Noites de Um Século escrita por Dead Coyote


Capítulo 12
Capítulo 11 - Perigo




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11-         Perigo

 

Quando abriu os olhos, Patric nem ao menos suspeitava de quanto tempo estivera dormindo. Ao deitar-se noite anterior, já quase amanhecendo, apenas dormira um sono sem sonhos. Imerso em um profundo nada, as horas passaram sem que sentisse, e ao acordar foi como se apenas houvesse piscado os olhos. Ergueu-se, colocando-se sentado na cama. Observou ao redor, e através da janela percebia a luz quente do fim da tarde. O relógio com armação de madeira entalhada sobre a escrivaninha do quarto marcava cinco horas, exatamente. Suspirou, e tentou lembrar-se da noite anterior. Tinha a única certeza de ter falado com Ivan, mas...

“Não pense nem tente relembrar o que se passou.” Suas lembranças paravam ao encontrarem essas palavras do vampiro, e o corpo inteiro do homem ruivo era tomado por calafrios quando tentava recordar além. Algo em seu íntimo, mais forte que o pedido de Ivan, dizia para não prosseguir.

Levantou-se, aproximando-se da janela e constatando que estava trancada. Sentiu-se incompreensivelmente aliviado. Observou por mais alguns instantes o movimento das pessoas e carruagens do lado de fora, o vento que soprava os galhos das árvores, calmamente, e então deu às costas a esta cena, fechando a cortina e voltando-se para o quarto. Tudo parecia estranhamente normal, e de alguma forma contrastava berrantemente com a sensação de vitalidade em seu interior. Era como se nada daquilo, normal e estático, fosse verdade. Uma lembrança que ele não conseguia alcançar em sua mente dava-lhe a impressão de que tudo ali em algum outro momento havia tido um valor próprio, um significado... Mas Ivan disse para não recordar, e sua mente recusava-se a ir além de apenas aquela impressão de que poderia ser diferente. Até mesmo a sobrenaturalidade de Ivan parecia simples e aceitável diante da idéia que sentia.

Saiu do quarto e caminhou lentamente para a sala, seguindo o corredor na penumbra. Aquele estranho conjunto de meia-luz amarelada que mal iluminava as paredes altas do corredor causando a impressão da dualidade que sentia em relação aos objetos de seu quarto. Patric então parou a alguns passos da porta da sala e suspirou longamente. Havia algo mais ali. Algo que Ivan estava escondendo. Tomou consciência de que não sentia mais o seu corpo doer. Sentia-se revitalizado, como se o cansaço que o tomara por todos os últimos dias, as dores que o impediam de levantar-se desde que fora atacado por Ivan, a vontade de desistir que o assolou em momentos que mal se recordava... Tudo havia desaparecido e era como se nunca houvesse realmente encontrado o vampiro, ou se mesmo nem houvesse perdido sua mãe... sua amada...

Num sobressalto, Patric precipitou-se pelo corredor alcançando a porta de madeira negra do quarto de Scarlet, empurrando-a e adentrando o quarto iluminado pelo pôr-do-sol. E então todo o sobressalto e a energia se desfizeram quando o encontrou vazio e silencioso. Seguiu para a janela, e esta estava trancada. Suspirou e não a abriu, sentando-se na cama cujo colchão macio e a coberta aveludada pareciam acolhê-lo e acariciá-lo, recordando o toque luxurioso da mulher de cabelos em cachos vermelhos.

O que estava acontecendo com ele? Ivan disse que se passaram três dias. Apenas três dias desde que duelaram e o vampiro o deixou a beira da morte na poltrona da sala. E agora se sentia revigorado, como se nada disso fosse real. Em apenas três dias teve a impressão de recordar uma vida inteira e que de alguma forma era ainda mais real que aquela que se recordava desde a morte de sua querida Scarlet.

Aquela criança...

Ergueu-se sem vontade e seguiu a passos lentos para a sala. Queria sentir-se cansado, queria que as dores retornassem ao seu corpo... Assim ao menos tinha uma pequena certeza de que estava vivo e de que era real... Ao menos a dor lhe parecia muito real daquela vez que Ivan o atacou. Acendeu os lampiões e os castiçais da sala um por um, apesar da luz do fim da tarde ainda iluminar o cômodo. Reparou, ao chegar próximo ao piano, na mancha negra no chão. O sangue dele e de Ivan misturados ali, ainda manchando a parede e a tábua corrida. Isso parecia real... Mas em algum momento duvidou que essa marca devesse estar ali. Abaixou-se, passando a mão pela superfície seca, sentindo-se estranhamente indiferente àquilo. Engoliu em seco e voltou-se a tarefa de iluminar a sala que logo estaria imersa nas trevas da noite assim que o brilho avermelhado se escondesse no horizonte da cidade.

