Crônicas do Pesadelo {Interativa} escrita por Dama dos Mundos, Kaline Bogard


Capítulo 58
Desejos


Notas iniciais do capítulo

Volteeeeeeei, mais cedo do que todo mundo esperava, certeza disso.
A empolgação venceu, e escrevi esse capítulo de uma vez. Como prometido, está bem grandinho, mas com isso finalizamos esse arco.
Espero que divirtam-se lendo. :3



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A luta entre aqueles dois continuava, embora aquilo parecesse mais um massacre. No fim, Loke não parecia capaz de fazer frente a Lady Sem Nome, tendo que manter-se recuado. Suas sombras não chegavam sequer a tocá-la. Ele havia fortalecido-se, sim, mas não o suficiente para suportar aquela barreira maciça em forma de garota. Ao mesmo tempo, porém, sua atração por ela crescia na mesma medida que o receio. Ele tinha a tendência de desejar as mentes mais psicóticas e corrompidas, se seu cerne não fosse a traição, poderia mesmo acreditar que era filho de Lars… A ganância, o querer desenfreado.

O Seguidor do Pesadelo não era nem um pouco virtuoso, olhando de qual ângulo fosse. Não era a toa que tomara todas as decisões erradas durante sua breve estadia no mundo. Ele vira o suficiente para descobrir que, se queria gerar caos, era necessário apenas remexer alguns pauzinhos. Como uma casa, quando as pilastras de sustentação caem, não fica nada de pé.

Loke sempre amara sua vida acima de qualquer outra coisa, possível e imaginável, mas aquela sua paixão por coisas insanas acabaria matando-o. O fato de morrer para aquele belo corpo, sendo Nyx que puxava suas cordas ou não, o irritava. Isso soava como uma daquelas tragédias românticas de péssimo gosto, e ele jamais aceitaria tornar-se protagonista de uma peça assim. Ainda que sua obsessão o impelisse sempre em direção a ela, no fim, entre todas as vidas naquela ilha, a dele ainda era mais valiosa.

Se for preciso que todos morram para que ele tenha uma chance de sobrevivência, que assim seja.

Foi com esse pensamento que ele decidiu ir para cima em vez de manter-se apenas na defesa. Projetou diversas lâminas para atacá-la, tantas quantas conseguia controlar sem perder o foco, e arremessou-as de uma só vez contra a criatura. Ela, contudo, só precisou fazer um gesto em frente do corpo para que estas se desfizessem novamente.

O minuto breve de distração foi suficiente para que ele conseguisse aproximar o suficiente do corpo dela por trás para lhe dar um golpe fulminante no pescoço. Loke teve a certeza de que ela não notara o movimento, pois seu foco continuava preso à frente, onde antes ele estava. Ainda assim, quando a lâmina sombria foi pressionada contra o seu pescoço, num movimento que arrancaria a cabeça de uma pessoa normal, nada aconteceu.

Ela dissolveu-se como se fosse fumaça.

— Que Surm a carregue… — protestou, notando que agora ela vira-o de verdade, e sendo atirado longe por mais uma dúzia de correntes.

— MeLhOr ReZaR pArA sEu DeUs CoRrOmPiDo. ImPlOrE pElA sAlVaÇãO dE sUa AlMa PoDrE. — a voz distorcida ditou, num ritmo que lembrava um cântico. — PeLo MeU jUlGaMeNtO éS… cUlPaDo. — ela mais uma vez balançou a foice, errando-o por bem pouco, graças a um escudo feito de sombras. Este não durou muito, como o resto, mas ao menos impediu-o de ser partido em dois.

O lugar ao redor deles estava cada vez mais destruído. O Castelo criado pelo Deus do Desespero, Zereff, lentamente ruía, e logo não sobraria nada dele. Que força era capaz de colapsar até mesmo a maldição de um deus?

A resposta chegou como um baque em sua cabeça, junto ao golpe final da Insanidade. Murmurando em devaneio muitas e muitas vezes a palavra “retalhar”, a mulher havia saltado no ar e descido um golpe violento com a foice sobre ele, algo impossível de se esquivar. Instintivamente, Loke desvaneceu seu corpo, embora soubesse que seria praticamente inútil. O Castelo rachou em dois, assim como a Ilha, perdendo seu ponto de equilíbrio e começando a descer, perigosamente, em direção ao gramado lá em baixo.

 

oOo

 

Minutos antes:

Enquanto os Seguidores batiam de frente com Selene, Ryan e Sean, na tentativa de recuperarem a Chave Principado do Ar, atualmente no poder de Neco, o estado de Frosty piorava a um nível próximo de não haver mais volta. Trixia sentia isso na pele, os calafrios violentos e a vontade de fechar os olhos e deixar que tudo simplesmente acabasse. A falta de forças levara-a a escorar-se em um dos blocos da montanha de entulho, abraçando desconsoladoramente o próprio corpo, numa tentativa inútil de se esquentar.

Lidrin permanecia ao lado dele. Não tinha certeza se a morte do elfo poderia levar à da amiga por causa do vínculo, e também não queria pensar nisso. De qualquer jeito, não poderia fazer nada por ela, assim como não podia fazer nada mais por ele. O tempo se esgotava. O próprio lugar em que estavam parecia prestes a destruir-se. — Não há nada a ser feito.

— Como não há nada que pode ser feito? — Anne protestou, erguendo a voz. — Sempre tem uma saída, tem de haver alguma coisa! Você é um djinn, não é?

— Eu estou debilitado demais. Não sobrou magia suficiente para quebrar a maldição. — ele respondeu, também elevando seu próprio tom. — Você acha que gosto de ver isso acontecer? Acha que eu fiquei tranquilo enquanto você virava uma estátua de pedra?

— Vocês me trouxeram de volta, não trouxeram!?

— Eu não tive nada a ver com isso. Eu tentei, como me imploraram para tentar! A nossa única chance era Etherea, mas ninguém cogitou a hipótese de trazer uma flor a mais, pelo visto!

