Todos os pares de olhos estavam gravando aquela imagem. A Filha de Bernkastel, suja de sangue, com seus olhos brilhando em vermelho e um corpo partido em dois aos seus pés. Risadas curtas, naquela voz desconjuntada, ecoavam, saindo de sua boca, numa cacofonia típica de um hospício. A única ideia que os dois grupos compartilhavam era que algo muito, muito ruim tinha se libertado.

Ao passo que a maior parte dos presentes recuaram ao ver a cena, Loke fez o contrário e aproximou-se dois passos, observando-a atentamente, ainda com aquele sorriso estranho nos lábios. — Devo dizer-lhe, és um verdadeiro demônio, afinal.

— DeMôNiOs NãO eXiStEm. — a voz distorcida pronunciou, sem deixar de rir-se um minuto sequer. — MoNsTrOs, SiM.

Skylar, que mantinha seu único olho focado na cena, ergueu a voz, tentando mantê-la controlada, ao perguntar diretamente para a antiga Nyx. — O que é você?

— O qUê? — ela observou-o, maldosamente, por um milissegundo. — Eu SoU mUiTaS cOiSas. Um MoNsTrO eNjAuLaDo, uMa SeRvA dO cAoS, uMa HoMiCiDa, a EmIsSáRiA dE bErNkAsTeL. nÃo TeNhO nOmE. SoU aPeNaS lOuCuRa.

O shifter trincou os dentes em resposta, se já achava Nyx irritante e convencida, aquela ali era muito pior. Seus instintos pareciam enlouquecidos, entre a vontade de pular no pescoço dela naquele momento mesmo ou se afastar com as fisgadas violentas de “perigo”. Não que sua rival normalmente não fosse perigosa… ele vira-a decepar partes do corpo sem o menor vestígio de culpa antes de encontrarem Etherea, e sabia que o fato dela manter os criminosos que capturava vivos não tinha nada a ver com clemência. Seu senso de justiça perturbado sempre fora algo assustador por si só.

Acontecia que, naquele exato instante, a aura que aquela criatura mostrava era pior do que qualquer coisa que já tinha experimentado. E imaginar que Pesadelo fosse ainda mais aterrador que aquilo fazia-o ficar a beira do desespero completo.

Ele balançou a cabeça com força para clarear as ideias. Não podia ser impulsivo, não naquela situação. O corpo fresco e sangrento no chão era a prova viva de que, se não tomasse cuidado, teria sua existência destruída mais rápido do que poderia reparar. Ao ver que a coisa mantinha sua atenção fixada em lugar nenhum, mudando seu foco para posições completamente aleatórias, Skylar voltou-se para os outros parceiros de campanha. — Algum de vocês tem ideia de como fazê-la voltar ao normal?

Todos menearam a cabeça, em negação. Selene abriu a boca para alegar. — Isso nunca aconteceu antes, já vimos Nyx muito zangada, mas nunca nesse estado. Se há alguém entre nós que poderia saber… — voltou seus olhos para baixo, onde Frosty descansava a cabeça em seu colo, sofrendo espasmos horríveis.

— Não tem jeito… precisamos socorrê-lo antes. — Trixia agachou-se, ignorando a rixa mal resolvida com a elfa e tocando a cabeça do enfermo com a mão direita. — Não há nenhuma certeza que ele possa acordar para nos dar uma resposta, de qualquer jeito.

Neco choramingava baixinho, segurando uma das mãos dele, incapaz de ditar palavras ou entender o que estava sendo discutido ao seu redor.

Enquanto os Relicários permaneciam divididos, sem saber como salvar Frosty e muito menos como trazer Nyx de volta, os Seguidores mantinham-se estáticos. O choque da morte instantânea de Cedric ainda não havia passado. E a aura monstruosa da Emissária da Loucura causava arrepios até no esquentado Kenai. Ele parecia ferver de ódio, uma atitude um tanto inesperada, visto que aparentemente não dava a mínima para o filho. Um movimento ameaçador da parte dele fez com que Liam o segura-se pelo ombro.

— Está louco? Você quer morrer também?

— Me solte!

— Pare de dar piti e pense, animal! — Lyla interrompeu, abaixando a voz. — Não ouviu as palavras dela?

