Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 66
Capítulo 66: POV Lola Farrow


Notas iniciais do capítulo

As músicas que eu ouvi durante esse capítulo, conforme tudo foi acontecendo:
— Comecei com "Team" da Lorde.
— Quando ela sai do banheiro, mudei para "New Bitch" da Iggy Azalea.
— Quando ela sai da sala, mudei pra "Only" da Nicki Minaj
— A próxima vez que o Marc aparece, mudei pra "I Am Your Leader" da Nicki ainda.
— Quando eles saem da festa, "Bed of Lies" da Nicki também.
— E terminei na rua do castelo com "Pill N Potions" dela.



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As vantagens de ser da realeza eram muitas. Desde a prataria e os vestidos, até o simples fato de poder influenciar alguém com algo simples como seu nome. Muitos diriam que o fato de nunca ficar sozinho era uma delas. Mas eu discordava.
Desde pequena, essa para mim era a pior desvantagem. Em Illéa, eu tinha muitas chances de poder pedir que me deixassem em paz. Meu único afazer era conseguir escolher um marido. E, para isso, eu poderia usar o método que quisesse. Mas, no Reino Unido, eu nunca estava sozinha. Praticamente me vestia durante reuniões ou visitas. E isso me incomodava muito.
Além de sentir um certo orgulho de não precisar da presença de ninguém para me sentir completa, eu também tinha a necessidade de ficar sozinha. Era como eu raciocinava. Se passasse muito tempo em meio a outras pessoas, meus pensamentos saíam de controle e meu humor oscilava. Por isso, mesmo entre festas e grandes eventos, eu sempre buscava alguns momentos de solitude na multidão. Aquilo me agradava como ar depois de um bom tempo embaixo d'água.
Mas ao assistir Marc se distanciar de mim, eu me senti foi afundando. Ali, em um lugar que eu nunca conseguiria apontar no mapa, a última coisa que eu queria era ficar sozinha. Muito pelo contrário, a cada passo que ele dava, maior era a minha vontade de correr para agarrar sua mão.
Ao invés, me virei de costas para ele e de frente para a pista, agora vazia. Quase podia ouvir os carros correndo, mas nem de longe conseguiria vê-los. A música estava alta, naquele volume que deixava de ser ensurrecedor e começava a me fazer pensar demais em tudo que acontecia. Era como se ela aumentasse o atrito das coisas e cada toque, cada olhar, cada movimento ficasse em maior evidência, tivesse um significado mais profundo.
Eu me abracei, quase cruzando os braços, mas não exatamente, como se me protegesse daquilo. Não queria ficar tão exposta quanto estava. Mas era a única ali que estava sozinha. E não saberia por onde começar a mudar aquilo.
Olhei à minha volta, sem muita esperança de encontrar uma distração. E foi quando eu vi Marc subindo até o telhado por o que parecia ser uma escada improvisada com caixas e traseiras de carros. Antes mesmo que ele chegasse até o topo, eu sabia aonde ele iria. No meio de todos que assistiam a corrida de lá, estava uma menina que o esperava quase como se sua paciência já estivesse acabando. E quando ele se sentou do seu lado, ela só esticou o pescoço e esperou o beijo dele, que não devia ser nada além do que uma obrigação.
Voltei meus olhos para o resto da festa assim que percebi que Marc estava para me avistar. Ele não era meu amigo. Não era nada meu. Eu precisava me convencer disso. Porque, enquanto eu ainda me sentia a pessoa mais deslocada do mundo, a única coisa que eu pensava era que era culpa dele. Ele tinha me trazido ali. Ele sabia quem eu era e para onde íamos. Me abandonar daquele jeito só podia falar muito mal de seu caráter.
Mas, como eu mesma sabia, ele não era meu amigo. Eu mal sabia o seu sobrenome, tinha lutado para conseguir descobrir o seu primeiro. Não tinha porque eu cobrar dele uma atenção que ele claramente não queria me dar. O acordo tinha sido claro, ele só me traria até aqui. Esperar qualquer coisa além disso era ingenuidade minha.
E eu realmente não queria ser ingênua.
Me chacoalhei como podia ali, checando se alguém estava olhando muito para mim. Se aquilo estava muito ruim, eu poderia simplesmente ir embora. Podia ir perguntar para o Marc como e ir sozinha. Eu não precisava dele, poderia me virar.
Mas decidir ir embora era praticamente declarar que eu precisava dele, que eu não aguentava ficar ali, que não aguentava ficar no meio daquelas pessoas. E a verdade era que eu era bem melhor do que todos ali.
Não pela coroa, nem nada daquilo que muitos considerariam as grandes vantagens de ser da realeza. Mas porque eu não precisava colocar jeans tão justos ou cortar todos os pedaços possíveis da minha blusa para ter algum valor. Não precisava participar de competições ilegais ou perder meu dinheiro em apostas. E também não precisava me provar para ninguém, nem ganhar a aprovação deles.
Soltei meus braços e comecei a andar pelas pessoas, quem riam, conversavam e dançavam entre si. Decidi que realmente estava bem sozinha e que me garantia em ser interessante o suficiente para não ter que ficar procurando conversar com ninguém. Mas a primeira coisa que eu fiz foi ir na direção das bebidas. Virei o resto da cerveja que tinha e fiz questão de pegar alguma coisa mais forte. Quanto mais rápido eu parasse de me importar de verdade, melhor pra mim.