— Parem de gritar vocês dois! — Trixia bateu contra o chão com uma das próprias mãos. — Nós… nós não sabíamos… as coisas que vimos hoje… ninguém poderia imaginar que isso aconteceria. — ela forçou-se a não bater os dentes de frio. — Nós precisamos fazer… o que estiver ao nosso alcance… para prevenir… o pior…

— Você provavelmente não vai morrer também. Essa dor que está sentindo vai acabar quando o Frosty se for… por que se preocupar? — A elfa mais jovem disparou, ríspida. Em sua defesa, as crianças geralmente não sabem o que dizem, principalmente em situações de pura tensão.

— Não estou preocupada com a dor… se transformar é… muito pior do que isso. — a jovem de cabelos negros estreitou os olhos claros em direção de Anne. — Mas ele… Frosty… não merece morrer. Ninguém merece essa sensação… de impotência… e a ideia de perder alguém… — seu olhar focou-se em outra direção, onde Selene arfava, com custo tentando separar o que era real ou não em sua luta. Liam a castigava com ilusões a todo momento, mas a elfa de fogo tinha muito mais técnica em batalha do que ele. Uma barreira de chamas separava o grupo que lutava dos que guardavam Frosty, mantendo os inimigos afastados o máximo possível.

Por que Trixia estava sentindo pena dela, afinal? A “bruxa” das chamas, que quase incinerara sua mãe, que fizera seu pai e ela sofrerem tanto, com aquele mesmo sentimento de vazio e impotência. Que fizera com que desejasse sua desgraça a cada segundo, mesmo depois do teleporte malfadado de Lidrin, dias atrás. O teleporte que mostrou memórias e sentimentos de cada um dos envolvidos, que mostrou-lhe que a elfa, definitivamente, não tivera a intenção assassina desde o início (não com relação a sua mãe, pelo menos).

Selene deveria saber muito bem o que era ser devorada pela culpa. Nem ela merecia passar por aquela incerteza. Aquela agonia que pairava no ar quando alguém amado estava próximo da morte. A jovem fechou os olhos, deixando escorregar algumas lágrimas. — Vamos manter a esperança até o fim.

Nesse momento, Neco, também com o rosto repleto de lágrimas e soluçando tanto que era-lhe ainda mais difícil de falar, agarrou a manga de Lidrin, chamando por sua atenção. Ela murmurou algo muito baixinho, soltando a mão que segurava a de Frosty para levá-la ao peito, na altura do coração.

— Neco?

Ela repetiu as palavras, minimamente mais alto desta vez. Ainda assim, era possível ter uma noção do que ela dizia apenas observando seus lábios mexerem-se.

“Use meu desejo”

— Você não pode estar falando sério… viu o estado de Nyx? E não há garantia de que vai funcionar para o Frosty quando não funcionou para Anne…

“Eu quero. Esse é o meu desejo.”

Ela voltou a mexer a boca, batendo mais uma vez de leve contra o próprio peito. Lidrin fechou os olhos, como se estivesse em um belo duelo mental, o que não aconteceria novamente, afinal sua parte maligna tinha sido descartada. Ele não sabia se tinha força o bastante para finalizar o ritual… e não sabia se isso resultaria de alguma melhoria para Frosty. Sua cabeça doía bastante, e Trixia também estava em perigo. Mordendo com força o lábio inferior, o djinn voltou a abrir os olhos, decidido. — Eu faço.

— O que…? — Trixia ergueu seu olhar para ele, apavorada. — Você não vai fazer… um contrato com ela!

— É tarde pra isso. — Neco murmurou, um pouco mais alto que antes. Ergueu a mão direita, onde uma fina linha de energia esverdeada circulava seu dedo anular. — Nós já temos um contrato.

A shifter uniu ainda mais as sobrancelhas, chocada, e com dificuldade desencostou-se da parede para tentar parar aquela loucura. — Lidrin… ela vai perder a própria alma. Como você pôde concordar com isso?

— É uma história longa demais para discutirmos agora. — ele fez sinal para que Anne, que estava mais perto, afastar-se, assim como Trixia. Em seguida, sua mão começou vários movimentos em pleno ar, sobre o corpo do elfo, dando voltas e rodopios, seguindo um desenho que mais ninguém poderia ver. — Talvez o fato de tanto ele quanto você estarem por perto e a maldição ainda não ter se consumado seja relevante. Na verdade, melhor que rezemos aos deuses para que seja. — dessa vez falava diretamente com Neco, que mantinha-se no mesmo lugar. — Peça.

— Eu desejo que Ichabod Janus Frost seja curado. Independente dos caminhos que use para tal feito.

Imediatamente, uma névoa verde foi libertada dos dedos do djinn. Ela serpenteou pelo ar, pelo mesmo caminho que ele havia traçado antes, e espalhou-se, mantendo-se sobre o corpo de Frosty. Uma névoa vermelha começou a surgir diretamente sobre ela, como se tentasse entrar na redoma protetora que acabara de ser formada sobre o elfo, mas era fortemente repelida. Incapaz de finalizar seus intentos, a fumaça avermelhada, pareceu ir aos poucos escasseando, até não restar um vestígio sequer.

A névoa verde voltou à mover-se, compactando-se e entrando de uma só vez no corpo enfermo, pela boca e as narinas. Só então ele mostrou algum sinal de resistência, voltando a sofrer os espasmos de minutos atrás, contorcendo-se e ofegando. Vários pares de olhos, nervosos e preocupados, fixaram-se nele, enquanto Trixia também parecia sentir o tal sufocamento que o atingia. Ela levou as mãos a garganta, abaixando a cabeça, como se isso melhorasse sua respiração descompassada. — Li… drin…

— Acalme-se.

Fácil falar…

Ela pensou, entre engasgos e um mal estar que só piorava. Observou o parceiro, apático, ainda sofrendo convulsões, e fez uma prece silenciosa à Deusa Irmã para que tudo desse certo.

Talvez os deuses estivessem mesmo do lado deles aquela vez, porque alguns segundos depois a fumaça voltou a deixar o corpo dele, pelos lábios, agora num tom acinzentado, rodando no ar em seguida como um tornado, para depois desaparecer sem deixar rastro algum. Trixia sentiu a dor suavizar e o frio ceder um pouco. Cuidadosamente, tossindo um pouco, levou a mão à testa de Frosty, testando novamente a temperatura. — Está… caindo…

Não foi a única coisa que caiu, como era de se esperar. A segunda da lista foi Neco, exausta, principalmente depois de ter seu desejo realizado. Anne adiantou-se para ampará-la na queda, logo sendo acalmada pelas palavras de Lidrin, que afirmava que ela ficaria bem se não se esforçasse mais por hora.

