Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 87
Capítulo 87: POV Jazmyn Hope




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Eu era diferente. Pelo menos, era assim que meus pais me classificavam quando alguém me olhava esquisito. Ela é diferente. E um gesto que substituía a frase, 'não precisa prestar atenção a ela'.
Eles nunca perguntaram o que eu achava daquilo. Nunca desviavam os olhos na minha direção para ver minha reação. Eles também acreditavam no seu próprio gesto. Eles também não prestavam atenção a mim.
Não poderia dizer que não entendia o porquê daquilo. No começo, quando ainda era muito nova, me sentia empurrada para um canto, proibida de abrir a boca. Depois, conforme fui crescendo, eles transformaram aquilo em motivo de risadas leves. Eu os acompanharia, sentada em minha cadeira, segurando meu copo de plástico, enquanto eles explicavam para seu milésimo amigo sobre minhas manias. Eu sorria. E ficava quieta.
Mas não era piada para mim. Já adolescente, percebi que eles nunca entenderiam. Porque eles eram eles e eu era eu. Eles estavam junto com o resto do mundo, do outro lado. Eu estava sozinha aqui. E tinha uma grande distância entre nós.
Eles nunca conseguiriam chegar ao meu lado, olhar por cima do meu ombro e ouvir porque eu fazia o que fazia. Porque eu acreditava no que acreditava. Eles não entendiam a necessidade de facilitar tudo, de deixar as coisas na ordem em que eu precisaria, de planejar tudo que eu faria e já programar o que sabia que daria errado. Eles estavam bem vivendo a tropeços e não viam porquê tentar um jeito mais lógico e prático como o meu. Eram só manias, eles diziam. Mania de arrumação, de controle, obcessivas. Eles zombavam da minha ordem, questionavam meus métodos, mas insistiam que era com carinho. Ela é diferente, insistiam, me empurrando ainda mais forte para longe deles. E eu ia, porque sabia aonde pertencia e não queria ter encaixar.
Quando era adolescente, eu ainda tentava. Foi a época em que mais quis desaparecer. Ou mudar, simplesmente mudar. Mas, na minha cabeça, era mais fácil mudar o mundo inteiro a me convencer de algo completamente sem sentido. E minha mãe prometeu que tudo passaria, que eu me encontraria na faculdade.
Ela estava certa. No meu curso, eu me encontrei. Me enfiei de cabeça nos livros e nos métodos científicos, recebendo aplausos pelo meu jeito de cada professor que cruzou me caminho. E todo aquele ambiente onde a minha pessoa era transformada em piada se resumiu aos poucos feriados em que eu voltava para casa. Fui classificando o resto do mundo em alienados e me contentei em saber que existia um lugar aonde a claridade de meu pensamento era bem-vinda: na medicina.
Foi com o coração cheio de antecipação e a cabeça já organizada com tudo que eu faria, que eu cheguei ao meu primeiro dia em um hospital. Mas saí bem antes da hora em que deveria. E completamente perdida.
Eu não estava pronta para desistir da medicina, isso era algo que eu nunca conseguiria fazer. Desistir em si, deixar coisas mal acabadas ou sem fim era impossível para mim. Por menor que fosse a atividade, só começaria se fosse levá-la até o final. Mas aquele único dia em um hospital de verdade tirou pedaços de mim que eu sentia quase fisicamente sendo arrancados das minhas costas. Não podia respirar por um segundo, não conseguia tomar as mínimas decisões, não sabia lidar com um ambiente aonde planos eram obsoletos e tudo tinha que ser decidido na hora.
Se não fosse por minha irmã, Melody, que me via como a deusa da perfeição desde que éramos pequenas, eu nunca mais teria voltado. Ela fazia questão de sair de casa, de deixar a família real e seu marido esperando, para ir atrás de mim todos os dias e me acompanhar até a porta do hospital. E o tempo todo em que eu estava lá dentro, ela trocava mensagens comigo, me perguntando como eu estava, tentando tirar minha cabeça de todo o caos. O que era para ser uma distração se tornou meu ar. Eu voltei a respirar e aprendi a acompanhar a coreografia do trauma. Ficava o máximo que podia na emergência, mesmo que passasse a maior parte do tempo perdida, só para observar, para tentar me acostumar. Podia imaginar minha mente criando raízes, decorando movimentos e sinais, criando velocidade o suficiente para conseguir planejar coisas com poucos segundos. E o tempo foi passando, dois anos no mesmo emprego, trabalhando mais do que todo mundo que eu conhecia, mas avançando o suficiente para uma década, achando meu espaço.