O fogo de uma das velas tremulou e, sem saber o porquê, o homem virou-se rapidamente em direção à porta de entrada da casa. Ficou ali, estático, por longo tempo até perceber que havia alguém batendo à porta e chamando por seu nome. Era uma voz estranhamente conhecida, e ele não sabia dizer se era feminina ou masculina, apenas que trazia um calor reconfortante ao seu íntimo. Patric adiantou-se para a porta, inconscientemente eufórico por poder encontrar a pessoa do outro lado. Mas estancou assim que tocou a maçaneta, sem mesmo girá-la para ter certeza que estava trancada. Prendeu a respiração e um calafrio percorreu-lhe o corpo por inteiro. O sol ainda não se pôs, mas lembrava-se claramente da recomendação do vampiro: “Não deixe que ninguém entre em sua casa, nem mesmo eu.”

Não era Ivan, ele tinha certeza disso. Um temor incompreensível tomou a mente de Patric e ele paralisou-se. Não podia se mover. Virou lentamente a cabeça em direção à janela a sua direita e observou o céu avermelhado pela fresta entre a cortina. Ainda era possível ver o sol entre as nuvens, e essa confirmação pareceu acalmá-lo novamente. Sorriu-se, achando-se bobo pelo seu medo. Mas mesmo assim afastou-se da porta, encarando-a por mais alguns instantes antes de decidir que não a abriria.

A voz melódica de antes o chamou mais uma vez, e Patric fechou os olhos, suspirando. Esperou de olhos fechados que a voz desaparecesse, e essa foi ficando fraca e diminuindo até que não podia mais ouvi-la. Continuou de olhos fechados por mais alguns instantes, e então a voz recomeçou a chamar por seu nome novamente, mas dessa vez a voz não vinha de fora da porta, nem de algum outro lugar, a voz parecia ressoar dentro de sua mente! Era uma voz misteriosamente melódica e doce, misteriosamente tentadora como a voz de sua Scarlet a chamá-lo em suas lembranças... Abriu os olhos, assustado, o coração bombeava apressado o sangue para cada parte de seu corpo, e a voz continuava a chamá-lo cada vez mais alta em sua mente. Patric, Patric... Patric... E então novamente desapareceu. Dessa vez de forma repentina como começara.

Patric arfava e sentia o corpo tremer. Outra vez voltou-se para a janela, para o céu na penumbra do fim da tarde. Ficou perdido nos contornos alaranjados das nuvens que moviam-se lentamente no céu. A respiração foi diminuindo lentamente e se estabilizando, e então Patric ouviu novamente batidas na porta de madeira. Foram duas batidas solitárias que não se repetiram. Ele encaminhou-se lentamente até a porta e girou a maçaneta. A porta abriu-se lentamente, e o homem não reparou no fato de não ter, em momento algum, destrancado a fechadura.

À medida que a pequena fresta ia se abrindo, ia revelando no vão da porta o corpo pequeno de uma criança. Um menino vestido com um gasto macacão e de rosto sorridente, que brilhava sob a luz quase horizontal do pôr-do-sol.

“Achei que não estava em casa...” A voz não parecia vir do menino, parecia estranhamente etérea. “O senhor está bem melhor!”

As palavras do garoto tinham um sentido inabalável para Patric, que assentiu positivamente com a cabeça e deixou-se levar até o sofá. O menino tomou-o pela mão e sentou-se no estofado, indicando que Patric sentasse-se ao seu lado.

“Damien...” O menino encarou o homem ruivo. “É você mesmo, não é?”

O garoto tinha uma expressão engraçada no rosto. Riu e continuou observando Patric, como se o homem estivesse fazendo alguma brincadeira. Patric balançou a cabeça, sorrindo de volta parecendo dizer para o menino esquecer a pergunta. Então seus olhos se encontraram com os do garoto. As íris avelã tinham um brilho profundo, tão intenso quanto a luz dourada do pôr-do-sol, que causou em Patric um forte desejo de tocar e abraçar o garoto. O brilho parecia se aproximar, envolver Patric em um estranho calor reconfortante. Aqueles olhos, novamente veio a Patric essa impressão, eram como os olhos de Scarlet! O homem levanta-se, de repente, ainda encarando a criança que sorria inocentemente para ele.