A terceira coisa que despencou foi Loke… assim como tudo a sua volta.

 

oOo

 

Em algum lugar próximo à Ilha Flutuante-Recém-Partida:

 

Duas figuras observavam enquanto as partes da morada de Samira aproximavam-se cada vez mais do chão. Elas caiam em uma velocidade mais lenta do que era esperado, talvez fosse o resto de magia que impedia o colapso total. Contudo, rachaduras aumentavam cada vez mais em ambas as partes, como se algo as corroesse, de dentro para fora.

Ambas trocaram olhares, enquanto suas bocas se moviam.

— Acho que devemos interferir.

— Creio que devemos, realmente…

— Mas ela não vai se zangar?

Ela vai se zangar se não lhes dermos nenhuma esperança.

— Hum… você tem razão.

— Alguma de nós tinha de ter.

A dupla desconhecida deu as mãos e ergueu-se no ar, contemplando toda aquela catástrofe por um tempo, antes de dirigirem-se a ela.

 

oOo

 

Apesar de se desvanecer, a pressão ainda foi suficiente para catapultar Loke até o chão lá em baixo. Se estivesse materializado, com toda certeza teria quebrado cada ossinho do corpo. Ele demorou um pouco para recolher suas moléculas e voltar a sua forma original – parte por ser um processo complicado normalmente, parte pelo cansaço extremo que sentia naquele momento. Deitado sobre a grama macia, podia sentir as pontadas de dor que estendiam-se numa linha reta, do seu peito até o tórax.

Ela havia acertado-o através da dissipação em sombras.

Que demônio mais adorável.

Jogou o corpo para a frente, colocando a mão sobre o ferimento. Era profundo, mas não o suficiente para matá-lo. Se estancasse a hemorragia, a maior parte dos seus problemas estaria resolvida.

Se ele tivesse recebido o golpe em sua forma original, de forma alguma teria sobrevivido. Mas aquele ferimento que ganhara de presente de sua mais nova amiga/rival não deveria existir. A menos que…

Uma risadinha nervosa deixou os lábios dele, logo tornando-se uma gargalhada. Retirou as vestes superiores que usava para passá-las sobre o corte, fazendo pressão e tentando parar de rir, afinal aquilo sem sombra de dúvida piorava a sua dor e o sangramento. — Então é isso… Haha!

Está se tornando cada vez mais interessante…

Um de seus planos bizarros e maquiavélicos começou a formar-se em sua mente, e ele não tentou impedir isso. Olhando para cima, para as partes da Ilha que flutuavam como plumas em direção ao chão – e felizmente cairiam longe dele, era possível notar – se perguntou se mais alguém sairia morto dali.

Não que se preocupa-se particularmente com aquilo, mas de acordo com seus cálculos, precisaria de uma ajuda de Liam em breve…

 

oOo

 

O choque fez com que absolutamente todos parassem o que estavam fazendo. Foi uma reação mais rápida do que a que houvera no desabamento que ocorrera mais cedo. O grupo que lutava pela Chave foi separado dos outros com o desmembramento da Ilha, o que fez cada um dos envolvidos separar-se de seu rival por um momento para ver o que estava acontecendo. Liam desligou suas ilusões, olhando para o estrago e reparando que Loke não estava mais lá.

Okay… isso não era nada bom.

Tanto Lyla quanto Kenai também haviam cessado seus ataques e reuniam-se a ele, como se aquilo fosse ensaiado. Era estranho como, de vez em quando, eles conseguiam agir como uma equipe de fato, e não como um bando de vilões tentando alcançar seus próprios objetivos.

— Já chega por hora.

— O quê!? — Seus dois parceiros questionaram, num único tom de voz revoltado, fuzilando-o com o olhar.

— Isso não está levando a lugar algum. Estamos apenas jogando tempo fora, assim como nossas energias. — Seus olhos correram em direção ao grupo na parte oposta da Ilha. — A Chave continua lá. E aquela coisa está a solta.

Estamos empatados em número de Chaves. De certa forma, ainda estamos ganhando, afinal as nossas já foram utilizadas. Há duas fechaduras abertas na prisão de Pesadelo, se conseguirmos a última Chave, teremos a vantagem. Além disso, só precisaremos roubar as outras deles, depois.

Ele lançou esse pensamento na cabeça dos outros dois, torcendo para que concordassem. Não tinha como convencê-los a base da força bruta. E controlar ambos parecia fora de propósito. Quando restaurassem suas funções mentais, com certeza iriam fazê-lo em pedaços.

Lyla franziu o cenho, ainda irritada, e voltou a observar os rivais. — Veremos quem vence na próxima.

— Como é? Acham mesmo que vamos deixá-los sair assim? — Ryan retrucou, apontando para eles, parecendo estranhamente empolgado. Sean, carrancudo como sempre, estava prestes a saltar ali no meio para recomeçar a pancadaria quando Selene o puxou pelo braço.

— Espere… atacar assim é loucura. — o ar a volta dela esquentou consideravelmente. Era capaz da elfa lançar um pilar de chamas em seus inimigos, mas o dedo apontado de Liam a desconcentrou.

— Vocês tem certeza que querem continuar?

Ele mostrava a outra parte do castelo, onde estava o restante dos Relicários. O trio viu que a Insanidade havia desistido de atacar Loke e tinha sua atenção voltada para o grupo que cuidava de Frosty. Aquilo fez com que a Mestra do Fogo recuperasse o suficiente da razão para parar a briga por conta própria. — Deixem eles. Temos a posse da Chave… e problemas maiores, também.

— Humpf… não por muito tempo. — Lyla piscou um dos olhos para eles, abrindo um sorrisinho malicioso. — Aproveitem bastante, lhes garanto que as coisas não vão acabar bem para vocês de novo. — ela fez um sinal de adeus com a mão, girando nos calcanhares e seguindo Liam, que já começava a andar em direção ao que restava da saída principal do castelo. Kenai, irritado, começou a xingar um milhão de pragas e seguir o mesmo caminho.