Quando eu finalmente senti que tinha conquistado aquela etapa e que ela estava finalizada, resolvi sair. Muitos ali ainda viam carreiras intermináveis pela frente, que os consumiriam a cada dia. Mas eu sabia que precisava de algo mais calmo. Por mais que tivesse superado todas as minhas expectativas, ainda queria outra coisa para a minha vida. E Melody apareceu com uma vaga no hospital do castelo.
Era uma ala hospitalar enorme, com várias enfermeiras e muitos médicos. Mas até a expressão no rosto deles era diferente. Todo mundo ali sabia que era um lugar calmo, com poucos casos e muito menos histórias. Eles tratavam de pessoas incríveis, reis e rainhas de países diversos que tivessem qualquer problema enquanto visitavam Illéa. Mas ninguém precisava ficar esperando acidentes aéreos ou coisas desse tipo. Eram casos rápidos, mas raramente urgentes. E eu tive o tempo necessário para criar uma rotina.
Andando pelos corredores vazios e sentindo o cheiro característico de hospital, eu me sentia em casa. Mas era pelo silêncio, por aquela sensação de que eu estava em controle, que sabia exatamente o que aconteceria quando. Outros reclamavam de tédio, mas eu poderia dançar ali com a calmaria e as consultas marcadas.
Era uma rotina ideal, que eu tinha apreciado por vários meses. Até que a Princesa Lola chegou ao castelo e trouxe com ela várias ideias espontâneas.
Como aquela festa, aonde eu estava entrando naquele exato momento. Podia me lembrar de quando tinha me voluntariado para ficar de plantão, já que Lucca teria que participar. Todos suspirando aliviados pela chance de curtir a festa e eu também, por querer ficar sozinha. E agora lá estava eu, procurando por ele no meio das pessoas molhadas e suadas que não percebiam minha presença nem quando esbarravam em mim. Aqueles dois anos no hospital público era a única coisa que conseguia me manter forte ali.
A cada passo que eu dava, sabia que aquela era a festa que eu mais queria ter evitado. A primeira não tinha sido tão insuportável, mas, também, eu só tinha ficado cinco minutos nela até ganhar uma distração. Mas até cinco segundos no meio daquela festa na piscina já me fazia querer sair correndo. Ninguém parecia se preocupar com a sujeira do chão que seus pés molhados deixavam, ou em como eles saíam da água e se misturavam na pista de dança como se estivessem secos. O mínimo de tempo que eu pudesse passar ali, melhor.
Fui direto até Lucca, que, para meu azar, estava o mais longe possível, perto da mesa de buffet. Ele conversava alegremente com o cara que tinha me atrapalhado na outra festa e eu quis parar ali e desaparecer.
Mas se eu não conseguisse a assinatura de Lucca, os próximos remédios só chegariam depois de uma semana. Não achava que precisaríamos de todos tão urgentemente, mas a ideia de algo inesperado acontecer e não termos exatamente o que necessitamos era demais para eu suportar.
Me aproximei, tirando os papéis que tinham estado protegidos pelo meu casaco e ofereci na direção de Lucca. Ele já tinha me percebido e mal desviou o olhar para pegar a caneta da minha outra mão. Mas fez questão de passar os olhos pelo contrato e se secar o suficiente para não arruiná-lo antes.
"Olá," o cara que eu lembrava se chamar Ian disse. Eu assenti, mirando logo o chão. "Estava me perguntando se a veria por aqui," ele continuou, ignorando a minha falta de abertura para a uma conversa. "Mas, devo admitir, todas as vezes em que tinha imaginado encontrá-la, você estava vestindo outra coisa."
Ele sorriu, como se aquilo fosse muito engraçado. E ainda fez questão de levantar uma sobrancelha.
Mas eu não entendia o problema. Ele tinha razão. Ninguém esperaria encontrar outra pessoa vestida de terninho que, minutos antes, tinha estado coberto com um jaleco, logo em uma festa na piscina.
"Eu não tenho um biquini," admiti, quando ele ficou esperando uma resposta.
Ele franziu as sobrancelhas, parecendo não saber como continuar. Por mim, não precisava nem ter começado. E eu só queria que Lucca terminasse logo de checar se todos os remédios que estavam sendo pedidos eram os certos para eu poder sair dali.
