-me bem como acordei, e por que. Estava com fome. Todos os meus sentidos se aguçavam em busca de alimento. Podia ouvir o som dos vermes da terra se rastejando ao meu redor, como se eu fosse um cadáver. Bem, talvez seja isso que sou. Um cadáver. Caro data vermibus, carne dada aos vermes em latin. Era assim que eu me encontrava naquele momento, enterrado, dado aos vermes da terra. Mas não. Foram os vermes rodeando meu corpo que me despertaram. Podia sentir o cheiro deles, sentir o fluxo de sangue dentro de seus pequenos corpos. O cheiro do sangue daquelas criaturas tão inferiores, eu nem imaginava que poderiam ter sangue, mas me atraia, o cheiro me atraia, o movimento deles. E aos poucos meus sentidos se aguçaram ainda mais. Podia ouvir o movimento de pessoas na rua, as carruagens passando, o som de passos. Ratos correndo na superfície, animais noturnos. Até as vozes. E por fim o batimento do coração de quem se aproximava.”

“Foi isso. A fome me fez acordar. A vida ao meu redor me chamava e me despertava da morte. Eu precisava de sangue, sangue vivo para irrigar meu corpo.”

“Saí da terra. Levantei-me sem me importar com a sujeira da roupa. Caminhei até a rua, primeiro guiado pelo cheiro e o som, e só depois consegui focalizar alguém mais adiante, virando a esquina, vindo em minha direção, mas sem me ver. Comecei a caminhar rápido pelas sombras, ao seu encontro. Então de repente estaquei. O que estava fazendo? Por que agia daquela maneira? Sim, só então voltei à realidade, lembrei-me e me dei conta de que realmente me tornara um vampiro. Meus sentidos estavam aguçados como de um animal caçador, preparado, à espreita da presa. Dominado por meus instintos primitivos de sobrevivência. Queria me alimentar. Precisava, sentia fome. E seria o que iria fazer, mas a presa era um humano, como eu há pouco tempo. Eu não me permiti. Não apenas por seu um humano, não atacaria qualquer ser que fosse. Eu era o ser maldito que não merecia viver ali. Deveria morrer. Mas na verdade não sabia o que fazer.”

“Lembrei-me de minha mãe. Das coisas que ela ensinara-me. Ela saberia me ajudar. Iria procurá-la, mas desisti... Não conseguia pensar direito e tinha medo do que poderia acontecer, do que eu causaria. Estava começando a ficar assustado, ou só naquele momento me dera conta de que estava realmente desesperado com a situação em que me encontrava.”

“Enterrei-me novamente. Recusando-me a ouvir ou sentir qualquer coisa. Adormeci.”

Patric o olhava ainda em silêncio, quando Ivan parou a narração. Pouco depois que se deu conta de que ouvia o vampiro tão atentamente que começava a imaginar as cenas narradas como se estivessem acontecendo ali na sua frente. E então nota o olhar que o vampiro fixava nele, mas sem dar maior atenção ao penar desses olhos.

“O que aconteceu então? Por que não se alimentou? Você...”

“Patric. Por que quer que eu te conte isso? Você voltou aqui realmente pra isso? Não pretende mesmo vingar a morte de sua mãe ou algo assim? Sabe que assim que eu terminar de contar minha história eu te matarei, até porque você seria um incomodo pra mim se continuar vivo. Nesses dois dias ao amanhecer eu te dei uma chance de nunca mais voltar aqui e seguir sua vida. Mas você voltou. Você quer morrer? Se quiser é só pedir.”

“E você Ivan? Por que esta me contando sua história? Só por que eu pedi? Não me faça perguntas assim, tem coisas que não precisam de respostas.”

“Você é vazio, Patric. Falta-lhe algo para tua vida ter sentido. É por isso que me procura toda noite não é? Eu estou contando a minha história pra você por um motivo bem simples, sim, tenho um motivo. Você é um passa-tempo pra mim. Contar essas coisas pra você é só uma maneira de me distrair toda noite. Mas você vem aqui por algo que nem sabe o que é. A morte de sua mãe também não foi tão significativa assim pra você, ou você tentaria me matar ao invés de tentar me compreender. Você se sentiu livre com a morte dela. Eu sei que sim. Mas não sabe o que fazer com essa liberdade agora. E busca sentido na minha história, para poder fugir dessa sua realidade mesquinha.”