— Disse ser a Emissária de Bernkastel. — Liam disse, mais para si mesmo do que em resposta. A morte de Cedric o chocara, mas não o sensibilizara. Afinal, eventualmente ele mesmo teria que matá-lo. — Espere um instante…

— Parem de falar por códigos, vocês dois! — Kenai desviou sua raiva de volta para eles, afinal também queria saber o que era aquela força absurda, capaz de matar um mokolé de maneira tão limpa e eficaz. — O que é aquela maldita?

— Bernkastel é a Deusa da Loucura. Aquela maldita é… bem, uma maldita mesmo. — Lyla bufou, retirando a franja dos olhos. — Não sabe nem isso?

— Diz a lenda que Bernkastel é a única deusa proibida de lançar suas maldições, porque não é capaz de manter a própria sanidade para ter uma noção do que está acontecendo com seu amaldiçoado. — interrompeu Liam, parando uma possível discussão.

— Isso não faz sentido algum. — protestou o mokolé. — É uma Deusa do Caos, não é? Por que se incomodaria em seguir as leis, a função de amaldiçoar as pessoas é justamente trazer a discórdia para Meroé.

— De fato. Contudo, pelos registros, acredita-se que mesmo os Deuses do Caos tem cuidado ao amaldiçoar seus escolhidos, justamente para que não sejam capazes de causar colapsos na dimensão.

— Quer dizer que eles causam a baderna mas não querem destruir esse mundo?

— Sim. O fato de não ser permitido à Bernkastel participar disso, significa que ela não tem a capacidade de controlar essa linha tênue entre uma coisa ou outra. Mais especificamente, a Loucura não pode gerar “Filhos” pois poderia desestabilizar completamente o equilíbrio.

— Então por que raios existe uma Filha de Bernkastel nesse mundo? — Lyla apontou para a figura, a bons metros de distância. — Mais importante: qual é o poder dessa coisa?

— Não faço a menor ideia. — confessou o rapaz. — Deixem que Loke cuide dela.

Afinal, nada melhor do que vencer um amaldiçoado com outro.

Mesmo depois desse pensamento e das ameaças, Liam manteve a mão pousada com força no ombro de Kenai. E tinha a plena consciência que o mokolé só não se soltava porque não queria, afinal era muito mais forte fisicamente do que ele.

Mais distante dos grupos, os dois amaldiçoados se encaravam. Loke, tranquilamente, levou a mão aos bolsos da calça, como se não estivesse na frente de alguém capaz de matá-lo com um golpe só. — Estava me perguntando como era realmente sua personalidade original. Que surpresa mais agradável.

— PoUpE-mE dE sEuS gAlAnTeIoS iNúTeIs, SeRvO dE hYlDiN. — os olhos dela estreitaram-se. — o QuE vOcÊ qUeR?

— Você. Do meu lado, não é óbvio? — estranhamente, ele parecia bem sincero ao dizer isso, levantando a mão para oferecer a ela. — A única Herdeira de Bernkastel sob a face de Meroé. Seu distúrbio emocional é cativante. E não vou nem mencionar sua força.

— PaLaVrAs VaZiAs. VoCê MeNtE. eU pOsSo VeR. PoR aQuI — ela ergueu a mão para apontar o dedo indicador e o médio da mão direita para os próprios olhos, como se fosse furá-los, mas não o fez. — e AqUi. — moveu-os novamente, desta vez juntos, para a cabeça.

— Não é tão louca quanto parece, afinal. — Loke apenas sorriu.

— SoU fEiTa De InStInTo.

— Percebo. Então, deixe-me ser mais direto. Lute ao meu lado para libertar Pesadelo.

Ela não respondeu de imediato. Boa parte das atenções estavam voltadas para ela, quando começou a rir novamente, completamente insana. — Oh… EnTãO vOcÊ sErVe ÀqUeLe CaRa qUe QuEr Se ToRnAr DeUs? QuE tRaIçÃo InFaMe, MeSmO pArA aLgUéM dA sUa LaIa.

— Nunca imaginei que se importaria com esse tipo de coisa, minha cara. — ele não pareceu ter ficado ofendido com a argumentação. Até porque, já tinha ouvido coisas muito piores sobre sua lealdade (na verdade, sobre a falta dela).