— Temos que sair daqui antes que as Ilhas colidam… — O líder alegou, estreitando os olhos. A falta dos óculos já estava começando a incomodá-lo bastante.

— E encontrar aquele inútil, se é que ele ainda está vivo. — A mulher alegou, referindo-se claramente à Loke.

— Ele está… vaso ruim não quebra fácil, afinal de contas.

— Estamos a metros do chão, Rato de Biblioteca. O que você sugere que a gente faça? — Kenai, que estava perdido em pensamentos – algo não muito próprio dele – voltou a resmungar.

— Ainda temos o “corvo”.

Os outros dois se entreolharam, para retrucar logo em seguida: — Nem fodendo que eu volto a voar naquilo.

— Ótimo. — ele já estava cansado daquilo. — Fiquem ai enquanto o que sobrou da Ilha desaba, se vocês sobreviverem a isso, quem sabe consigam sobreviver aquela garota também.

E continuou a andar, deixando-os para trás.

Não demorou muito para chegar ao local onde o Corvo tinha caído. A geringonça dava a impressão de que se desmontaria na frente dele, como sempre, mas dando algumas batidas na lataria supôs que ela aguentaria bem. Abriu a cabine com chutes, sentando na cadeira do piloto e prestes a ligar a máquina, quando sentiu alguém empurrá-lo para o lado, afastando-o para sentar em seu lugar. Viu Lyla adentrando o compartimento de trás e Kenai rosnando para ele. — Eu piloto. Com sua maldita miopia acabaríamos colidindo com algum monstro-fantástico-voador.

— Só espero que essa coisa não caia. Seria patético se fugíssemos da Emissária da Loucura e morrêssemos por causa de uma máquina defeituosa. — A mulher alegou, ajeitando-se o melhor que podia no pequeno espaço que havia ali. — Andem logo, temos que tentar salvar outros dos nossos da morte, não é?

Houve silêncio da parte dos outros dois quanto a isso. Kenai apenas ligou a geringonça, fazendo-a chacoalhar e levantar voo.

Ele claramente não estava no seu estado de espírito normal.

Se isso se devia a morte do filho ou ao encontro com a Lady Sem Nome, não dava para se ter certeza. Mas aquela situação mudara algo nele… e não dava para ter certeza se era para melhor ou para pior.

 

oOo

 

A Emissária da Loucura.

Alguém que não deveria existir.

Um ser repleto de rancor e insanidade.

Mais próxima de ser uma arma do que uma criatura.

 

Ela observava o ponto onde imaginava que o corpo de seu inimigo tivesse caído. Não era afetada pelos tremores à sua volta. Não dava atenção ao fato de que havia partido um Santuário em dois e que agora ele se dirigia para a grama lá em baixo. Na verdade, algo puxara sua curiosidade para trás de si.

Ela fungou um pouco, aspirando o ar, um cheiro, ou melhor, uma refrescante sensação atravessando seu corpo. Virando minimamente a cabeça na direção de ele vinha, algo em seu peito palpitou. — IcHaBoD… — o sorriso malicioso voltou a sua face, enquanto lágrimas negras escorriam de seus olhos, traçando marcas em suas bochechas. — aInDa EsTá ViVo… QuE bOm. — ela começou a caminhar em direção a eles, mantendo o equilíbrio mesmo com a inclinação que seu golpe causara. A foice arrastava no chão, abrindo um caminho tortuoso atrás de si e levantando um som irritante e assustador. — AsSiM vOu PoDeR rEtAlHá-Lo PoR cOnTa PrÓpRiA…

Frosty… está vivo…

O pensamento racional veio a sua cabeça. Ela afastou-o com desprezo.

Ela não era Nyx… ela detestava-o completamente. Detestava todos aqueles que davam força a sua outra metade para seguir em frente. Ela mataria cada um deles com requintes de crueldade, e só assim se sentiria satisfeita… na verdade, talvez nunca fosse capaz de satisfazer tanto rancor que pululava em sua mente desgastada.

Um rastro de chamas tentou mantê-la afastada, mas ela conseguiu desviar com maestria. Convocou mais uma vez suas correntes. Elas espalharam-se, tirando todos do caminho, independente de quem fossem. Pôde sentir a presença de um djinn… aquele djinn, a única criatura dali que teria força suficiente para pará-la. Lamentavelmente, ele não estava em sua melhor forma. Uma pena, afinal quanto mais demorada é a luta, mais divertida se torna.

Agachou-se sobre o corpo inconsciente dele, estendeu sua mão em garra na direção do seu peito. A razão em sua cabeça manifestou-se mais uma vez, fazendo-a parar o movimento.

Pare… não deve machucá-lo…

— NãO dEvO? e QuEm AcHaS qUe É pArA dEcIdIr IsSo?

Eu sou você…

— NãO. VocÊ nÃo É. vOcÊ é ApEnAs A aUsÊnCiA dE mIm. EsTáS a MoRrEr TaMbÉm… E nÃo É cApAz De Me PaRaR. — ela puxou a mão para trás, preparando um golpe. — dê AdEuS aO sEu MuNdO mOnOcRoMáTiCo E tOrTo, NyX.

Ela não reparou o movimento… talvez porque julgasse fácil matá-lo. Foi essa a razão que fez com que fosse atirada para trás por uma coluna de gelo, manifestada em pleno ar, como um ariete. A Emissária da Loucura cravou a lâmina da foice no chão, impedindo a si mesma de cair no abismo. Com um salto pôs-se de pé novamente, a raiva explodindo em seu peito com mais força que antes. — VoCê DeVeRiA sImPlEsMeNtE aCeItAr A mOrTe De UmA vEz.

— Não pretendo… — era a voz de Frosty que falava. Via-se o quanto ele estava indisposto e exausto, visto que quando virou o corpo para ficar de barriga para baixo, só conseguiu erguer-se com os dois braços no chão. — Você não usará o corpo da minha irmã para tirar a minha vida. Esqueça!

