Quando Amanhecer escrita por Clara Luar


Capítulo 19
Intermeso


Notas iniciais do capítulo

Olá, boa leitura ;)



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O corpo se move sem que ele mexa os próprios pés. Há um balançar constante e veloz que o desloca por um caminho cinzento. Uma repentina dor no ombro, aguda como um raio partindo seus ossos, o faz despertar completamente. Está sendo carregando por um homem de cabelo fosco e terno de fina marca.

Krad o joga ao chão assim que nota a respiração acordada do filho de St.Clair.

— Até que enfim, estava amarrotando meu Armani. — resmunga realinhando o paletó.

Ao tocar o ombro ferido, Ryan percebe o sangue que mancha sua camisa e manto. Recorda do ocorrido, de como entrara na frente da amiga que disse ter o traído. Ele não acreditava nisso. Não queria acreditar. Antes de demonstrar sua inquietação, observa o homem que o carregara até os corredores da joalheria, longe do salão principal de onde ouvia gritos surdos ecoar. Aparenta ter a mesma idade que ele, mas a atmosfera ao redor desmente, evolvendo-o com a confiança de um líder e a experiência do submundo.

— Desmaiar por causa de uma bala... —mexendo a gravata, Krad continua com desdém. — Como vocês humanos são fracos.

Mascarando a dor que persiste, o mafioso tenta ironizar: — Você fala como se não fosse humano.

— E não sou — olha pela primeira vez para o humano. Oferece o sorriso gélido que usa para suas refeições, presas à mostra. Quer assustá-lo. Seu faro apurado já percebeu: o cheiro que sentira impregnado na pele de Fay é o dele. Por isso quer que ele tenha medo e se arrependa. Se arrependa de ter ousado tocar na sua rosa.

No entanto, depois de conhecer os poderes da mutante, Ryan não está tão surpreso quanto o vampiro gostaria, e apenas solta o ar lentamente.

— Ah.

O vampiro revira os olhos, em total desprezo ao seu rival. Não. Jamais admitiria que um reles humano poderia tomar algo dele.

— Um pomposo como você deve saber onde é a saída. — Não perde a oportunidade de desdenhar. — Minha ajuda termina aqui, e deixo claro que só fiz isso por ela — frisa.

— Onde está ela? — levanta-se pronto para ir de encontro a ela.

— E você pretende fazer o que? Ir atrás dela? Com esse ombro ferido? —ri. Sua paciência está esgotando. Poderia largá-lo e simplesmente partir, mas não o faz. Porque ainda é preciso gastar tempo. — Ela vai te matar sem nem piscar.

Pela primeira vez o ladrão consegue ver o semblante do rapaz tremer, e não era pela dor.

— Ela não faria isso — tenta dizer convicto. — Não a Fay que conheço.

Agora, Krad parece se divertir com a ingenuidade do garoto.

— A garota quem está no salão já não é a Fay que você acha que conhece, humano.

— Do que está falando...?

Num gesto rápido, o vampiro o agarra pelo colarinho, os pés de Ryan vacilaram. Arrasta-o, quase de imediato, de volta ao salão, mas escondidos por trás do paredão de escombros que antes caíram sobre eles. Joga-o num canto, fazendo-o comer poeira.

— O que você quer afinal, me arrastando para cima e para baixo? — o humano cospe as palavras. Ergue apoiando-se no braço bom para então vislumbrar a cena.

A garota que deve ser Fay, mas de olhos e cabelos tingidos de vermelho, paira no ar com asas de vidro estilhaçados, em meio aos blocos de mármore e canos estourados que jorra água no piso. Apesar do líquido cristalino que é empurrado pelos destroços, a poça é rubra. É sangue. O cheiro do ferro paira no ar, e a mutante parece respirar muito bem assim. Seus olhos faíscam uma vivacidade sombria, vidrada na carnificina que realiza com os policiais: seus corpos explodem jorrando sangue e entranhas, ou arremessa as cabeças dele contra as paredes. As balas mal têm tempo para sair do cano das armas de fogo, pelo contrário, regressam seu caminho e se lançam contra os olhos de seus donos. O riso dela reverbera no que antes era a joalheria mais luxuosa da cidade.

— É Rose, com sede de sangue e de morte, uma versão surtada de Fay. E você não passa de mais um monte de carne para ela explodir. Ah. Você por a caso sabia que ela é doida?

Atônito, Ryan não reage, apenas observa atento a cada traço da fisionomia de sua amiga, que parece na existir mais dentro dessa tal de Rose.

— Ela não quer essa carnificina... — murmura, mas o vampiro é capaz de ouvi-lo. — Precisamos pará-la.