— NãO… — a risada parou, tornando-se um sorriso maníaco, enquanto ela inclinava a cabeça num ângulo estranho, os dentes sobressaindo de forma assustadora. Seu sobretudo já estava desalinhado, de maneira que os ombros pequenos de Nyx ficassem à vista, enquanto suas mãos eram tampadas por bons pedaços de manga. Foram estas últimas que ela uniu um pouco abaixo do queixo, ao responder. — pArA mIm ToDoS sÃo ApEnAs PoRcOs No AbAtE… e Eu SoU a AçOuGuEiRa.

— Era esse tipo de comentário que eu imaginava ouvir. — Loke negou com a cabeça, sem desfazer sua expressão satisfeita. — Muito bom, muito bom! Você aprendeu direitinho com Meredith.

Aquela frase foi o suficiente para fazer o sorriso da mesma sumir. Seus lábios moveram-se, pronunciando o nome novamente, com um tom de dúvida. — MeRe… DiTh… — por um momento, sua expressão neutra pareceu pateticamente igual à de Nyx, para logo depois se transformar em puro ódio. — MaMãE… eU aInDa SiNtO o ChEiRo PúTrIdO dAqUeLe LuGaR oNdE aQuElA vAdIa Me ApRiSiOnOu. VoCê É aMiGo De MeReDiTh?

— Digamos que temos uma aliança muito proveitosa. — Apesar de não mudar seus modos externos, mentalmente Loke estava preparado para uma retaliação. O ar ao seu redor ondulou, parecia prestes a lançar algo contra ela.

Mas, ainda assim, a entidade sem nome foi mais rápida.

O Seguidor só teve tempo de ver a aura invisível que a envolvia explodir em um tom acinzentado, e fendas trincarem o chão ao redor deles. As rachaduras foram além, tomando todo o espaço, subindo pelas paredes e pelos escombros do andar superior. Todo o local estremeceu violentamente, o castelo ameaçando desfazer-se de vez, aliás, a Ilha Flutuante inteira prestes a despencar. Em meio a isso tudo, a mulher já estava a frente dele, seguida por grossas correntes de ferro, que agarraram seu corpo no ar quando tentou pular e puxaram-no de volta contra o piso.

— NeSsE cAsO, iReI sAnGrÁ-Lo PrImEiRo. — o brilho vermelho em seus olhos ficou mais forte do que nunca, o sorriso demoníaco voltando aos seus lábios, assim como a gargalhada maldita. Mesmo quando Loke usou suas sombras para libertar-se das correntes, arrebentando-as por dentro e atirando inúmeros projéteis contra ela, a Filha de Bernkastel nem titubeou, esmigalhando-as com um simples movimento de braço.

O que é essa força?

A preocupação passou como um raio em sua mente. Suas armas de sombras nunca foram vencidas com tanta facilidade. O que havia por baixo da pele de Nyx? Ele havia cometido um erro? Recuou um pouco o corpo, ganhando distância, considerando opções. Não podia atacá-la discriminadamente, seria ineficaz e abriria brechas demais para ela contra-atacar. Observou quando ela passou por cima do corpo de Cedric, pisando-o sem a menor consideração, agachando-se. Em seguida já estava frente a ele novamente, uma foice enorme e afiada passando perigosamente próxima à sua garganta.

De onde aquilo saíra afinal?

Ele levantou um escudo de sombras mais uma vez, mas este foi destroçado por um golpe da foice, atirando-o para trás devido ao deslocamento de ar. Uma sorte, porque o lugar onde antes estava agora tinha uma abertura grotesca e extensa. Loke desviou uma vez mais de um golpe que vinha pela direita. Mal pisara no chão, contudo, e já era atacado de novo. E de novo, e de novo, e de novo… ela não lhe dava trégua, e apenas os longos anos de treinamento e seu fortalecimento foram capazes de mantê-lo vivo… não era a toa que Cedric perecera tão rápido, qualquer um com nível de habilidade médio seria ceifado. Agradeceu mentalmente por todas as situações complicadas que passara durante sua vida de traidor e aumentou sua própria velocidade para ao menos conseguir revidar.

— Tão rápida. — Anne observava aquela batalha com um tremendo mau estar. Skylar, no entanto, apenas rangeu os dentes com mais força que antes.

— Não é nada diferente do normal.

— O que? Está completamente diferente!