Andei de volta pela multidão tomando goles rápidos e olhando para todos que podia. Em cinco minutos eu já sabia praticamente tudo que estava acontecendo. Podia apostar no que estava nos saquinhos que o cara do canto entregava para as pessoas em troca de notas dobradas. Sabia também que a menina que segurava a bandeira para dar o final da corrida não gostava da menina de quem fingia ser amiga. Ela a olhava com cara de nojo toda vez que ela virava de costas. E quando ela achava que ninguém estava olhando, tentava ajeitar o mini shorts que usava.
Era engraçado pensar que até mesmo ela, que devia ter valores bastante diferentes dos meus, ainda tinha certos instintos parecidos. Era como uma ligação feminina que eu sabia que tínhamos. Ela usava shorts minúsculos, mas ainda parecia se preocupar em mostrar demais, insegura com certas coisas. Quase fui até ela dizer que, se tinha alguém que conseguia se vestir daquele jeito e ficar bem, era ela.
Mas talvez eu estivesse imaginando tudo. E podia muito bem não falar nada e esquecer daquilo.
Voltando a olhar para a festa, acabei me deixando observar Marc. Eu estava quase completamente embaixo da casa e mal podia ver seu rosto. Mas era um jeito de ter certeza de que ele não me viria ali.
Ele tinha seu braço em volta da tal menina, mesmo quando ela conversava com as suas amigas e parecia ignorá-lo. A sua outra mão se encontrava na coxa desnuda dela, como se a mantivesse como propriedade. Parei de olhar para eles assim que ela se inclinou para ele e eu percebi que conseguia ver por baixo da saia dela dali.
Por que, exatamente, eu estava ali? Qual era a vantagem de ficar em um lugar tão sujo, com lama grudando nas minhas botas e gente bêbada querendo beber ainda mais?
Assim que a corrida terminou e o vencedor foi declarado, a festa pareceu ganhar vida própria. Outras pessoas chegaram, a música parecia estar mais alta e a noite definitivamente estava mais escura. As poucas luzes ali já não pareciam ser o suficiente e eu tinha medo de pisar em coisas erradas. Mas passei a maior parte do tempo sentada no pódio da casa, assistindo todos os outros e celebrando dentro da minha cabeça quando começava a tocar alguma música que eu conhecia, mesmo que não me agradasse propriamente.
Já devia estar no meu quinto copo de cerveja, depois de desistir da vodka. Não queria perder a noção das coisas toscas daquela festa o suficiente para aguentar o gosto. Mas beber tinha sido um jeito de me manter ocupada e tinha até perdido a vergonha de pegar dois copos por vez e evitar de ter que me levantar o tempo todo.
Assim que tomei o último gole, percebi porque devia ter ficado com a vodka. Cerveja só deixava a minha bexiga ainda mais cheia. Eu tinha passado a maior parte do tempo lutando contra aquela vontade, rezando para conseguir segurar até poder usar um banheiro do castelo. Mas ainda era meia-noite e eu já não aguentava mais.
Me levantei e comecei a vagar de novo pela festa sem rumo, tentando descobrir como solucionaria aquele problema sem ter que parar ninguém para perguntar.
Ainda estava sozinha, no máximo tinha sorrido para alguma pessoas que tinham me ignorado logo em seguida. Mas não importava mais tanto. Ninguém parecia me notar, até eu mesma já não sabia direito o que fazia. Tinha muita gente para alguém se importar comigo.
Quase dancei de felicidade quando percebi que tinha uma fila de meninas saindo de uma porta da casa. Aquele tinha que ser o banheiro! Era o sinal mais claro que eu poderia ter. Mas, ainda assim, fiz questão de perguntar.
Cheguei perto da última.
"Desculpa, mas aqui é a fila do banheiro?" Perguntei. Ela se virou para me olhar, franzindo ao me ver. "Tem algum problema?"
"Não," ela respondeu, me sorrindo. "É só que eu não te conheço e eu conheço todo mundo que vem aqui," eu respirei aliviada, só então percebendo que ela podia ter falado bem o contrário e me perguntado o que uma princesa estava fazendo ali. "E essa é a fila do banheiro, sim," completou.
"Okay, obrigada," falei, olhando por cima do ombro, tentando me distrair do quanto eu precisava que aquela fila fosse menor.
"Eu sou Azalea," ela disse, me fazendo voltar a mirá-la. "Quem te trouxe?"
"Marc," respondi, prontamente.
Ela inclinou a cabeça um pouco para trás, me olhando esquisito. "Marc Hynes?" Perguntou.
"É, por quê?"
Ela deu de ombros. "Nunca ouvi falar dele trazendo ninguém," disse. "Nem sabia que tinha amigos fora daqui."
"Ah, nós não somos amigos," falei, sem pensar direito.
Ela abriu um sorriso relutante e torto. "Entendi," disse, levantando uma única sobrancelha sugestivamente.
"Não!" Eu praticamente gritei na cara dela. "Não é assim, é só que a gente mal se conhece."
"Ah, tá," ela riu sozinha. "Já estava saindo correndo para contar pra todo mundo que eu conheço," não falei nada, mas alguma coisa na minha expressão deve ter mostrado que eu não tinha entendido, pois ela logo se explicou. "Sabe como é, fofocas de quem está saindo com quem e traindo quem sempre são bem-vindas por aqui."
"Então ele tem mesmo alguém para trair," falei, quase pensando alto.
"Uau, você realmente não é amiga dele," nós demos alguns passos à frente. "Natasha," ela disse, se virando para me olhar.
"É o nome da namorada dele?"
"Não diria que é namorada," ela me corrigiu, depois chegou mais perto de mim. "Ela é casada, na verdade, com um cara muito mais velho e rico. Pelo menos, é o que dizem."
"Mas-" Ia perguntar então o que ele estava fazendo com ela, mas não queria fazê-la pensar que eu era mesmo ingênua e não conseguia acreditar que alguém pudesse trair seu marido.