— O cOrpO dElA? mEdíOcRe. EsTe CoRpO sEmPrE pErTeNcEu à MiM. vOcÊ e MeU pAi QuE a CrIaRaM, cOm SeU mAlDiTo SeNtImEnTaLiSmO bArAtO. — sua aura voltou a crescer, levantando uma nuvem de poeira e destroços. — eU eStOu NoVaMeNtE lIvRe. PaRa MaTaR qUeM eU qUiSeR, pArA fAzEr O mEu TrAbAlhO.

— Você não consegue cumprir nem esse tipo de promessa, sua egoísta. — o elfo retrucou consigo mesmo, abaixando momentaneamente a cabeça para tossir. Não conseguiria parar um segundo golpe, aquela pilastra tinha sido apenas sorte. Com o canto dos olhos, pôde ver os parceiros acorrentados. No fim das contas, era bem provável que as coisas terminassem da pior forma possível.

Um movimento chamou sua atenção, e ele voltou a fitar a Lady Sem Nome. — Seu corpo está exausto. Se continuar usando tanta energia, ele não vai aguentar. É isso o que quer?

— Eu NãO lIgO.

— Não liga? Está matando vocês duas, por mero capricho!

— O qUe FoI eScRiTo NãO pOdE sEr AlTeRaDo. — o sorriso voltou a aparecer, ainda mais psicótico do que todas as outras vezes. — Eu Os ReTaLhArEi AtÉ oS oSsOs, AnTeS dE pErEcEr. — ela empunhou a foice, a intenção assassina chegando até ele com uma pressão arrasadora. E, quando ela ergueu um pé para seguir adiante, algo voou em sua testa, jogando sua cabeça para trás.

Gravor surgiu de trás dos escombros, jogando um amontoado de pedras para cima. Skylar estava ao lado dele, com a mão em frente aos olhos. Como ambos tinham escapado do aprisionamento por correntes? Os dois estavam separados do grupo principal desde que decidiram bater de frente com a Emissária da Loucura. Com o foco exacerbado que ela mantinha sobre a raiz de sua raiva, Frosty, falhara em notá-los completamente.

— Bela mira. — elogiou o líder dos Beast Hunters, para aliviar um pouco a tensão. Gravor mostrou um sorriso um tanto trêmulo em resposta. — Anos de prática. Eu deveria ter mantido o arco e flecha como arma, machados são um pouco complicados de manejar.

— Ah… pare de bancar o engraçadinho. — Skylar deixou de fitar seu subordinado para olhar a amaldiçoada, que mantinha a mesma posição de antes. Foi com movimentos lentos que ela endireitou o corpo, a mão elevada até a testa, de onde escorreu um pouco de sangue. Era uma visão inquietante vê-la retirar o membro do rosto, deixando-o a mostra novamente. As marcas negras descendo de seus olhos verdes com as runas avermelhadas que brilhavam. O rosto de boneca de porcelana, tão perfeitamente esculpido por um olhar homicida. — Gravor… você tem certeza disso?

— Se você se envolver, vai acabar matando-a.

— Se ela matar você, eu vou acabar com a raça dela de qualquer forma, pode ter certeza disso.

— Como eu poderia duvidar. — ele estendeu a mão fechada para que o outro tocasse. — Se tudo falhar, sempre dá pra contar com você para resolver a bagunça.

Skylar tocou o punho contra o dele, um pouco mais sério. — Não esqueça, você é a mãe do time, se acontecer algo a você, vão todos ficar órfãos.

— E quem é que está bancando o engraçadinho agora? — um último sorriso, e o shifter começou a caminhar em direção a jovem. — Ei… que tal se a gente conversar que nem pessoas civilizadas?

— IsSo ViNdO dE uM sErZiNhO cOmO vOcÊ… jÁ oUvIu FaLaR nO dItAdO, uM dIa O cAçAdOr, nO oUtRo…

Ele interrompeu-a jogando as outras pedras que tinha na mão. Nenhuma acertou o alvo, mas foi o suficiente para que ele pudesse se aproximar mais, o suficiente para dar-lhe uma rasteira. A criatura caiu, de fato seu corpo estava recusando-se a mover-se rápido como antes. A energia vital estava no limite, tão baixa que nem mesmo a maldição conseguia mantê-la. — … a caça. Eu sei, eu sei, ele voltou para me assombrar pelo menos uma dúzia de vezes nos últimos dias.

Deixou o corpo cair por cima do dela. Suas mãos prenderam as dela contra o chão com bastante força, o suficiente para quebrá-las se fosse necessário.

Ossos se curavam, mas vidas? Nem sempre.

A Emissária contorceu-se em baixo dele, tentando afastá-lo. Suas mãos começaram a fazer tanta força quanto, num jogo de resistência onde o mais fraco perderia (e teria as falanges trituradas). Os joelhos pressionaram o estômago dele, com golpes tão potentes que uma costela ou duas poderiam muito bem quebrar. Ainda assim, Gravor não soltou-a.

— EsPeRo QuE aPrEcIe A iDeIa De SeR dEvOrAdO.

Mesmo com essas palavras e os dentes finos dela enterrando-se em sua clavícula, ele manteve-se firme. — Você só está com raiva… e tem toda razão em tê-la.

As mandíbulas dela pressionaram mais, mas seus dentes não foram feitos para rasgar a carne como a forma animal dele, obviamente.

— Eu não posso afirmar… que sei pelo que você passou. Eu tive uma infância normal e feliz, e tenho uma família à minha espera quando eu cansar das caçadas. Pessoas que vão me acolher de braços abertos, pessoas que me amam. — ele sentiu que os dentes dela diminuíam minimamente o aperto. Havia parado de chutá-lo com os joelhos, e a pressão em suas mãos regredira um pouco, também. — Eu nunca perdi ninguém. E não quero perder… e você, seja lá o que for, vai acabar se matando junto a alguém com quem eu me importo, e não quero que isso aconteça…

Os dentes soltaram-se dele completamente. — Eu ficarei do seu lado até que essa dor passe. Seja como “a Criança Sem Nome” ou como “Nyx”. Seja lá quem estiver no comando, nunca estará completamente sozinha.