"Eu dei uma passada na ala hospitalar semana passada," Ian continuou, incansável. "Mas não te vi por lá." Ele deu um gole em sua cerveja e me mirou, outra vez esperando minha reação.
Mas o que ele queria que eu falasse?
"Eu sou ocupada. E é uma ala grande," foi o que respondi. "O que aconteceu com você?"
Ele virou sua mão para mim, que parecia estar se recuperando de uma queimadura bem leve.
"Ah," soltei, pensando que aquilo era realmente simples, por que ele gostaria logo da minha opinião?
"Aqui," Lucca disse, me entregando o contrato assinado. "É só disso que você precisa?"
"Sim," respondi, já imaginando como seria incrível voltar para a ala hospitalar, vazia e silenciosa. "Obrigada, Dr. Green."
"Espera, por que você não fica um pouco?" Ian perguntou, quando eu já dava meu primeiro passo para longe deles.
Parei. Sem querer, minha cabeça já pensava naquela pergunta. Mas a verdade era que eu não conseguiria encontrar uma resposta que me mantivesse ali.
"Não quero," falei, pronta para voltar a me afastar.
"Mas tem gente aqui que vai sentir a sua falta," Ian inclinou sua cabeça um pouco na minha direção, levantando uma sobrancelha.
"Não é verdade," falei, me virando de vez agora e começando meu caminho para fora daquele lugar.
Passei pelo menor número de pessoas suadas possível e cheguei triunfante dentro do castelo. Dali até a ala hospitalar seria seco e calmo. Pelo menos, era o que eu pensava, até que senti alguém me tocar o ombro.
Me virei com um susto para encontrar Ian ali.
"O que aconteceu?" Perguntei, imediatamente imaginando que ele precisaria da minha ajuda médica.
Mas, depois de o olhar de cima a baixo, me lembrei que ele tinha estado com Lucca. Ele não precisaria de mim quando tinha o cirurgião geral chefe como amigo.
"Eu quero testar uma coisa," ele disse, pigarreando, agora sem cerveja alguma nas mãos.
"O que isso tem a ver comigo?"
Ele ameaçou abrir um sorriso, focando em meu rosto como se estivéssemos fazendo aquela bricadeira sem sentido de ver quem piscaria primeiro.
E então ele respirou fundo. "Jazmyn Hope, você é linda."
Nós ficamos imóveis por alguns poucos segundos.
"Como você sabe meu nome?"
Ele bufou uma risada, parecendo um pouco frustrado. Até dei um passo atrás, caso resolvesse ficar bravo do nada.
"É isso que você ouviu?" Perguntou, depois de olhar para o teto e voltar a me mirar. "Eu falei que você é linda, você não tem nada a dizer sobre isso?"
"Achar alguém atraente é definitivamente uma questão pessoal," expliquei. "Se você acha isso, não cabe a mim questionar."
"É isso que você tem a dizer?" Ele perguntou, dando um passo na minha direção, completamente subtraindo aquele que eu tinha dado antes.
Mas era perto de mais para mim e fiz questão de me afastar outra vez, com a mesma distância.
"O que gostaria que eu dissesse?"
"O que isso te faz sentir," ele disse, insistindo em se aproximar de mim. Parei de me mexer, tentando pensar. O que ele queria que eu sentisse? "Jazmyn," ele me chamou, trazendo meus olhos para os dele. "Eu te acho linda. Como isso te faz sentir?"
Dei de ombros. "Normal," falei, e ele pareceu que tinha acabado de levar um tapa. "Bem?" Tentei melhorar, sem sucesso. Eu não queria ofendê-lo, mas não sabia aonde ele estava levando aquilo, o que ele queria de mim. Depois que ele assentiu para si mesmo, deixando seus olhos perdidos pelo chão, eu me lembrei que tinha que entregar o contrato para o cara do caminhão que buscaria os remédios. "Preciso ir," falei, antes de me afastar, apesar de Ian já nem estar me ouvindo.
Quando virava o corredor, dei uma última olhada em sua direção. Ele me observava de volta, parecendo ainda mais confuso do que antes. E eu podia sentir quase fisicamente aquela distância que sempre soube que me separava do resto do mundo crescendo entre nós. Ele ainda não a entendia. Mas eu sabia que meu lugar era sempre me afastar.


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