"De qualquer jeito," ela disse, suspirando, "não precisa se preocupar, não vai durar. Ele nunca fica com ninguém por muito tempo."
"Por que eu estaria preocupada?" Perguntei e ela riu de leve.
"Por nada," disse, sem se esforçar muito para me fazer acreditar. Demos mais alguns passos para a frente, enquanto eu olhava à nossa volta. Quando voltei a mirá-la, ela me observava. "Você conhece mais alguém aqui?"
"Não exatamente," admiti.
Ia tentar explicar que não precisava mesmo conhecer ninguém, que não era por isso que eu estava ali, mas chegou a vez dela e eu fui deixada a olhar para a porta. Quando ela saiu e sorriu para mim, achei que fosse a última vez que a veria. Mas eu entrei, usei o banheiro e a encontrei me esperando do lado de fora depois.
"Vem," ela disse. "Vou te apresentar a uns amigos meus."
Ela colocou o braço em volta do meu como se fosse minha melhor amiga e me guiou. O caminho todo até o círculo de amigos dela foi ótimo. Era a mesma festa, a mesma grama molhada e suja, a mesma música minimamente agradável. Mas minha energia estava renovada. Ninguém olhava para a gente, mas eu andava como se nos assistissem. Eu realmente me sentia como parte daquele lugar, parte das pessoas, até mais interessante, quase como se tivesse acabado de começar a existir ali.
E quando nós chegamos até seus amigos, todos pareciam querer saber meu nome e o que eu fazia. Fingi que era escritora, que era o que eu realmente gostaria de ser se tivesse que escolher uma carreira, mas expliquei que ainda não tinha nada publicado.
Azalea tinha vários amigos, e muitos bonitos. As meninas pareciam todas ter seu par, e uma delas era a namorada de Azalea. Mas sobravam caras solteiros e eles fizeram questão de me olhar bem, enquanto eu rezava para não ser reconhecida.
Os próximos copos de cerveja que eu bebi foram bem melhores. Mesmo que a maior parte do tempo eu passasse me concentrando neles e só ouvindo as piadas internas que os outros tinham, pelo menos eu já não era excluída. E quando eu tive que ir ao banheiro uma segunda vez, fui com algumas das amigas de Azalea, mesmo sem ela vir com a gente, e foi bem mais divertido.
Mas eu ainda não fazia parte do grupo. Eles ainda falavam sobre coisas das quais eu não entendia nada, e eu ainda evitava o máximo falar de mim. Ainda me pegava em momentos esquisitos, onde eu não sabia o que falar e me via guardando meus pensamentos para mim. Eu ainda não pertencia, por mais que o álcool quisesse me convencer do contrário.
Em certo momento, eles resolveram entrar na casa. Aparentemente, lá dentro as músicas eram bem melhores. Cada cômodo tinha um estilo e era bem mais confortável ficar jogado em algum sofá do que de pé em grama molhada.
Eu tinha certeza de que tinha sido a cerveja, mas quando entrei no que parecia ser a sala e eles tinham decidido que ficaríamos ali, me joguei em uma poltrona. Só depois de já estar sentada toda desconfortável que eu parei para me questionar se ela estava limpa, quem morava ali e como eu estava jogada como uma adolescente.
Mas não me indireitei. Pelo contrário, me deu um ataque de histeria e eu comecei a rir sozinha, me perguntando se algum dia na minha vida inteira eu poderia ter me imaginado ali. Todas as vezes em que eu tive alguém segurando a saia do meu vestido, todos os dias em que tinha que esperar do lado de fora até que todos tivessem certeza de que o cômodo estava adequado para a minha presença. Todas as visitas, todas as medidas de segurança tomadas. E ali estava eu, no meio do nada, no meio de pessoas que eu nunca tinha visto antes. Tão negligente, tão inconsequente que eu não conseguia parar de rir. E meus novos amigos me achavam mais louca a cada segundo.
Depois de um certo tempo - e de me acalmar, - acabei percebendo porque eles queriam entrar na casa. Ali era bem mais confortável para eles se pegarem.
Os amigos da Azalea nem vieram falar direito comigo, já deviam ter escolhido atrás de quem iriam faz tempo. E logo eu virei a vela da sala, todos sentados uns nos colos dos outros e eu sobrando na poltrona.
Quando um dos amassos começou a ficar um pouco forte perto demais de mim, me levantei e fui conhecer a casa. Não estava tão interessada, só não queria mais ficar ali. Já não me sentia tão sozinha, mesmo o estando. Sabia que conhecia alguém e que podia ir atrás deles. Mesmo que fosse um incômodo, não seria tão ruim quanto ter que ir atrás de Marc.
Fui direto para a cozinha. Não que quisesse, mas era o que estava no final do corredor. Também tinha uma escada, mas não queria o trabalho de subir.
Pensei em abrir a geladeira e ver o que tinha ali, mas um casal entrou na hora e me interrompeu. O cara colocou a menina em cima do balcão e eles começaram a se pegar, me forçando a voltar por onde tinha chegado.
Mas minha saída foi brusca e eu dei com tudo em alguém que estava ali, jogando minha cerveja para cima dele.
"Desculpa," falei, olhando para cima, tentando ver quem era.
"Não tem problema," ele respondeu e eu o reconheci.
Era o amigo de Marc, podia jurar que chamava Rafael, o cara que parecia italiano. Parecia ainda mais de perto. Ele passou a mão pela sua blusa onde a cerveja estava, mas não deu nem um passo para trás, me encurralando na parede.
"Onde está seu amigo?" Ele me perguntou, sorrindo de lado. Eu aproveitei o apoito e sorri de volta. "Marc."