Ela não disse nada. Não parecia haver qualquer pressão no corpo dele agora, estava completamente estática. Teria morrido de vez? Era um pensamento meio idiota, mas do jeito que as coisas estavam, aquela garota poderia realmente morrer a qualquer minuto. Gravor engoliu em seco, tomando coragem para levantar o olhar e encará-la nos olhos. Seus olhos adoravelmente verdes, ironicamente estampados em uma face indiferente.

— Está querendo me deixar com inveja ou o que, tonto?

Ele sorriu, rindo de leve e soltando as mãos dela para sentá-la, trazendo-a mais para perto e a abraçando… na verdade, praticamente apertando-a bastante, o que a fez protestar. — Está doendo.

— Me desculpe…

— Tanto faz… — ela estreitou os olhos… seu abismo escuro e frio tinha tornado-se iluminado do nada. Viu os outros Relicários serem soltos das correntes que invocara, e também que Frosty ainda vivia (como tivera a intuição, emersa naquele mar de loucura). Uma onda de alívio atingiu seus membros e sua mente, e ela suspirou, usando o ombro de Gravor para esconder o sorriso mais grato que já dera em toda a sua vida. — Mantenha-me assim, por obséquio.

— Hein?

— Meu corpo… não consigo mexê-lo. Aquela cretina usou toda a minha reserva de energia.

— Não creio que houvesse muita sobrando, de qualquer forma.

— Cale-se.

Os outros começaram a mover-se. Ela se preparou para a turba que iria agarrá-la assim como Gravor, mas isso não aconteceu.

A Ilha colidiu com o chão, seguida de perto pela sua outra metade.

Tudo estremeceu. Gravor segurou-a com mais força, esperando que não chovessem mais escombros por sobre eles. Anne, que ainda mantinha-se atenta a sua volta, mesmo depois de sentir o horror que era Nyx investir contra eles, criou num último instante uma barreira de ar, que segurou boa parte das pedras que restavam para despencar. No fim, os Relicários se viram no meio da mais completa destruição. E teriam suspirado de alívio, caso algo não estivesse tentando emergir do monte de destroços.

Pedras, concreto e tudo o mais foram jogadas para os lados quando o corpo recomposto de Samira ascendeu no ar, uma criatura humana de cabeça disforme, ainda em processo de regeneração, com asas de energia vermelha que pareciam banhadas em sangue surgindo atrás de si. O rosto infantil era uma mescla de revolta e dor. — Minha casa… o que vocês fizeram?

 

— Hum… sabe quando dizem que sempre dá para piorar? Pois bem… — Anne deu passos para trás.

— Merda… — resmungou Selene, puxando Frosty para mais perto de si, deitando sua cabeça em seu colo. Se ele tivesse capacidade de fazer qualquer gracejo com relação a isso, a visão de Samira calou-o. — Ela tinha que acordar logo agora?

— A gente vai morrer… a gente realmente vai morrer. — Ryan também se afastou.

Os olhos furiosos da guardiã vasculharam os seres aos seus pés, até encontrar a esfera, protegida pelas mãos Lidrin. — Você… devolva-me isso. Já!

As asas tomaram a aparência de lanças, todas voltadas para o grupo abaixo dela. Não estava brincando desta vez. O santuário de Zereff tinha sido destruído, a moradia em que ela vivera por dezenas de anos. Alguém pagaria um preço bem alto por aquilo.

— Detenha-se, guardiã…

— Seu trabalho já foi cumprido.

As vozes fizeram com que ela parasse o movimento. Estática, a guardiã observou suas donas por um momento: duas pequenas damas, apesar de transbordarem respeito, tinham uma aparência extremamente juvenil.

A primeira era uma donzela branca. Seu rosto mostrava um sorriso complacente. Os cabelos eram alvos, curtos, mal chegavam a altura dos ombros. Os olhos eram de um profundo vermelho, mas não tinham nada de maldosos. Vestia-se com um recatado vestido branco, de um tecido leve e solto, com as mangas longas aberta em losangos nas laterais, mostrando a pele igualmente branca. A saia era repleta de babados, e a gola alta era também cheia desses, formando uma calda para trás do corpo, como se fosse um cachecol de algodão. Chifres espiralados tão vermelhos quanto os olhos saiam das laterais de sua cabeça, o que pertencia ao lado esquerdo aparentemente cortado muito próximo da base.

A segunda era uma lady preta. Em vestes e aparência, parecia uma sósia quase perfeita da outra, tirando alguns detalhes. Tantos seus cabelos quanto o vestido eram negros como a noite, e a sua expressão era séria, entre a incerteza e a apatia. Seu chifre quebrado ficava na direita, local oposto ao de sua parceira.

As duas mantinham as mãos dadas ao pousar suavemente sobre uma das vigas que conseguira ficar de pé depois de tantos desabamentos. Sua presença transmitia um misto de sensações opostas: esperança e desespero, embora a primeira tivesse muito mais força. Isso não passou despercebido por Samira, que fez uma careta de escárnio. — Já faz bastante tempo que não vejo suas carinhas bonitas, Espex, Tenebrae! Que tal se eu for ai e arrancá-las?

Elas não deram atenção à ameaça. Espex e Tenebrae eram realmente emissárias dos deuses, criaturas criadas pelas mãos deles para trazer notícias das Terras de Meroé e intervir em seu nome se fosse necessário. Ambas, atualmente, serviam à Naomi, a Esperança, mas nem sempre foi assim. Apesar de terem sido criadas juntas e no mesmo instante, Tenebrae era serva de Zereff, o Desespero, o mesmo deus que viria a amaldiçoar Samira e construir o Santuário do qual só sobraram as ruínas. A muito, porém, o deus dera as costas para suas observações e refugiara-se em um canto esquecido da Morada dos Deuses, onde nem mesmo seus irmãos iam. E para que a vida de Tenebrae não se esvaísse por completo por causa de seu descaso com o mundo mortal, ela foi cedida à Naomi.

Ainda assim, não haviam registros de uma intervenção daquela magnitude por elas duas a anos. Não que os sábios de Meroé conhecessem todas as coisas, de qualquer forma. A única que tinha tal poder estava presa a uma mansão para toda a eternidade.

— Deveria acalmar-se um pouco, Samira.

— Essa sua rebeldia é despropositada.