“Você estava morto...”

O sorriso desapareceu dos lábios do garoto, juntamente com o brilho intenso de seus olhos e seu rosto. O rosto do garoto pareceu minguar e tomar a aparência quase tão fria e inerte que Patric lembrava daquela estranha noite no beco. Mas a pele ainda tinha um peculiar tom róseo, que contrastava com a frieza do olhar. Foi por um breve instante que essa estranha cena envolveu Patric e desapareceu. Damien voltou a sorrir, levantou-se, segurando a mão de Patric com dedos pequenos e frios, e o guiou em direção à cozinha.

“Você comeu alguma coisa hoje, Patric?”

Ele não respondeu. Tudo voltou a fazer o incompreensível sentido de antes, e ele acompanhou a criança. Na cozinha, alguns pães estavam sobre a mesa, e na dispensa o menino pegou um pedaço de carne assada de que Patric não fazia idéia da existência. Rapidamente ele preparou uma bandeja com uma garrafa de vinho e variados alimentos e levou para o quarto de Patric, colocando sobre o criado ao lado da cabeceira da cama.

O homem sentou-se no colchão e, sem questionar, tomou um pedaço do pão enquanto o garoto servia uma taça de vinho tinto.

“Talvez você ainda não esteja totalmente curado. Descanse mais um pouco...”

Patric não tinha certeza se foi o garoto quem disse ou se foi sua imaginação. Não sabia dizer se as palavras formaram-se nos lábios de Damien... Tinha a nítida impressão de que ele não movera os lábios em momento nenhum. Mesmo assim, nesse instante sentiu que realmente ainda tinha sono e seu corpo estava ficando novamente pesado. Piscou os olhos e quase não conseguiu abri-los devido o cansaço que o tomou. Bocejou e bebeu um pouco de vinho, levando depois um pouco do pão à boca e mastigando-o preguiçosamente.

O garoto olhou em volta. Ficando sério, de repente, e em seguida deixando-se formar por um breve instante um sorriso fino em seus lábios, olhando em direção à janela para o brilho que enfim desaparecia atrás das altas árvores do horizonte da cidade. Aquele sorriso, e a estranha expressão no rosto do menino, fizeram Patric arrepiar-se instantaneamente, mesmo que ele não conseguisse entender de onde viera a clara sensação de perigo. Todo o cansaço desapareceu do seu corpo instantaneamente como viera, mas o garoto voltara a sorrir naturalmente e a visão de segundos atrás passou como se nem houvesse existido. Patric suspirou longamente e mirou também a janela, observando a noite sobrepor seu véu azul-escuro ao vermelho do entardecer. Teve a sensação de que apenas olhara por um breve instante, mas quando tomou consciência desse ato, o céu já estava completamente negro e o seu quarto imergira em sombras. Olhou ao redor, mas Damien não estava mais ali. Suspirou, não dando importância, imaginando que poderia ter adormecido sem perceber. Lembrou-se da bandeja com a comida sobre o criado e virou-se para servir-se de mais vinho. Mas a garrafa estava vazia, e pela pouca luz que entrava pela janela percebeu com asco que o pão, tão macio que ele comera há pouco, estava duro e roído, e um bolor negro cobria quase toda sua superfície. Sentiu um forte cheiro de decomposição, como se aos poucos seus sentidos fossem acordando de um sonho, e logo percebeu as larvas de mosca sobre a carne crua ao lado do pão.

Levantou-se de sobressalto, sua mente buscando um sentido para aquilo, uma resposta que ele não conseguia imaginar. E com a mesma impressão da seqüência lenta com que tomava consciência do ambiente ao seu redor, virou-se, sentindo que estava sendo vigiado. A nítida sensação de alguém de pé na porta de seu quarto foi comprovada pela silhueta sombria de Ivan a observá-lo.

 “Por que a porta estava aberta, Patric?”

O homem não respondeu. Ficou imóvel, observando o vampiro aproximar-se lentamente como se flutuasse. Os olhos negros percorriam todo o quarto rapidamente, parando vez ou outra em algum detalhe invisível para Patric. O vampiro parou seu movimento e observou a bandeja com alimentos deteriorados ao lado da cabeceira da cama. Voltou-se então para o ruivo.

“Patric. Por que a porta estava aberta?”

“Eu... não... Não fui eu quem abriu...” O coração de Patric pulsava acelerado.