"Ele não é meu amigo," respondi, quase fechando os olhos. "Ele não é nada meu. Absolutamente nada. Só meio de transporte."
Ri da minha piada infame e Rafael foi educado o suficiente de me acompanhar.
"Que bom," ele respondeu.
Na hora, um grupo de pessoas desceu as escadas e passou por nós, o obrigando a chegar ainda mais perto de mim. Eu me ocupei de beber o resto da minha cerveja, mesmo que tivesse que espremer o copo entre nós, só para não arriscar de deixar minha boca livre.
"Está gostando da festa?" Ele perguntou, se afastando de mim quando ficamos sozinhos de novo no corredor.
"É bem diferente do que estou acostumada," admiti, o acompanhando quando ele fez menção de começar a andar.
Ele riu da minha resposta. "Sabia," disse, me indicando uma sala.
Eu entrei feliz e fui me sentar em uma mesa. "Sabia do quê?" Perguntei, enquanto ele ia até uma caixa e tirava uma cerveja que ele despejou no meu copo.
Nós devíamos estar em algum tipo de escritório. Ou o que um dia tinha sido, pois a mesa parecia bem para trabalho e não sobrava espaço para mais nada. Não que tivesse algum outro móvel ali.
"Que você era diferente," ele respondeu, ficando de pé na minha frente.
Eu ri sozinha. "Sim, eu sou diferente," concordei. "O que quer que isso signifique," completei, dando um gole grande na cerveja.
Meu estômago já começava a não querer, me implorando para parar. Nem sentia mais tanta vontade de beber, mas era tudo que eu podia fazer ali. E queria me manter o mais distante possível dele.
Rafael colocou uma mão no bolso e se limitou a me observar. Depois de um tempo sem falar nada, eu tive que quebrar o silêncio.
"Quê?" Perguntei.
"Nada," ele respondeu, apesar de seu sorriso malicioso.
E em menos de um segundo, eu senti sua mão na minha coxa.
Olhei para ela, precisando ver com meus olhos que aquilo estava mesmo acontecendo.
"O que você está fazendo?" Perguntei, e ele só deu de ombros.
Eu estava enlouquecendo? Aquilo era normal para as pessoas que não eram da realeza e só eu não sabia? Eu desconhecia alguma regra do mundo?
A mão dele se mexeu perigosamente e eu a empurrei, por instinto.
"Eu não estou interessada," falei, fechando minhas pernas o mais forte possível. Mesmo de calça, mesmo com uma camada de tecido entre nossas peles, eu ainda sentia como se estivesse exposta.
"Não tem porque se preocupar, somos só nós dois aqui," ele disse, ignorando completamente o que eu tinha dito e chegando mais perto de mim.
Na hora, eu olhei para a porta e imaginei como teria que escorregar da mesa para conseguir chegar até ela. Ou eu simplesmente poderia conseguir que ele percebesse que tinha entendido mal. Eu devia ter dado a impressão errada.
Só voltei mesmo a olhar para ele porque senti a mão dele apertando minha coxa e me forçando a abrir as pernas. Aquilo estava errado, aquilo estava completamente errado. Mil alarmes soavam na minha cabeça. E quando me virei, seu rosto estava a poucos centímetros do meu.
"Por favor," eu pedi, idiota. "Eu não quero."
Coloquei minha mão entre nós, que ele tirou rápido e segurou firme do meu lado. Mas ele logo a soltou, para poder passar a sua mão no meu braço. Aproveitei para tentar empurrá-lo, mas ele era forte, muito forte. Não podia mexer minhas pernas, era como se ele tivesse travado sua posição na minha frente e eu não conseguiria achar forças para tirá-lo dali.
Fiquei repetindo que não o queria, mas ele me ignorava, sem me responder, passando sua mão no meu braço, nas minhas costas, no que eu não conseguia esconder me encolhendo, sem me dar tempo de tentar tirar suas mãos de mim. Eu larguei o copo de cerveja e tentei segurar sua cabeça com as duas mãos, mas até nisso ele conseguia ser mais forte do que eu.
Quando ele encostou sua boca no meu pescoço, eu senti vontade de vomitar. E talvez tivesse sido perfeito, o deixando com nojo o suficiente para me largar. Mas quando abri a boca, tudo que eu consegui fazer foi berrar.
Meus gritos me deram uma energia nova, ou talvez fosse o pânico que crescia dentro de mim a cada vez que eu o sentia passar sua mão em mim. Eu me encolhia, ao mesmo tempo que gritava e não parava um segundo de tentar empurrá-lo e chutá-lo. Quando senti sua mão segurando firme no meu queixo, me machucando e tentando me mirar na direção do seu rosto, fechei os olhos. Eu queria estar em qualquer lugar, absolutamente qualquer lugar do mundo, menos ali. Eu aceitaria o que fosse, se eu pudesse nunca mais ter que vê-lo na minha frente.
E logo em seguida eu não senti nada. Nada além de ar. Ele não estava mais em mim, eu estava livre. Abri os olhos e os barulhos que eu ouvia finalmente fizeram sentido. Marc estava na parede, segurando Rafael pelo pescoço a ponto dele não alcançar mais os pés no chão. Um outro cara que eu não conhecia o puxava para longe dele e acabou conseguindo. Assim que Marc o soltou, ele se virou para me olhar. Em um segundo, ele tinha vindo até mim, me pegado pela mão e me levava para fora dali.
Eu tentava andar tão rápido quanto ele, desviando de quem passava por nós ou de quem estava no nosso caminho, e consegui até sairmos da casa. Marchávamos furiosamente na direção da rua, quando ouvimos Rafael chamar Marc pelo nome.