“Cale a boca!”

Patric estava nervoso, não sabia o que responder. Não por Ivan ter falado aquelas coisas, mas por sentir que tudo que o vampiro dizia fazia sentido, mesmo que Patric nunca houvesse percebido isso. Todas as dúvidas que sentia durante o dia eram por procurar sentido onde não havia. Queria sentir raiva do que pra ele não era importante tanto como imaginava.

Olhava com raiva para o vampiro, que retribuía com um olhar calmo e inexpressivo. Ivan não tinha interesse em prosseguir com a discussão. Apenas queria ter certeza de que a impressão que tivera do humano era verdadeira. E não se enganara. Patric estava perdido. Porém Ivan perguntava-se se não teria sido a perda da mãe que tirara o chão daquele homem. Mas agora isso não o preocupava, há muito tempo não se preocupava com o destino de nenhum humano. O que dissera sobre se distrair com Patric tinha sim um pouco de verdade, e acima de tudo, esperava que Patric não voltasse mais ali. No final, não tinha mais muito interesse em matá-lo. Ao perceber que o humano desviava o olhar para a rua, evitando os seus olhos, como se não se sentisse capaz de desafiá-lo, o vampiro prosseguiu com a narração.

“Bem... vamos continuar.” Patric o olha pelo canto do olho, sem se virar. E Ivan vendo que tinha a atenção dele, prosseguiu. “Eu não procurei minha mãe. Nem eu sabia direito o porquê. Eu passei tanto tempo adormecido e enterrado que meu corpo todo latejava a cada anoitecer e despertar, mas eu não saia para a superfície. Forçava o sono novamente e ali permanecia. Até perder os sentidos. Então em uma noite tudo se passou como fleches em minha mente. Eu me levantei, caminhei com passos moribundos, as poucas luzes das luminárias da rua brilhavam e ofuscavam minha visão. Eu segui levado pelos meus próprios passos, estava entre a consciência e a inconsciência de meus atos, como se fosse apenas um espectador do meu próprio corpo, que caminhava involuntariamente pelos becos e ruelas, tropeçando nas pedras soltas das ruas.”

“Tinha uma porta à minha frente. Não sabia como cheguei ali, apenas abri a porta com força. Era a minha casa, eu sabia disso, mas parecia que meu corpo não. Na cadeira de balanço, no meio da sala, minha mãe gangorreava com a gata ao colo. Ela, lendo um livro, o felino, dormindo. Ambas levantaram-se assustadas quando entrei, e se viraram em direção à porta.”

“‘Ivan!’ minha mãe exclamou e correu em minha direção. Mas parou nos primeiros passos. Eu provavelmente estava com uma aparência horrível. Sujo e magro, sem dizer que deveria estar muito pálido. Não sei. Mas logo percebi que ela compreendeu. Porém eu não conseguia falar, não pensava direito. O cheiro do corpo dela ali a minha frente. Ouvia seu coração pulsando. Cada vez mais alto pelo pavor que sentia com a horrenda visão do que seu filho se tornara. Era tão atraente pra mim...”

Patric virou-se no caixote onde estava sentado e mirou Ivan com atenção. “Foi você que matou sua mãe? Você disse que também perdeu a sua mãe para um vampiro... foi você então...?” Ivan limitou-se a encará-lo.