“Não foi você?” O vampiro falava lentamente, observando profundamente os olhos de Patric, prendendo-o com seu olhar negro.

“Foi Damien.” Patric falou sem pensar.

“Damien?” Cada vez mais o homem sentia que os olhos do vampiro tornavam-se um abismo onde ele estava afundando lentamente.

“Foi Damien que bateu à porta. Abri para ele...” Respondeu também lentamente, tomando consciência de que falava apenas quando a frase já era pronunciada.

“Damien está morto, Patric.” A voz do vampiro tremulou um tom de raiva, mesmo que sua expressão permanecesse fria e inabalável.

“Não, Ivan.” Patric fechou os olhos, suspirando longamente como se ao conseguir desviar-se do olhar do vampiro também se libertasse de um peso em seu peito. “Não, Ivan. Foi Damien que cuidou de mim esses três dias... Damien não..”

“Cala a boca, Patric!” A voz do vampiro elevou-se, seu olhar brilhando de uma maneira que Patric não lembrava de já ter visto.

“Mas ele... estava aqui!” Patric tentava afastar-se de Ivan, dando passos incertos e curtos para trás.

“Damien está MORTO!” O vampiro avança de uma única vez, agarrando-o pela garganta e jogando-o contra a cabeceira da cama. “Ele está morto!” A bandeja com os restos de comida tombou ao chão com um som metálico. “Por que a porta estava aberta? Eu mandei deixa-la trancada!!!”

Patric não conseguia respirar. A mão de Ivan apertando-o cada vez mais contra a cabeceira de madeira da cama, seu corpo afundando no colchão com a pressão da outra mão do vampiro sobre seu peito. A face de Ivan se distorcia, mostrando perigosamente as presas na boca aberta ameaçadora. Por mais que Patric apertasse o braço do vampiro e fizesse força para afastá-lo de seu pescoço, mais ele tinha a sensação de suas forças desaparecerem frente o medo que sentia. Nem quando foi atacado, deixado para morrer em sua sala, sentira tal pavor. Mas estranhamente não era medo do vampiro, não de que ele pudesse feri-lo. Era um indescritível medo que parecia vir do vampiro para Patric, um medo de algo que não estava ali, que ele não conhecia.

E então tudo silenciou-se e estagnou. Ivan estava novamente à porta do quarto, encarando-o inexpressivamente e Patric arfava sobre a cama, tossindo e recuperando o fôlego aos poucos, sentindo o tórax e a garganta arderem violentamente. Os dois se encararam ainda por um longo tempo em silêncio, como se estudassem o que acabara de acontecer.

“Se Damien está morto...” As palavras saíam com dificuldade pelos lábios do homem, quase inaudíveis a outro humano. “Quem...?” Patric se esforçava contra a dor em sua garganta, mas antes de terminar a frase Ivan já o respondeu.

“Damien está morto, Patric. E eu disse para você não tentar procurar mais respostas além dessa.” Ele se aproximou do homem, parando a alguns passos da cama. “Tem coisas que são perigosas de mais para serem conhecidas.”

“Mas...” Patric dizia entre a respiração ainda carregada. “Eu quero... saber...”

“Não, Patric.” Ele o fez calar-se com o olhar. “Eu já te contei o que eu podia contar. Na verdade, eu te contei muito mais do que qualquer humano deveria saber, e as leis da minha espécie não me permitem isso. Não imagina que podemos estar condenados por isso?” Patric fez menção de protestar, mas Ivan continuou, calando-o. “Eu pretendia mata-lo depois de tudo que eu contei. Eu sabia que iria me arrepender ao deixa-lo vivo...”

“Então me mate!”

“Não.”

“Por quê?”

“Você quer morrer?” A pergunta atingiu-o diretamente e Ivan o encarou por um longo tempo esperando a resposta que sabia que não viria. “Não é que eu não queira te matar, Patric. Por enquanto eu não posso. Eu não vou conseguir...” calou-se.

Não vai conseguir?”

“Esquece.” Ivan sentou-se ao lado da cama, Patric fez o mesmo, deixando transparecer claramente que sentia dor ao mover-se. “Escute bem, Patric. Amanhã você irá sair dessa cidade, desapareça e não pense mais em nada do que se passou aqui...”

“Não!”

“Eu estou tentando...”

“Não, Ivan! Aquilo não era um vampiro. Eu só quero saber o que veio aqui!” Ele chegava a gritar com o ser sobrenatural. Ivan o encarou longamente, em silêncio, observando-o arfar com o esforço. Suspirou e desviou o olhar.