— Vocês lutam ao lado dela, tem muito tempo pra se acostumar ao seu ritmo. Já para nós, que pouco os encontramos, é diferente. Aquela garota não está mais rápida que o normal, ela sempre foi veloz desse jeito. E as correntes, ela as cria com facilidade, é o elemento dela. A única coisa que está diferente…

— Ela está completamente desapegada. Está dando cem por cento de si… aliás, eu diria que está dando cento e cinquenta. — Lidrin interrompeu. Sua atenção pulava de Frosty para a luta e vice-versa. — Tomada pela loucura.

— Quer dizer que Nyx é um daqueles amaldiçoados que não herdam nada além do instinto do deus? — Sean falou, o que era estranho, afinal ele dificilmente abria a boca para falar. Podia-se imaginar que aquela situação afetara até mesmo ele.

— Não sei. — o Djinn estreitou os olhos, desistindo de manter a atenção na luta. — Mas essa aura cinzenta… e as rachaduras pelo palácio… isso, sem dúvida, é alguma coisa.

— Você investigou todos nós, eu sei disso. — Selene alegou. Com extremo desgosto, decidira afastar-se de Frosty, já que o calor que irradiava de sua pele só poderia fazer mal a ele. — Diga-nos, qual é a verdadeira identidade dessa coisa dentro da Nyx. Precisamos trazê-la de volta a razão antes que esse lugar desabe.

Mais um meneio com a cabeça. — Eu tenho apenas suspeitas. A verdade é que ninguém jamais soube de Nyx de Saint Ignis naquela mansão antes de sua partida para o Vale das Estrelas, onde encontrou Frosty.

— Mentira. Todas as pessoas que interpelamos, desde quando nos conhecemos, afirmam a mesma coisa: que a criança de Meredith era vista ocasionalmente na mansão, pois era uma garota muito reclusa.

— De fato. Mas esses boatos só começaram a circular a partir do momento que Nyx retornou do Vale. Quando ela voltou à mansão. Alguém espalhou essa história para que o povo de Hathea não questionasse a permanência da Lady na corte. Com que motivo, não sei dizer. — o djinn mantinha os dedos sobre a testa de Frosty, tentando enregelá-lo novamente, sem muito êxito. Mesmo enquanto discutiam, seu corpo não se movia um milímetro sequer. — Os únicos boatos daquela época são de gritos no subsolo da mansão. Diziam que havia um monstro nos calabouços, que comia gente, ou algo assim, mas nunca foi comprovado. Foi mais ou menos nessa época que o casal Saint Ignis original faleceu de doença.

— Eu cheguei a ouvir isso… dos meus pais. — Trixia tomou a palavra. — Eles diziam que a herdeira da família tinha sido adotada, e os fatos sobre isso eram bem escassos. Mas o casal anterior deixou tudo para ela por causa da incapacidade de gerarem um herdeiro de sangue legítimo.

— E com o gênio de Meredith eu não ficaria surpresa se ela própria fosse uma amaldiçoada… o que justifica o fato de Nyx ser também. — Selene havia armado a guarda, enquanto observava um ponto ao longe, na direção oposta da luta que se seguia.

— Não estou gostando do rumo que essa conversa está tomando. — Ryan disse, de seu canto, olhando para todos ali. — Se os boatos do tal monstro forem verdade e ninguém de fato viu a Nyx quando era criança…

— Isso pode significar que não há uma coisa dentro da Nyx.

— A coisa é a personalidade real. Sim, é uma possibilidade. E isso se tornaria um grande perigo para nós também. — Lidrin argumentou, retirando os cabelos esverdeados da testa.

— Seja lá o que for, ela está suficientemente irritada com a Cobra Traiçoeira para não se preocupar conosco.

— Esse é o problema. Por que ela atacou Loke? Porque ele tem um relacionamento que não compreendemos com Meredith. Meredith a mantinha prisioneira. Isso não parece familiar?

Gravor, que mordia o lábio inferior em silêncio – assim como todos os outros, indeciso entre ajudar Frosty e manter o olho na batalha – arfou baixinho, parecendo notar finalmente as intricadas relações entre uma coisa e outra. — Se Nyx não é a personalidade original, ela manteve a Herdeira de Bernkastel cativa por todo esse tempo… ela não pode ferir a si mesma, mas provavelmente desejará a morte daqueles que forem mais chegados a ela.