— Por que? Não acha que ela está linda? — exclama orgulhoso, o sangue derramado atiçando seu lado desumano.

— Não! Por que ela acabou... desse jeito?!

A aflição é perceptível na sua voz. Ele não queria, mas sente medo da garota que havia o apoiado nesse roubo. Ryan podia enxergar a menina com quem passara os últimos dias, por quem sentia mais do que uma amizade frívola, aprisionada naquela loucura. Há lágrimas de sangue no rosto da mutante enlouquecida, o grito silencioso de Fay.

Krad pondera se deve responder, a situação é no mínimo divertida para ele. Observa as nuvens avançarem pouco a pouco sobre a lua cheia. Os federais já recuaram, aguardando reforços. Rose se diverte com os corpos destroçados. Precisa gastar mais um pouco de tempo.

Suspira já com tédio de explicar.

— Porque Fay achou que nós morremos.

— Nós?

— Tá, que você morreu. No momento, ela me odeia, infelizmente.

— Não é difícil te odiar...

Krad estala o pescoço, controlando a raiva. — Entenda, humano: Rose é uma personalidade que já existe em Fay, alguém que ela criou para suportar quando o mundo se torna sombrio demais para ela. É como uma segunda alma. Pelo que noto, você sabe dos poderes dela. Além da telecinese e telepatia, ela também é médium. Apesar disso, o corpo dela é de uma humana comum. Mesmo esse miolo de humano deve ser capaz de compreender: ela é uma bailarina numa corda bamba; caminhando entre o mundo dos mortos e dos vivos, percebendo coisas que vocês... — é preciso uma pausa para admitir — e até mesmo eu, não conseguimos sentir. Ela é pequena demais para tamanho poder.

— Mas ela parecia dominar muito bem seus poderes.... — interrompe-se lembrando do descontrole no terraço. E sente-se realmente fraco, como o vampiro insiste em esfregar-lhe na cara. Mesmo estando ao seu lado, ele não fora capaz de compreender completamente a mutante. Enganara-se ao crer que a tinha como um mapa perfeito na memória.

— O estopim para a Rose surgir deve ser uma dor muito grande, que abale mentalmente — prossegue ignorando-o. Não esconde o desprezo nas próximas palavras — Ou seja, a sua morte. Parabéns, você conseguiu ser importante para ela... um reles humano.

— Eu já entendi que sou só um humano, ta legal? — explode enfim. Não gostara de Krad desde o início por tratá-lo com o mesmo desprezo que seu pai lhe oferecia. Como se ele não fosse capaz, não tivesse competência para nada. Mas ele tinha.

Larga o ser sobrenatural e ameaça sair do esconderijo.

— Aonde pensa que vai?

Krad o intercepta, contudo não demonstra fazer questão de impedi-lo. Se o humano quer cometer suicídio, será menos um problema dele.

— Pará-la.

Seu pé roça numa mão sem corpo. Nela a arma deita rijo.

— Como? — mostra um sorriso irônico.

— Se ela está assim porque acha que eu morri, basta que ela veja que não estou. — o plano parece ridículo até para ele.

— Acha mesmo que é tão simples assim?

— Não, mas é o que temos por hoje.

Recolhe a arma de fogo e confere as balas por via das dúvidas.

O vampiro nada mais diz. A convicção do humano em tentar salvar sua Fay é tola, ineficiente, mas é para salvá-la. Um sentimento sombrio queima ao lado do seu amor por ela. Algo como ciúmes, mas mais triste. Krad finalmente reconhece que ela é também importante para alguém além do próprio. Mesmo que a rosa ainda fosse só sua, havia mais alguém a contemplá-la.

Um tremor de terras coloca ambos em alerta. Procuram o dono da força na entrada da joalheria. São tanques. Três, e apontam o cano para a ameaça flutuante. Federais agora se equipam de fuzis.

— Acho que foram longe demais... — diz para o comandante que já deve estar morto em algum lugar.

É a vez do vampiro preparar-se para o confronto. Tira o paletó e arregaça as mangas. Não poderia mais ser apenas diversão.

— Pretende fazer algo agora, vampiro? — Ryan tenta imitar o descaso ao chamá-lo.

— Não me lembro de ter lhe dado o direito de me chamar assim, humano.

Esquecido da dor, a alma do mafioso balança com a selvageria natural outra vez. — Imagino que temos um plano?

A lua está completamente coberta pela lua. Rose está concentrada nos novos brinquedos, e mal nota seus poderes se esvaindo.

Krad sabe o que é preciso fazer.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler (*u*)



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