“Não importa o que era aquilo, Patric. Eu não posso te dizer.” Ele havia colocado a vida de Patric em risco no momento que resolvera deixa-lo vivo. Ivan sabia perfeitamente disso, mas não esperava que o perigo estivesse tão próximo.

“Mas não era um vampiro, era? Ele veio ainda de dia. O sol ainda estava no céu... você disse que o sol...”

“Foi apenas sua imaginação, Patric. Pense assim e tudo vai fazer sentido.” Mentiu. Seria melhor mesmo que fosse a imaginação do humano e nada mais. Ele sabia perfeitamente dos sonhos que o homem tivera com Scarlet, conhecia as ilusões com um filho e uma família desejada pelo humano. Por isso se via impossibilitado de matá-lo. No momento que tentou solver de Patric seus sonhos e desejos, o humano apenas o mostrou um profundo breu. No entanto, quando foi deixado à beira da morte, as imagens desses desejos tornaram-se realidade na mente Patric. Ivan estava de fora disso e mesmo assim pode sentir, e ver, esses anseios. Aquilo estava além de seu poder. A partir do momento que decidiu deixa-lo vivo, perdeu qualquer direito sobre a morte do homem.

“Mas não era minha imaginação...” Patric disse, depois de algum tempo pensativo.

“E eu não posso te dizer... As leis do meu povo...”

“Dane-se! Tem mais coisas que você não quer me contar! Por que não? Você por acaso inventou essas malditas leis!?”

Ivan se levanta em silêncio e afasta-se de Patric. “Eu posso contar-lhe o que diz respeito a mim. Já me arrisco fazendo isso. Mas não posso contar além. Isso irá além de meu poder...” Patric silenciou-se quando seus olhos se encontraram com o negro dos olhos do vampiro. Um profundo sentimento de culpa emanava daqueles olhos. “Eu já te avisei, não posso falar sobre outros vampiros, nem sobre nossa existência. Contei-lhe minha história, enquanto ela era somente minha. Quando ela passou a fazer parte da história de outros, não posso continuar. Não tenho esse direito. Deveria ouvir-me e desaparecer daqui. Esquecer sobre tudo o que te falei, esquecer nossa existência...”

O humano abaixou o rosto, sentindo que de alguma forma ele compreendia o que o vampiro tentava dizer. Compreendia o poder que envolvia as palavras do ser sobrenatural. Suspirou, observando o chão em silêncio, percebendo que seu corpo tremia, não de frio, mas por algo como um presságio. Voltou-se novamente para o vampiro, que nesse instante deslizava em seus passos leves para próximo da janela, em frente a Patric.

“Isso tem algo a ver com o seu passado? Algo a ver com o tal Príncipe que Antero disse?”

Ivan encarou-o longamente. Daquela vez ele disse que não poderia falar sobre tal criatura, pois ele mesmo não conhecia toda a história. E principalmente por não ter tamanho direito de falar o que quer que fosse sobre outros seres. Antero estava morto, não fazia diferença... Foi o que o vampiro tinha imaginado... Mas será que ao falar de Antero ele reatou o laço que havia se partido? E se relembrar Antero estivesse trazendo o passado de volta de uma forma que fosse além daquelas conversas? Ivan começava a ver que havia muitos mais mistérios além do que ele pudesse entender, além do que ele pudesse imaginar... Ele estudou cautelosamente o humano, suspirando depois de um longo silêncio.

“Existe muito mais coisas do que um mortal pode arriscar-se a conhecer.” O vampiro falava olhando para a noite, e Patric prestava atenção a cada palavra e gesto do ser. “O crepúsculo. Principalmente durante o crepúsculo, do amanhecer ou anoitecer, você deve manter sua mente alerta, não deve pensar em nada a respeito de qualquer experiência que teve nos últimos dias.” O vampiro o encara, pronunciando a pergunta que estava na mente do humano. “Por que o crepúsculo? Porque esse é o momento em que os mundos se interligam. O mundo da Noite e do Dia. A ponte entre a Luz e as Trevas... É neste momento que os anjos e os demônios vagam sobre a Terra...” Suspirou, fazendo uma pausa dramática e voltando-se para a janela. “Ou entenda como quiser, eu não saberia explicar-lhe mesmo. É misterioso também para mim...”

“Então vampiros podem levantar-se durante o amanhecer ou o anoitecer? Ou era um...”