Eu não parei, mas ele sim. Ele se virou para olhar de volta pra casa e eu fiz o mesmo, mas só quando já estava atrás dele.
"Aonde vocês pensam que vão?" Rafael perguntou, saindo pela porta, com alguns caras os seguindo.
Marc fez questão de se colocar na minha frente completamente, me escondendo enquanto eles andavam na nossa direção. Eu não soltei a sua mão, mas, com a minha outra, segurei na manga da sua camiseta e o puxei para mim, na direção da rua, tentando fazê-lo largar daquilo e ir embora.
Mas eu o senti ficando rígido quando os caras chegaram mais perto. Eles praticamente estralavam os dedos atrás de Rafael, que deveria mandar ali.
Na minha cabeça, eu me convenci de que estava louca. Aquilo não estava acontecendo. Nós não estávamos em um filme. Pessoas na vida real não brigavam em festas. Caras não se socavam por nada. O que eles iam fazer? Simplesmente dar alguns passos à frente e mirar socos na cara um do outro?
Sim. Foi exatamente isso que eles fizeram.
Marc foi o primeiro. Assim que eu senti o ar gelado na minha mão, eu sabia que ele a tinha largado. Tentei alcançá-lo a tempo, mas foi inútil. Ele já tinha o punho fechado no meio da cara do primeiro que tinha dado um passo na nossa direção.
Mas ele era um. E eles eram três, mesmo que Rafael não parecesse inclinado a mexer um dedo. E tão logo ele tinha dado um soco em um deles, ele levava outro.
Meu instinto foi esconder meu rosto. Mas eu não conseguia simplesmente ouvir aquilo e não fazer nada. Ele estava ali, apanhando porque eu o tinha obrigado a me levar ali e ainda tinha criado problema.
Sem pensar duas vezes, eu fui até ele. O cara ainda o socava, apesar de Marc conseguir desviar desajeitadamente de alguns. Minha ideia era me colocar entre eles, mas o máximo que fiz foi conseguir segurá-lo pelos ombros e o puxar alguns metros para trás.
Marc tinha os olhos vidrados nos caras, nem parecia me perceber ali. Ele queria bater de volta, eu sabia. Para ele, a briga não tinha terminado. Ele ainda parecia louco para ter outra chance de bater neles. Eu fiquei insistindo para a gente ir embora, mas ele só ouviu realmente quando seus olhos foram distraídos por alguma outra coisa.
E os seguindo, eu entendi porque. Dois outros caras saíam de trás da casa, cada um carregando um taco de baseball de alumínio. Marc tinha punhos, ele conseguia rebater socos. Mas ele não tinha mais nada além disso.
Ele deu alguns passos para trás, o que facilitou para que eu o empurasse mais. E quando os caras foram chegando mais perto, ele deve ter desistido de bater o pé e encarar a briga, pois acabou se virando para mim, pegando na minha mão e começando a correr.
Eu não conseguiria saber se sentia mais alívio ou pânico. Rafael gritava coisas que eu preferia não escutar. Ameaças, risadas, tudo naquela voz rouca que me fazia estremecer por dentro.
Marc corria rápido, e eu lutei para acompanhar. Eu nem sentia meus pés, mas não parava. Era como se nem fossem meus, como se se mexessem sozinhos. Eu tivesse dado a ordem e eles obedeciam.
Nós viramos esquinas e não parávamos. A festa toda começou a ficar muito para trás e eu até duvidaria que tinha acontecido. Era um mundo que já não existia para mim, e eu comecei a gostar de correr, gostar de ficar sem ar. Os pequenos saltos das minhas botas devolviam em meu calcanhar o impacto de cada passo meu, mas eu devia estar amortecida para aquilo, porque não me incomodava. Meu rosto estava quente, pelo clima dentro da casa ou do que tinha acontecido. Mas o contraste com o vento gelado que cortava nossa corrida era ótimo. Era delicioso. E me dava ainda mais vontade de continuar.
Mas Marc eventualmente sentiu que tinha sido o suficiente. Ele foi diminuindo o passo e eu o acompanhei. Até que nós paramos e ele soltou minha mão para apoiar com as suas duas nos joelhos. Eu só percebi o quanto estava cansada quando já não me mexia tanto. Minhas pernas queimavam e mal me aguentaram de pé. Tive que me dar por vencida e me sentar.
Ele riu de como eu estava morta, mas não demorou para se sentar do meu lado na rua. Na rua. No meio da rua, sem nem pensarmos em algum carro passar por nós.
Eu olhei para os dois lados, pensando naquilo. Não parecia que passavam muitos carros por ali. A cada cem metros tinha uma casa mais acabada do que a próxima. Não eram pequenas, mas eu podia apostar que quem morava ali não tinha muito dinheiro. Era quase como uma cidade abandonada por uma guerra, coisa que eu só tinha tido a chance de ver por fotos históricas. Coisa que eu nunca gostaria de ver de novo. Coisa que eu nem sabia que ainda existia. E pensar que pessoas de verdade viviam ali.
Quando terminei o círculo que fazia olhando as casas, peguei Marc me observando. Ele respirava fundo, como eu também fazia, mas devia estar bem pior do que eu. Até seus olhos pareciam exaustos, como se lateijassem com a dor.
De repente, fui obrigada a me lembrar porque tínhamos corrido tanto.
Uma onda de vergonha passou pelos meus ombros. "Desculpa," pedi, engolindo a seco e sentindo uma necessidade enorme de beber água me arranhar a garganta.
"Pelo quê?" Ele perguntou, me obrigando a olhar para ele.
Marc sorria, dispensando uma resposta. Mas eu queria que ele ouvisse a que eu tinha.