— Despropositada? Despropositada!? Estou fazendo o trabalho que me ordenaram a fazer, ao contrário daquele outro cretino. Vocês estão interrompendo. Caiam fora!

As lanças que estavam apontadas para os relicários moveram-se da sua posição inicial e foram descarregadas contra as duas garotas, que não se mexeram para evitar o golpe. A energia bateu contra uma barreira invisível inúmeras vezes, sem surtir efeito algum.

— A Chave não está mais em seu poder, o santuário está destruído. Seu trabalho era guardá-la para aqueles que são merecedores… esses jovens conseguiram por seu próprio mérito, por que teima em negar?

— Sua personalidade corroída nubla seus pensamentos.

Por alguma razão, a raiva de Samira direcionava-se principalmente à Tenebrae, cuja qual era sempre a segunda a falar. De tal forma, parecia ignorar completamente os argumentos da outra emissária. Ou, se compreendia-os, simplesmente se abstinha de respondê-los. — Minha personalidade? Que hipócrita da sua parte mencionar isso, nosso mestre é o mesmo, ou esqueces-te disso? O mesmo desgraçado que me deixou pra apodrecer aqui em baixo, depois de me dar um poder que eu nunca pedi!

A dama branca entreabriu os lábios, mas sua parceira meneou a cabeça, falando em seu lugar, pela primeira vez sozinha: — Você gostou de receber essa maldição, está fazendo birra a troco de nada. — estreitou os olhos. — O mestre já não olha por ninguém. Nem por você, nem pelos outros amaldiçoados, nem por mim. — ela estendeu a mão, e finas linhas de escuridão saíram da mesma, atravessando o escudo por dentro e indo em direção à Samira. — Tenho outra função, agora. Lamento, mas não ficarei de seu lado desta vez… o desespero precisa ter um fim.

Uma esfera negra formou-se ao redor da guardiã. Ela tentou chutá-la, estourá-la e libertar-se, e por fim era apenas possível ouvir os ruídos abafados que Samira fazia dentro de sua prisão. Tenebrae abaixou a mão e também seus olhos vermelhos em direção ao grupo mais abaixo. Espex sentou-se na pilastra, soltando a mão da parceira e observando-os lá de cima também.

— O que fizeram com ela? — Skylar finalmente questionou, quando conseguiu se livrar de sua estupefação por aquilo tudo. Era coisa demais pra assimilar. Ele precisava de umas férias, urgentemente. — E quem são vocês?

— Ela dormirá. — murmurou a moça de branco, retomando seu posto como a primeira a falar. — Nós somos Emissárias.

— Aquelas que trazem a esperança. — alegou a outra. — Ou algo bem próximo disso.

— Nenhum dos deuses veio nos ajudar em qualquer momento da nossa jornada, eles só atrapalharam e atrapalharam mais. — retrucou de seu lado Nyx. Ela ainda se mantinha nos braços de Gravor. Sua pequena estatura e o corpo pequeno faziam-na parecer estranhamente frágil naquelas condições. — O que mudou?

— Nada mudou.

— Nós não somos deuses. Somos servas.

— O mundo está se desfazendo em trevas. Coisas terríveis estão por vir.

— A existência de Pesadelo sempre foi perigosa. Mas se ele for solto novamente, não será como da última vez.

— Meroé sofrerá como nunca. Se ele não for detido a tempo, esta terra não suportará tanto rancor e desgraça. Muitos inocentes perecerão. Tudo será desfeito.

— É a função de vocês, como Relicários, impedirem isso.

— Ha… que piada. — Selene jogou os cabelos longos e negros para trás, fuzilando-as. — Nós vamos “nos matar” para salvar o mundo e depois, o quê? Seremos abandonados à própria sorte como os seus Guardiões? Fadados a existir até o Fim dos Tempos para guardar uma criatura que vai fazer o que o povo de Meroé já faz por conta própria?

— Nada acontece duas vezes da mesma forma.

— Haverá desespero, mas também esperança. — Tenebrae abraçou sua parceira por trás, deitando a cabeça por cima da dela.

— Mesmo que tudo pareça perdido, vocês encontrarão um caminho.

— Um caminho para consertar os erros passados.

Ambas começaram a desaparecer lentamente. Foram ficando transparentes, sua imagem tremeluzindo com o vento. Da esfera onde Samira fora aprisionada não escapava mais barulho algum. Agora, até mesmo os restos das Ilhas e as ruínas do castelo pareciam ficar translúcidas, como uma miragem.

— O futuro não está definido.

— Sejam fortes. Por vocês mesmos e por aqueles que amam.

— E, acima de tudo, não se esqueçam…

— Vocês jamais estarão sós.

Uma rajada de vento mais forte soprou, fazendo os relicários cobrirem os olhos. Quando voltaram a abri-los, as Emissárias da Esperança haviam sumido completamente, levando as ruínas consigo. As únicas provas que aquele incidente acontecera realmente eram os ferimentos de batalha e a esfera negra, que levantou-se no ar por conta própria e foi coberta por um véu de camuflagem, atingindo o mesmo ponto onde a Ilha Flutuante antes se mantinha.

 

oOo

 

 

Em algum ponto muito próximo dali, O Corvo havia pousado de maneira nada agradável, como era esperado – Kenai, apesar de enxergar muito bem, continuava sendo péssimo em direção – e os três Seguidores do Pesadelo desceram para encontrar um Loke bastante debilitado, mas vivo. Depois das trocas de “amabilidades” naturais entre eles, com direito a ameaças de morte e escalpelamento, o quarteto preparou-se para retornar a uma base segura e recuperarem-se dos ferimentos sofridos.

Loke invocara mais uma vez o seu “animal de estimação” para servir-lhe de montaria e apoio, e esperou que os mais apressados, Lyla e Kenai, ficassem bem distantes na vanguarda para dialogar com Liam.

— O que você acha?

— Sobre o que?

— Sobre a garota… obviamente.

— Não entendo essa sua fixação, você poderia ter morrido. Aliás, todos nós poderíamos. — o outro retrucou, passando a mão no rosto e diminuindo um pouco o passo. — Definitivamente você deve ser tão insano quanto ela. Quem sabe mais.