Todos os olhos voltaram-se em sincronia para Frosty. Sua respiração estava bem fraca, e Trixia, Neco, Anne e Lidrin mantinham-se em volta dele, tentando baixar a febre com os poucos suprimentos que ainda restavam. Tudo em vão, afinal era uma maldição, e não havia como parti-la.

— Nós vamos ser os próximos. — a primeira engoliu em seco. Uma palidez mortal havia se instalado em seu corpo, causada talvez pela ligação entre a sua alma e a do elfo. — Pela Deusa Irmã… como as coisas foram ficar assim?

— Parece que jogar com o Destino não foi tão inteligente, no fim das contas. — Skylar cuspiu para o lado. — E as coisas estão prestes a piorar.

Ele ergueu o dedo para os três Seguidores do Pesadelo. Kenai, em especial, que estralava os dedos, disposto a ignorar os maus lençóis de Loke e cair em cima do grupo, afinal ao menos queria conseguir o que viera buscar. Selene voltou a tomar a dianteira, abrindo os braços e fazendo chamas explodirem entre os dedos de ambas as mãos.

— Eu ainda não queimei o suficiente por hoje. — ela mexeu a cabeça de um lado para o outro, provocando um barulho de atrito entre os ossos do pescoço. Com o canto dos olhos, observou os parceiros, principalmente o diminuto grupo que tentava trazer Frosty de volta a consciência. — Não deixem ele morrer, certo? — depois passou os olhos em direção aos outros. — Sabem… eu não sou de pedir, mas bem que aceito uma mão ou duas.

Sean ajeitou suas vestes improvisadas.

Ryan agarrou seu machado.

Gravor e Skylar se entreolharam por alguns minutos. — Três contra três é mais do que justo.

— Concordo.

Selene afirmou com a cabeça, mostrando que entendera o pensamento.

Afinal, com um membro da equipe a beira da morte e os Seguidores do Pesadelo querendo recomeçar a briga pela Chave em meio a tanta confusão, alguém precisava ficar para cuidar de Nyx quando esta terminasse com Loke.

E não demoraria muito para que isso acontecesse…

oOo

Eu me lembro, através dos cacos do meu coração partido.

Havia apenas duas pessoas que me traziam luz, para compensar as trevas nas quais nasci e nunca antes tinha sido capaz de me livrar.

O primeiro era um homem de cabelos longos e voz profunda. Chamava-o de pai, mas ele era como as estrelas. Seu amor por mim era tão intenso que eu não conseguia calculá-lo.

“Eu a amo mais que a quantidade de estrelas que há no céu, mais do que as inúmeras gotas do oceano, mais que os incontáveis grãos de areia.” ele sempre me dizia. E me apertava tão forte que parecia que nunca mais ia me soltar.

O segundo era um rapaz, um jovem príncipe de cabelos curtos e voz juvenil. Este era caloroso como o sol, apesar do frio que emanava de seu corpo. Parecia tão solitário bem lá no fundo… Como eu era. Uma versão mais amável e evoluída de mim mesma.

Ele me deu uma vez uma rosa de gelo.

Ele foi a primeira pessoa, além do meu pai, que me aceitou como eu era.

E eu decidi que poderia tampar os buracos dele. Ou, pelo menos, tentar. Eu seria sua irmãzinha perdida. E ele, o irmão que nunca cheguei a ter.

Pensamento vão. Eu nunca fui uma boa irmã.

Nunca…

Aquele que era minhas estrelas se foi a tempo.

Seu último suspiro foi entre meus braços. Meu pai me amou até o último instante de sua vida. E eu me sinto a pior das pessoas por não ter podido corresponder uma parte de todo esse carinho.

Meu sol está se apagando… por minha causa, ele está se apagando…

Eu estou sendo engolida pelas sombras, tragada em direção ao vazio. Meu coração que nasceu quebrado se estilhaçou… e não sei mais como juntar os pedaços. Não há como repará-los.

Cores tristes tingem minha mente… agora só há escuridão.

Eu quero sair…

Eu daria qualquer coisa para sair, mas não há nenhuma luz para me puxar. Estou perdida… e pareço uma criança, chorando, a espera de que alguém me resgate.

Eu não consigo mais continuar por conta própria.

Alguém…

Alguém, em algum lugar…

Por favor…

Salve-me.