"Por ter insistido para que me trouxesse," falei. "Por ter estragado qualquer chance que você pudesse ter de voltar para aquele lugar horroroso," estremeci, pensando na próxima coisa que falaria. "E por ter destruído sua amizade com aquele cara," completei.
Minha esperança era que ele fosse dispensar minhas desculpas, era assim que eu o via. Alguém que fazia o que tinha que fazer e não queria levar créditos por isso.
Mas ele não bufou uma risada ou levantou suas sobrancelhas, nem fez nenhum gesto que me fizesse pensar que aquilo nem precisava ter sido falado.
O que ele fez foi me mirar mais fundo, franzindo para mim, como se tentasse me ver melhor.
"Eu preciso que você entenda uma coisa," ele começou, sério. Eu engoli a seco, talvez com um pouco de medo do que ele diria. Ele até se sentou melhor e se inclinou na minha direção antes de continuar. "Você não fez nada. Nada que tenha acontecido lá foi culpa sua."
"Mas eu devo ter dado a entender-"
"Escuta," ele pediu, chegando mais perto de mim. "Não existe possibilidade de ele ter entendido errado. Não existe sinal que você possa ter dado antes que cancele todas as vezes que você o empurrou ou pediu que parasse," suas palavras me levaram direto a um momento que eu queria que não existisse, que eu só conseguia lembrar com um calor sufocante no peito. "Ele sabia o que estava fazendo, a escolha foi dele e não sua. Não é culpa sua," Marc se esticou e me tocou no ombro.
Nada grande, leve, como se tentasse me consolar. Mas era um toque fresco, com intenções bastante diferentes daqueles de Rafael. E foi como se, só de me relar, ele transformasse todas minhas lembranças daquela noite em pó.
Eu olhei para sua mão no meu ombro, o que o fez tirá-la de lá na hora.
"Além do mais," ele continuou. "Eu não devia ter te deixado sozinha."
"Achei que fosse falar que não devia ter me trazido," eu disse, bufando uma risada, que ele imitou.
"Eu definitivamente não devia ter te trazido," ele apoiou as duas mãos na rua atrás dele e, depois de olhar à nossa volta, acabou me mirando outra vez. "Pelo lugar, não por você."
"Talvez da próxima vez nós podemos ir em algum lugar menos perigoso," sugeri.
Ele voltou a se sentar reto. "Próxima vez?" Perguntou, e eu concordei com a cabeça. "Não, não, que próxima vez, o quê?"
"Se eu me lembro bem," falei, "você disse que conhecia lugares. No plural."
Ele riu, me observando. "E você quer que continuem sendo no plural? Depois de tudo isso daqui?"
"Isso o quê?" Me fiz de tonta, e ele só apertou os olhos para mim.
Sem querer, nós caímos no silêncio e o clima voltou a ficar um pouco pesado, como se nós dois estivéssemos repassando todos os acontecimentos daquela noite em nossas cabeças.
Bom, eu estava.
"Sério, obrigada por aparecer bem a tempo," eu pedi, e nós dois voltamos a nos olhar.
"Ele não vale o chão onde pisa," me garantiu. "E eu teria feito o mesmo por qualquer pessoa."
Fiquei só um segundo pensando na resposta.
"Por um lado, me sinto ofendida que você pense em mim como qualquer uma," falei, fazendo-o balançar a cabeça para si mesmo. "Mas por outro, acho que isso diz muito sobre seu caráter. Não sei com qual lado fico."
"Não fique com nenhum," ele disse, se deitando como se estivesse em casa.
"Você sabe que nós estamos no meio da rua, não é?" Perguntei, apesar de estar sentada o mais perto da calçada que eu podia sem chegar na sargeta.
"Ah, é?" Ele perguntou, se levantando só o suficiente para me olhar e depois olhar à nossa volta. "Há," completou, voltando a deitar.
"Você é louco," eu disse, apesar de que vê-lo ali estava me dando vontade de acompanhá-lo.
Não me importava mais se a rua estava suja. Minha roupa estava. Eu suava que nem louca, minha pele estava grudando e eu sentava de qualquer jeito. E tudo que eu conseguia pensar era no alívio maravilhoso que sentiria quando desistisse de vez de tudo em que acreditava e me deitasse do lado dele.
"Não tem problema, ninguém que passa por essa vizinhança tem carro," ele disse, como se fosse uma coisa super normal e nem um pouco deprimente.
Eu só balancei a cabeça para mim mesma, sem falar nada. Quando ele não ouviu minha resposta, sentou de novo para me mirar.
"O quê? Você tem medo?" Me perguntou.
"Nunca falei que eu queria deitar."
"Não precisou, está na sua cara," ele disse, se levantando e vindo até mim.
Ele esticou uma mão na minha direção e eu achei que ele queria que nós continuássemos nosso caminho, então a aceitei.
Mas assim que eu estava de pé, ele me puxou para o meio da rua, me soltou e voltou a deitar.
"Tente," disse, colocando as duas mãos atrás da cabeça, praticamente alinhado com a linha que dividia as faixas.
"Você é louco," e mesmo falando isso, eu aceitei.
Me sentei do lado dele, olhando para os dois lados da rua para ver se alguém estava vindo. Aquilo era loucura demais! E se alguém aparecesse? Ele não podia ter certeza de que ninguém passaria por ali! Nós podíamos não ter tempo o suficiente para desviar.
"Vai," ele me puxou pela mão, quase me forçando para baixo.
E eu deitei.
Mas ainda estava com medo. Sentia a rua nas minhas pernas e nos meus dois braços e alguma coisa me dizia que já tinha dado, já tinha deitado e já podia me levantar e acabar com aquilo.
