Renegada escrita por Zoë


Capítulo 2
Escolhida




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"E ora ideias que em vão repeles, ora
visões que não apagarás da mente,
povoarão tua alma eternamente,
como na relva o orvalho, em prantos, mora."

Edgar Allan Poe–- Espiritos dos Mortos

1.

Inverno/2009

"Julia Mulligan," A voz familiar ecoou em uma parte ainda adormecida de seu cérebro. A garota tinha sua cabeça apoiada em seus braços na carteira escolar. Seu rosto sardento praticamente coberto pelas mechas que caíam de seu cabelo louro, deixava evidente, de uma forma de quem nem ao menos estava tentando disfarçar, que a aula de Geometria do Sr. Rivera não estava lhe interessando o suficiente para se manter desperta. Ou pelo menos de olhos abertos. "Essa é a terceira vez neste semestre que tenho que acordá-la em minhas aulas. Eu deveria levar isso para o lado pessoal?"

Ela lutava para manter os olhos abertos ao levantar a cabeça prontamente, limpando com a manga de sua blusa um rastro de baba que caía do canto de sua boca. Julia olhou para os lados e percebeu alguns pares de olhares que a fitavam com aversão.

"Desculpa," ela respondeu, ainda meio grogue "não é você, sou eu." e deu de ombros.

"Evidentemente é você." Retrucou o professor. Ele se virou, resmungando sobre algum tipo de "política de duas vezes", de que não haveria uma terceira vez, caso contrário, ela seria expulsa de suas aulas. Julia gelou em seu lugar, tentando retomar sua atenção para os montes de cálculos e figuras que preenchiam a lousa. Nada fazia sentido.

Nada fazia sentido em nada.

Ela olhava ao seu redor, e nada fazia sentido. É como se ela ainda estivesse imersa em seu subconsciente. Talvez dormir fizesse mais sentido, embora os poucos minutos que conseguia tirar de sono já fossem artigos de luxo em sua vida.
Julia vivia na dúvida, na esperança de fugir para longe dali. Não era tão ruim assim, embora ainda precisasse de respostas.
Sua vida nem sempre foi assim.

Verão/2004

Assim como a maior parte das coisas inesperadas -- ou, pelo menos, a maioria das que presenciamos -- aquele acontecimento a atingiu como uma bola de demolição (e não, eu não estou falando do tipo de bola de demolição que aquela mulher que quando garota usufruía do melhor de ambos os mundos costuma cantar sobre) contra sua vítima. Ou pelo menos, a arrastou para o outro lado do sótão onde antes assistia à desenhos animados com seu irmão caçula.

A pequena garota loura de dez anos tinha seus olhos concentrados na pequena tela de TV de um modelo dos anos oitenta que chuviscava mais do que transmitia. Em um segundo, estava sentada no sofá ao lado do pequeno Vince. Em outro, seu corpo raquítico aterrizava no chão do outro lado do porão; suas costas atritando com o chão, e sua cabeça atingindo a parede macilenta de cimento que cessou seu grito ao instantaneamente apagá-la.

Poucos minutos depois, uma Debra Mulligan ligeiramente sobe às escadas após ouvir o grito de sua primogênita.


"Santo Deus!" ela levou sua mão até a boca em exaltação ao encontrar o corpo desmaiado de Julia esparramado ao lado da parede, um rastro de sangue da fresta em seu couro-cabeludo escorria em sua testa. Debra prontamente se dirigiu a Vince e o segurou em seus braços antes de se voltar para a garota. Seus olhos se encheram de lágrimas, sua garganta fechou em pânico, tentando assimilar o que havia acontecido. O que diabos havia acontecido, afinal?, sem hesitar, começou a gritar, pedindo por ajuda. "Phillip! Phillip, venha logo aqui! Oh, meu Deus,"

No entanto, não tenha sido assim que a maioria das Caçadoras tenham recebido seus poderes. A maioria delas apenas se sentiram preenchidas por uma força suprema, enquanto outras foram atingidas por uma tempestade de memórias. Contudo, também houveram algumas outras não-tão-sortudas como Julia, que foram repentinamente nocauteadas por um Mike Tyson imaginário. Sem um aviso prévio, ou alguma explicação lógica.

Quando Julia abriu seus olhos novamente, estava em uma cama de hospital, rodeada de pares de olhos curiosos e preocupados queimando buracos em seu rosto.

"Por que é que todo mundo tá me olhando?" perguntou ela, sua voz áspera passou rasgando por sua garganta.

Um suspiro de alívio soou em coro quando a observaram acordar. "Você se machucou, não se lembra? O que foi que aconteceu? Como você foi se machucar assim? Quantos dedos tem aqui? Você sabe quem sou eu?"

Ainda um pouco grogue, Julia franziu o cenho com a tempestade de perguntas derramadas por sua mãe.

"Eu vou chamar um médico" anunciou uma voz familiar, que assim que recuperou sua visão, Julia reconheceu como a de seu pai. Ao lado esquerdo da cama, Tio Pete e Tia Bevin também se encontravam.

Debra se ajustou ao seu lado, meticulosamente alcançando sua mão para segurá-la. Mal sabia do quão importante esse último momento de afeição seria desde então.

"Os demônios… e os homens maus… E-eles tavam querendo me matar," Julia começou a balbuciar, ampliando os três pares de olhos que se encontravam nela em espanto. "Ele queria me matar, então eu cortei a cabeça dele. Eu cortei a cabeça dele e depois eu morri… Eu morri de novo."

Os três adultos se entreolharam, e Tia Bevin foi a primeira a se proferir

"Que que a bichinha tá falando?"

"Devem ter batizado esses medicamentos." Pete gesticulou para o soro injetado ao braço da garota.