— Ora essa, pare com esse drama todo e pense. Nós somos o cérebro aqui, não se esqueça disso.

— Eu estou pensando, mas não faço ideia de onde quer chegar com todas essas insinuações. — ele estava cansado demais para raciocinar direito, de qualquer forma. A perspectiva de que Pesadelo logo invadiria seu subconsciente para inserir os enigmas da última Chave lhe deixava ainda mais abatido. Talvez devessem dar um tempo para acalmar os ânimos, no fim das contas. Eles necessitavam mesmo de um bom descanso.

— Você não faz? — Loke apertou um pouco mais seu ferimento, com a hemorragia temporariamente impedida. Ele estava como sempre, absolutamente tranquilo e de bom humor (o que Liam não compreendia. Sério, quem fica feliz depois de uma derrota esmagadora como aquela)? — Pois te direi, bem devagar. Creio que você vai gostar do desafio.

A palavra desafio não lhe soava nada inspiradora. O rapaz apenas suspirou, falhando em endireitar seus óculos a muito tempo perdidos e assentindo com a cabeça. — Se tens tanta certeza. Pode começar a falar…

 

oOo

 

Em uma certa mansão, já conhecida por nós.

 

Nyele ainda mordia a ponta dos dedos, irritada, os olhos fixos na lareira, quando Surm surgiu em suas costas, colocando ambas as mãos em seus olhos e fechando-os, mostrando completa animação: — Advinha quem é!

— Pare com esse jogo insosso. — ela acotovelou-o, mesmo sabendo que não teria efeito sobre a criatura, e pôs-se de pé, girando nos calcanhares para olhá-lo de frente. — Imagino que esteja decepcionado, tanto drama e só conseguiu buscar uma alma.

— E quem disse que eu me importo com isso? Estava mais interessado exatamente no drama.

— Nunca imaginei que gostasse desse tipo de coisa.

— Eu sou um deus, eu gosto do que eu quiser. — ele colocou ambas as mãos na cintura, desdenhando dela, e pôs-se a catar as cartas de baralho que a mulher havia espalhado depois que este saíra. — Que descaso com um ótimo baralho. Agora não poderemos mais jogar.

Nyele não respondeu. Olhava na direção de uma das paredes, e não exatamente para ela, pelo que parecia.

— Está enciumada por causa das constantes interferências.

— Não sei porque eu deveria.

— Considerando que você e os outros Heróis tiveram que lutar contra Pesadelo sozinhos, eu entenderia essa reação de sua parte.

— Está conjecturando demais. Eu não me importo.

— Você também está interferindo, então acho que importa-se, sim.

Outra vez, a resposta foi o silêncio. Depois de recolher todas as cartas, o deus sentou-se novamente sobre sua habitual cadeira e deixou o baralho na mesa, pondo-se a se espreguiçar em seguida. Só então, a Guardiã do Conhecimento retomou a palavra.

— Aquelas duas estão erradas. Elas só conseguem ver algumas probabilidades, enquanto eu percebo todas. Todos os destinos estão definidos. Um mínimo passo em falso pode levá-los do melhor ao pior…

— Melhor e pior… para quem? — ele disse, erguendo uma sobrancelha. Era uma pergunta claramente capciosa, Surm sabia exatamente sobre o quê ela falava.

— Para todos, é claro. — com seus passos longos, ela dirigiu-se a sua própria cadeira e sentou-se, cruzando as pernas e os braços logo em seguida. — E então, o que vai ser dessa vez?

— Já que você estragou o nosso Rei de Espadas, talvez devêssemos jogar algo mais simples. Quem sabe memória? — o sarcasmo dele era visível.

— Não ofenda meu intelecto superior com tal sugestão pobre. Está com medo de perder mais uma vez no Xadrez?

— Ha… hahaha! Que arrogante. Jogaremos, então, se tens tanta certeza.

Como se já tivesse plena noção de que ele diria isso, ela estendeu a mão para a estante que ficava ao lado e retirou o tabuleiro de xadrez, ajeitando-o sobre o tampo da mesa e endireitando as peças que foram mexidas no último jogo. Ele arrumou as suas lentamente apenas para irritá-la – o que não aconteceu – e endireitou-se no assento. Com um sorriso absolutamente abusado Nyele, fez um gesto para ele. — Brancas começam.


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Notas finais do capítulo

Considerações finais:

+ Imagem referente ao Gravor. Sério, foi complicado de escolher, afinal a que eu ia usar anteriormente para ele acabei colocando no Ryan. Sou retardada. Eu decidi não fazer uma montagem com a imagem porque sou perfeccionista demais, teria que apagar o símbolo do Legend e o do autor da imagem para que eu ficasse satisfeita, e como isso seria uma sacanagem muito grande, postei assim mesmo.

+ Espex e Tenebrae significam, respectivamente, Esperança e Desespero, em latim. Originalmente eu não iria colocá-las, mas eu deixei todo mundo tão ferrado no fim das contas que simplesmente alguém tinha que parar a Samira (simplesmente dizer que ela não despertou ficaria extremamente chato). De qualquer forma, elas iriam ter uma aparição cedo ou tarde.

+Ainda estou curiosa para saber o que vocês acham que seja o poder de amaldiçoada da Nyx, gente. E não, eu não vou dizer exatamente o que é por enquanto, vamos manter o mistério no ar.

+ Esse é o final do Arco da Chave do Ar. Normalmente eu colocaria os capítulos especiais de personagem agora, mas não acho que o momento seja oportuno, então eles virão um pouco mais para frente. Os próximos capítulos vão ser praticamente um "Interlúdio" entre um arco e outro, bem calmos, praticamente as férias que tanto Sky quanto Liam tanto queriam. Não tenho certeza de quantos serão, mas é provável que vocês vão gostar.
Lembrando que o próximo arco é o da Chave do Metal, e por fim o Final, por assim dizer. Chuto por alto que não não faltem mais do que vinte caps para a finalização da fic, mas eu sou louca, então isso pode mudar pra mais ou pra menos. Para a felicidade de quem pediu por uma fic mais extensa hahaha.

+ Acho que é isso por hora, qualquer dúvida é só me falarem.
Kisses kisses para todos, e até a próxima. ♥