Mas eu segurei em sua mão firme, talvez firme demais, e me mantive ali o máximo que podia, quase como se tivesse que evitar de me mover um centímetro para não acabar desistindo e me levantando.
Marc apertou minha mão de volta, apesar de rir do meu jeito.
"Está vendo?" Ele perguntou. "Nem é grande coisa."
Mas era. Para mim, era. Com as poucas luzes da rua, eu podia ver muitas estrelas. Bem mais do que conseguia de Londres, já que o palácio ficava bem no meio da cidade.
Ali, o céu era escuro e a lua quase desaparecia. Mas as estrelas estavam por todos os lados, quase como glitter espalhado aleatoriamente. E aquilo foi me distraindo do medo de estar deitada ali, eu fui esquecendo que estávamos no meio de uma rua. Podíamos estar em qualquer lugar e eu não me importaria. Eu só queria estar ali.
O vento ainda estava gelado, mas eu já não estava mais quente. E, mesmo sentindo um pouco de frio, poderia ficar ali para sempre. Não precisava me aquecer, não precisava deitar em nenhum lugar mais confortável, nem precisava voltar para as mil vantagens da vida da realeza. Só de poder estar embaixo daquele céu, eu estava satisfeita.
Mas o momento era meu, não de Marc. Ele acabou se levantando depois de um tempo. E eu só me lembrei que tinha estado segurando sua mão quando ele soltou a minha.
"Quer ir embora?" Ele me perguntou, olhando para baixo até meus olhos, já que eu insistia em ficar deitada.
Podia ver no seu braço que ele estava com frio, só usando uma camiseta branca depois de eu ter ficado com seu agasalho.
"Não," admiti, me sentando do seu lado para o tirar e entregar para ele. Mas antes mesmo que eu pudesse tirar uma manga, ele levantou a mão no ar, o recusando.
"Eu tô bem, valeu," disse. "A gente vai ter que voltar em algum momento."
Joguei minha cabeça para trás, como uma criança mimada. E foi quando eu notei seu corte.
Ele tinha estado sentado e deitado do outro lado para mim, por isso ainda não tinha visto. Bem devagar, o corte sangrava pela sua bochecha. E, sem pensar duas vezes, puxei a manga da blusa, me estiquei e limpei a única gota até sua origem, na maçã do rosto dele.
Ele me deixou, só me observando. Assim que terminei, eu me dei conta de que a blusa era dele.
"Achei que um pouco de sangue no seu agasalho fosse bom," falei, tentando fazer uma piada. "Sabe, como uma cicatriz para lembrar da briga."
Ele sorriu torto. "Não tem problema," disse, levando uma mão até o corte para senti-lo.
"É bem pequeno."
"Acontece," ele deu de ombros.
"Acontece mesmo?" Quis saber. "É assim que é um dia normal para você? É assim que você vive?"
Dessa vez, ele sorriu com os dois lados da boca, não conseguindo se conter. "Praticamente."
Para ele, era engraçado. Mas me deixou um pouco preocupada.
"Está falando sério?" Perguntei, deixando bem claro em minha voz como eu sentia a gravidade daquilo.
Ele voltou a me olhar como se achasse graça no meu jeito. Lá estava eu, provando mais uma vez que não pertencia nem de longe àquele mundo. Tudo bem que isso era claro, mas eu podia ficar menos ridiculamente deslocada.
"Não se preocupe, estarei acordado e disposto para trabalhar amanhã cedo," me garantiu.
Aquilo me ofendia, nem que só um pouco.
"Essa é a última coisa com a qual eu estou preocupada," falei. "O que seus pais acham dessa sua vida?"
Na hora em que falei isso, me arrependi. Ele fechou a cara, engolindo várias vezes antes de se levantar.
"Vem," disse, começando já a andar. "Precisamos conseguir chegar no castelo antes que amanheça."
Eu me levantei e o segui. Sabia exatamente que tinha estragado a noite inteira. E não só por tudo que tinha acontecido na festa, mas pela última coisa que eu tinha perguntado a ele.
E foi bem conscientemente que eu resolvi insistir no assunto.
"Qual o problema com seus pais?" Perguntei, fazendo-o me olhar feio. "O que aconteceu com eles?"
"Nada aconteceu com eles," ele disse, claramente nem um pouco inclinado a falar daquilo.
Eu já sentia os saltos das minhas botas me machucando. Já não estava mais tão inclinada a caminhar. O álcool já devia ter evaporado.
"Minha mãe morreu," eu falei, fazendo-o parar de andar na hora para me olhar surpreso.
Minhas palavras tinham surpreendido a mim também. Era um pulo enorme que eu estava dando, já que não tinha falado daquilo com ninguém em Illéa até então. E o fato continuava que eu mal o conhecia.
Mas eu queria conhecer. Depois daquela noite, estava no nosso direito uma certa amizade entre nós. E eu a queria, mesmo que tivesse que dar saltos e pular formalidades.
"Minha mãe morreu quando eu tinha quatorze anos," falei de novo.
"Eu sei," ele disse. "Lembro de ver alguma coisa assim nos jornais."
"E meu pai está doente," ele abriu a boca para responder, mas eu corri para ganhar dele. "Eu sei, eles avisaram nos jornais. Claro, é por isso que estou aqui," voltei a andar e ele veio comigo. "Essa é a história dos meus pais."
"E você acha que me contá-la te dá o direito de saber a dos meus?"
Ele não precisava jogar tanto na cara, mas se era assim que ele queria, eu também podia ser brutalmente honesta.
"Sim, acho," respondi. "Ou pelo menos queria que fosse assim."
"Mas não é," ele quase foi grosso, mas eu resolvi não insistir. Na minha cabeça, já tinha planejado conquistar sua amizade aos poucos e conseguir que me contasse a história em um futuro não muito distante.