"Querida, do que você está falando?" Debra soltou da mão da garota ao repetir a pergunta.

Mas Julia não respondeu. As memórias implantadas lampejavam diante de seus olhos, como imagens de um filme de terror que seus pais nunca a permitiriam assistir, mas a mesma ainda assim via algumas velhas cópias de VHS em segredo com seu melhor amigo quando passava a noite em sua casa.

Exceto que essas memórias não eram filmes. Elas eram reais, e não apenas imagens… Ela podia senti-las.

Primeiramente havia um demônio, que mais parecia um homem na era vitoriana. Seu rosto era distorcido em um sorriso perverso, seus olhos de cor âmbar penetravam nos dela na escuridão, semicerrando-os ritmicamente com os da jovem, desafiadores.

Ele se movia com tanta agilidade que ela mal conseguia alcançar suas vestes com o objeto de madeira pontudo que pulsava em sua mão esquerda. Tudo o que ela tinha que fazer era alcançá-lo no ponto marcado em seu peito e fincá-lo até que sua extremidade pontiaguda atingisse o coração morto do dito monstro, e depois, ela iria simplesmente o assistir se transformar em uma pilha de cinzas.

Mas como ela sabia disso?

Em seu sonho, ou "memórias", seja lá o que fossem, ela sabia exatamente o que fazer. Ela era confiante, determinada, como se não fosse si mesma. Como se fosse outra pessoa.

Embora habilidosa, ela ainda não foi rápida o suficiente; o homem de rosto desfigurado se desviou e a alcançou, segurando-lhe por trás; um braço possessivo ao redor de seus ombros.

Ao invés de relutar, ela simplesmente se conteve. Fechou os olhos e deixou a corrente levá-la… Uma parte em seu interior precisava daquilo. Uma parte gritava desejando pela morte, para que assim se libertasse da miséria que fora condenada a viver.

As presas do homem perfuraram seu pescoço exposto, rasgando aos poucos suas veias jugulares, uma por uma, amenamente se alimentando de sua vida. Depois, já saciado, a criatura a abandonou inconsciente para morrer, deixando a ruela com um sorriso sangrento estampado no rosto.

No outro sonho, o demônio não se parecia com uma pessoa, mas com a ideia de um troll. A criatura era enorme, sua pele amarelada e enrugada causava um arrepio de desconforto em Julia -- ou seja lá quem ela fosse dessa vez.

Suas enormes mãos se configuraram para esmagá-la com uma enorme rocha enquanto ela deitava em suas costas, rapidamente rolando no chão para resgatar sua espada. Ela se elevou novamente em um simples impulso, levantando em seus tornozelos e correndo em direção ao ogro, naturalmente o escalando até alcançar sua caixa torácica. A partir dali, deixou a espada terminar seu trabalho. Posicionou-a no lado direito do espesso pescoço da criatura, e empurrou a lâmina no sentido horizontal, decapitando-o. Em alguns segundos, o corpo gigantesco tremulava o chão ao cair abruptamente ao lado de sua cabeça colossal.

Um grupo de aldeões segurando tochas e jogando lanças na direção da garota e do ogro se aproximava aos poucos, imediatamente cessando seus ataques assim que avistaram o cadáver.

"Nid oes angen i'w ofni. Eich bod yn ddiogel yn awr.*" Julia não tinha a mínima ideia do que havia acabado de falar, mas seja lá o que foi, pareceu despertar um tipo de motim comemorativo.

Os aldeões pulavam e aplaudiam em celebração. Ela sentia um sorriso crescer em seu rosto, e uma confortável onda de calor no peito, seguida por uma lança lhe perfurando. Em segundos, o gosto de sangue coagulado banhou sua boca.

"Nawr mae'n rhaid i'r diafol go iawn yn marw.**" disse uma voz masculina da qual ela não pôde se virar para ver de onde vinha. Julia caiu de joelhos e assistiu, pela última vez, os semblantes contentes de sua vila se desmancharem em pavor.

E depois ela morreu. De novo.

Julia abriu os olhos novamente, encontrando-se murmurando as palavras estrangeiras entredentes enquanto havia adormecido novamente.

"Dood is my geskenk. Ich muss meine Pflicht zu erfüllen.***" Resmungou, o quarto girava ao seu redor.

Debra, ainda ao seu lado, pigarreou desajeitadamente. "Santo Deus, eu não a entendo!"

"Ela não sabe o que tá falando, não vê que a menina tá atordoadinha? Deixem a pobrezinha descansar em paz!" Receitou Tia Bevin.

E então ambas se retiraram.

...

Na sala de espera, Debra e Bevin reabasteciam pela terceira vez seus copos de café.

"Malditas amostras de café barato," reclamou Debra, automaticamente mudando sua atenção para o médico que vinha ao seu encontro.

"Sra. Mulligan?"

"Sim?" Respondeu ela, "aconteceu alguma coisa?"

Ele franziu o cenho, voltando seu olhar para uma prancheta em suas mãos. "É sobre isso que precisamos falar. Você poderia me acompanhar? Tem algo que precisamos mostrá-la."

*"Não há necessidade de temer, vocês estão seguros agora." (Galês)

**"Agora o verdadeiro demônio está morto."(Galês)

*** "A morte é meu presente." (Afrikaans); "Eu devo cumprir o meu dever." (Alemão)


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Notas finais do capítulo

Críticas construtivas + feedback seriam muito apreciados, etc. ^-^
p.s.: eu acredito que isso não esteja muito bom, meio objetivo demais, porque a princípio eu comecei escrevendo no formato de um roteiro. anyhoo, é o primeiro draft traduzido que eu tenho, e eu preciso de uma motivação pra continuar essa história, so yeah. heh



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