“Não, Patric! Pare de fazer perguntas! Nós, os vampiros, não podemos sair à luz do sol ou morreremos queimados! E não sei se existem atualmente anjos ou demônios vagando por este mundo, nem sei se algum dia existiram! Eu não tenho todas as respostas, Patric!” Ele encarava o homem com notável impaciência. “Eu te respondo uma pergunta e você já me vem com várias outras... Maldição...”

Ambos encaram-se longamente. Ivã procurando um ponto que pudesse cortar aquela linha de pensamentos. Patric tentando desvendar o que poderia deixar uma criatura tão poderosa como Ivan, vulnerável como agora aos sentimentos de raiva e preocupação.

“Você não deveria tentar compreender nada mais... você deveria tentar desaparecer daqui... Mas talvez isso nem tenha mais importância. Talvez nem seja mais possível fugir...” O vampiro resmungou mais para si mesmo e fez-se um novo silêncio enquanto ele mirava os olhos do humano.

“Acredita em destino, Patric?”

“Não...”

“Eu também não. Mas talvez todos esses acasos em nossos encontros estivessem predestinados... Bem, não sei, realmente...”

O vampiro calou-se deixando no ar uma impressão de que muita coisa ainda escondia-se nas entrelinhas de suas palavras. O que o destino ou o acaso poderiam significar para um vampiro? Patric novamente sentia aquele frio percorrer seu corpo e então seu acelerou os batimentos. Medo. Alerta.

Ivan ouviu os batimentos acelerados do homem e voltou-se para a janela. Observou o exterior longamente antes de esquadrinhar mais uma vez o quarto em busca de algo ao qual Patric ignorava.

Os olhos negros fixaram-se na tigela de comida podre caída ao chão e nas larvas que se espalhavam pelo carpete onde a carne escura e imprópria estava. Agachou-se e mexeu no alimento estragado, o que fez Patric fechar os olhos com asco.

 “Você andou comendo isso?” A voz do vampiro veio em uma pergunta que pareceu simples, mas atordoou estranhamente o humano.

Patric encarou por um instante, em silêncio, a alimento espalhado ao chão, as larvas e então os olhos negros do vampiro. Ele não sabia a resposta. Não sabia se comera algo ou há quanto tempo estava em jejum, nem mesmo quanto tempo se passara ele poderia dizer. Cobriu o rosto com as mãos e apertou as têmporas.

“Eu não sei! Eu... eu não sei...” Gritou, e a voz foi perdendo-se lentamente. Ainda com o rosto coberto, olhou para Ivan entre os dedos e esse se aproximava dele cautelosamente.

“Logo amanhecerá, Patric. Mantenha-se desperto até que o sol esteja alto e então compre comida. Você precisa se alimentar, Patric... Precisa se recuperar.”

E assim que o vampiro colocou a mão no ombro do homem ele teve a certeza que, sim, estava completamente debilitado e voltara a sentir febre, além do cansaço e o estraho desespero em seu peito.

Patric lembra-se apenas vagamente da recomendação repetitiva de Ivan ao mandar-lhe fechar a porta e não deixar ninguém entrar. Lembra-se do vampiro desaparecendo por sua janela e ele a fechando. E lembra-se do azul escuro e enevoado da noite e do amanhecer branco e nublado.

E a neblina e o amanhecer brilhantes tinham algo a ver com a silhueta do garoto de cabelos loiros... ou pareciam loiros pela luz do amanhecer? O garoto sorriu e disse algo a Patric que ele não conseguiu ouvir, mas algo que o deu a certeza que ele ficaria bem.

Talvez, Patric acreditou, o garoto Damien fosse um anjo do crepúsculo. Mas porque Ivan parecia temê-lo como a um demônio?

Vampiros, talvez, temam anjos...

 


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Notas finais do capítulo

-x-x-x-x- -ooOoo- -x-x-x-x-

N/A: Gente... eu nem tinha visto que o Nyah! tinha voltado!!!
Desculpem mesmo pela longa demora com esse cap, mas acho que consegui organizar umpouco minhas idéias, apesar de ter certeza que eu ainda vou querer revisar muita coisa e que o próximo cap talvez demore tanto quanto este...
Espero que entendam, vê que as coisas estão realmente complicando para Patric e podem ter certeza, essa é uma das partes da fic que eu mais gosto, se não minha favorita... Por isso tenho um carinho especial por essa saga que está se iniciando na vida de Patric e na não-vida de Ivan! ^_^
Um grande abraço a todos!!!

Coy



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