"Tem alguma coisa que você pode me falar de você?" Pedi.
Ele ficou em silêncio, pensando. "Eu concordo com você," disse, finalmente.
"No quê?"
"Concordo que é preciso muita coragem para fazer o que está fazendo," quando ele se virou para me olhar, eu franzia minhas sobrancelhas. "Naquela noite da festa, no corredor," explicou. "Você discursou sobre como era incrivelmente corajoso da sua parte se colocar a tapa assim pelo seu país. Eu concordo. Não conseguiria fazer o mesmo se estivesse no seu lugar."
Sorri para mim mesma, olhando para meus pés enquanto nós caminhávamos. Ele concordava comigo. Aquela era uma vitória inesperada. E, se ainda estivéssemos na noite da festa, eu estaria comemorando. Mas naquele momento, eu não queria demonstrar o quanto aquilo me soava bem.
Mas alguém podia ver o quanto tudo aquilo era difícil. Alguém me via como corajosa. Era uma pequena recompensa, uma mínima consideração. E eu não tinha ideia do quanto precisava ouvi-la até que ele a disse.
O caminho todo para o castelo era enorme. Enorme. E quanto mais andávamos, mais absurdo me parecia que nós tínhamos estado tão longe. Tudo aquilo tinha acontecido distante demais para qualquer ajuda real. A parte boa era que tinha acabado.
Nós fizemos pausas. Várias, já que, a cada quarteirão, eu me cansava. Marc não falou mais nada de si mesmo. Eu mal sabia o que ele fazia da vida, mas alguns traços da sua personalidade eu podia reconhecer. Seu conselho para a minha Seleção era claro: fazer o que me viesse à cabeça, quando eu quisesse. E para dispensar aquele que tinha mais produtos de beleza do que eu.
Como ele sabia o que algum selecionado tinha - ou eu, até, - eu não sabia. Mas era engraçada a impressão que ele tinha de tudo aquilo. Ia completamente contra qualquer pensamento que eu já tinha tido sobre a Seleção. E mesmo que eu não fosse aceitar seus conselhos ou até mesmo levá-los a sério, era revigorante ouvi-los. Transformar tudo aquilo em motivo de brincadeira, nem que fosse só por algumas horas, era ótimo. Aliviava tudo que eu carregava no peito bem mais do que qualquer um dos copos de cerveja que eu tinha bebido naquela noite.
Quando finalmente avistamos os portões do castelo, já amanhecia no horizonte. Bem pouco, não o suficiente para apagarem os postes de luz. Mas era um novo dia. Um novo dia de verdade. Pela primeira vez, eu sentia que via tudo claro. A grama do jardim, o ouro dos portões, a cidade do lado de fora. Até o ar parecia mais limpo, mais autêntico. A sujeira da rua, o barulho do ônibus. Antes, eu achava que tudo era normal. Mas agora sim parecia que era de verdade. Engraçado como o nascer do sol parecia literalmente acordar a vida no mundo.
Eu tinha planejado só subornar o guarda da noite. E assim que o da manhã me avistou da guarita, ele abriu os portões rapidamente e correu até nós. Ainda estávamos longe de chegar lá, mas ele fez questão de ir até nós e colocar seu casaco em volta de mim. Não nos meus ombros, em volta da minha cabeça.
Ele praticamente me carregou para dentro do castelo, perguntando para Marc qual era o problema dele, o que ele estava pensando. Eu tentei falar alguma coisa, mas ele não me ouviu.
Quando finalmente tirou sua blusa de mim, Marc tinha desaparecido. E eu nem tinha tido a chance de agradecê-lo por tudo que tinha feito. Por ter me levado, por ter arriscado seu emprego desse jeito, por ter me feito esquecer de todos os problemas que eu tinha. E por me salvar, de todos os jeitos que eu precisava.
Sozinha com o guarda, tive a chance de garantir que ele sim estaria com problemas se falasse daquilo para alguém. Ele entendeu, mas fez questão de me acompanhar até a porta da frente. E, lá dentro, só se acalmou quando um outro guarda prometeu me acompanhar até minha cama.
Assim que entrei no castelo, senti o efeito do amanhecer diminuir. Mas ele não desapareceu. Eu ainda pude olhar para tudo ali dentro como se fosse a primeira vez. A primeiríssima, aquela que aconteceu quando eu tinha nove anos de idade.
Era realmente um castelo muito bonito. Principalmente o hall de entrada. Eu nunca tinha percebido a quantidade de lustres maravilhosos que tinha ali, ou como a escada era levemente encurvada, dando a impressão de um caracol gigante até chegar no último andar. Sem contar com o chão, que brilhava até lá de cima, me deixando um pouco tonta.
Tudo aquilo tinha sido o suficiente para me distrair do quanto eu estava cansada. Meu quarto era grande e estava perfeitamente fresco. Minha cama estava intacta e eu pude me jogar nela, sem me preocupar com minhas roupas, meus cabelos ou os lençóis. Por que eu não tinha percebido o quanto ela era macia? O quanto ela era perfeitamente confortável?
Me virei de bruços, quase querendo abraçar a cama, mas me conformando em só conseguir abraçar o travesseiro. E, pela primeira vez desde que eu me conhecia por gente, eu adormeci sem pensar em nada. Sem preocupações, sem ansiedades, sem arrependimentos.


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Notas finais do capítulo

Ficou enorme porque eu não gosto de fazer mais de um capítulo seguido pelo ponto de vista da mesma pessoa, e queria muito que fosse tudo do dela. Mas esse é um dos meus preferidos. Espero que tenham gostado.



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