“Ela provavelmente estava muito preocupada com meu desaparecimento por tanto tempo. Mas não duvido que sentiu tremendo pavor de ver-me ali a sua frente, transformado naquilo que foi o motivo de se refugiar tão longe da terra de seus antepassados. Eu podia sentir isso também. Sua mente estava confusa, eu percebia tudo isso. Mas não me lembro como aconteceu. Lembro apenas daquela gata correndo e se escondendo debaixo da lareira, entre as poucas brasas que se apagavam no monte de cinzas. As brasas brilhando, os olhos da gata com o mesmo brilho, como duas pequenas chamas tremendo de pavor. Aqueles olhos em brasa me prenderam. E tudo ficou escuro. E então o gosto do sangue enchendo minha boca, inundando minha garganta. Trazendo a vida de volta pra mim. Sentia o cheiro forte de minha mãe. Nunca havia percebido como ela tinha um perfume tão característico. Mas eu conhecia, sabia que era o cheiro dela. Então abri os olhos. E lá estava ela ajoelhada ao meu lado, o pulso esquerdo cortado oferecido a mim. Eu compreendi. Eu iria atacá-la mas novamente evitei isso e me refugiei no sono. Ou foi aquela gata que me fez perder os sentidos? Os olhos dela ainda em minha mente. Dizem que os gatos tem poderes incompreensíveis que vão além do mundo que conhecemos. Não sei, apenas o que me fazia sentido era que minha mãe me despertou oferecendo o seu próprio sangue para me manter vivo. E eu acordei, recobrei minha consciência de repente. E tudo começou a arder no meu corpo. Afastei-me dela o máximo que pude.”

“Percebi que estava ainda na sala, encolhido a um canto. Sentia o sangue dela, o pouco que eu engoli, escorrer por entre minhas veias, meu corpo e membros  ardiam, como se estivessem dormentes, com câimbra. Era uma sensação estranha, ao mesmo tempo assustadora e agradável. Sentia o calor invadindo-me e trazendo-me a vida. Fiquei ali, naquele canto do cômodo, paralisado. Olhando admirado pras minhas mãos que pareciam tomar vida aos poucos, seres independentes de mim. Sentia isso por todo meu corpo. Até que fui chamado de volta dessa hipnose pela voz macia de minha mãe. ‘Meu filho. Como foi acontecer isso? Quem te fez isso?’ Ela me olhava com profundo carinho, não tinha medo. Podia ver em seus olhos, o medo não era de mim, mas do outro, daquele que me atacou. Ela sabia agora que tinha sido encontrada. Mas eu ainda estava com fome e perturbado. Não conseguia organizar meus pensamentos. Queria fugir, sair dali e me enterrar novamente, mas ela me prendia com seu olhar, me fazia sentir que estava seguro, de volta ao lar. E aos poucos permiti me aproximar dela, ajoelhei aos seus pés e a abracei pela cintura. Daí não me lembro de mais nada do que aconteceu nesse dia.”

Ivan se levanta e caminha até a rua, onde para e olha para trás, para Patric. Este então o acompanha parando ao seu lado. Patric estava um pouco duvidoso, pensava no que o vampiro havia dito sobre si, mas a narração de Ivan o contrariava em sua mente, deixando-o com mais dúvidas do que qualquer resposta. Realmente estaria ali apenas buscando um sentido para sua vida? Essas dúvidas que sentia não seria o vampiro que estaria colocando em sua cabeça? Ainda estava cedo e imaginava que Ivan quisesse andar pelas redondezas enquanto continuasse a contar sua historia, como fizeram na noite anterior.

“Sangue humano... foi a primeira vez que o experimentei e por muito tempo não o apreciei novamente, tem um sabor singular sabia?” O vampiro dá um passo curto, olhando para o chão. Patric o acompanha. Três passos a frente de Ivan sem perceber que ele parou no primeiro. Tudo fica escuro, como se as poucas luzes da rua e das janelas se apagassem de uma só vez. O chão gelado.

Patric acorda com a cabeça doendo, sentindo um leve calor sobre o rosto. Estava amanhecendo e ele estava esticado no chão, no fundo do beco. Sentia-se fraco. O corpo formigando. Leva a mão à testa, que soava frio e latejava. Levanta-se com dificuldade, tropeçando em seus próprios passos, apoiado na parede. Inconscientemente a mão apalpa o ombro esquerdo, a gola da camisa estava úmida e pegajosa. Ao tocar o pescoço percebe um inchaço. Havia sido mordido. Ivan se alimentara dele e o deixou vivo. O sol nascia, mas ele sentia frio. Estava com febre.


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