Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 62
Capítulo 62: POV Dane Lewis


Notas iniciais do capítulo

Escrevi ouvindo "Doin' It" do LL Cool J



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"Alguma chance de Enny vir te visitar um dia desses?" Perguntei para Loric enquanto nós subíamos as escadas laterais para o segundo andar.
Ele riu sozinho. "Se dependesse dela, estaria aqui quando você chegou," respondeu. "Mas ela não anda tendo muitos dias de folga, sabe como é." Eu concordei com a cabeça, imaginando como os dias estariam sendo na base, o que ela estaria fazendo. "Por quê? Está precisando de conselhos?"
"Conselhos?"
"É, de alguém que já participou de uma Seleção," ele continuou, colocando as mãos nos bolsos. "Não que Enny seja a mais indicada, ela não chegou nem perto de ganhar."
"Você fala como se isso fosse ruim," completei, fazendo-o rir mais uma vez.
Ali, no castelo, Loric era bem mais descontraído do que eu me lembrava. Talvez a rigidez do exército só tivesse aparecido levemente por lá. Mas eu lembrava de meu pai e ele levava tudo muito mais a sério do que Loric parecia levar.
"Para mim, foi ótimo," ele falou, quando nós chegamos ao segundo andar. "Mas acho que não te ajudará muito."
Eu respirei fundo, mas tão fundo que senti um músculo puxar meu ombro. "Não, talvez não," respondi. "Mas não era para isso que eu queria vê-la. Queria saber como as coisas estão indo na base."
"Ei, Dane," Loric se posicionou na minha frente, me forçando a parar de andar. "Você não tem com o que se preocupar. Ninguém lá está tentando roubar a posição que você conquistou com muito trabalho duro. Quando você sair daqui, vai poder continuar de onde parou."
Concordei com a cabeça uma vez, mas não estava convencido. Ele não sabia de como estava difícil para mim continuar pilotando. Ele não sabia nem da metade. Para ele, eu só precisava descansar e voltaria a treinar depois. Mas só de pensar em qualquer tipo de exercício, eu já sentia os músculos do meu braço queimarem.
Até que uma coisa me ocorreu.
"E se eu não sair daqui?" Perguntei, fazendo Loric franzir as sobrancelhas, confuso. "Quer dizer, e se eu ganhar?"
Assim que ele entendeu o que eu queria dizer, abriu um sorriso enorme. "Tá com essa confiança, é?" Perguntou, saindo da minha frente e voltando a andar.
Eu o acompanhei. "Não exatamente, só não quero fingir que essa possibilidade não existe."
"Já teve uma chance de conhecer a princesa?"
"Mais ou menos," respondi. "Mas sozinho, não. A primeira vez vai ser hoje à noite."
"Ah, é? O que você planejou?" Ele soava mais animado do que eu me sentia.
Dei de ombros. "Nada demais, só um jantar."
Assim que eu falei, ele parou de novo de andar e se virou para mim. "Um jantar? Dane, isso daqui é a Seleção. Você precisa impressioná-la," ele praticamente me deu tapas nos ombros, que, por sorte, não travaram meu braço.
Revirei os olhos. "O que você sugere?"
Ele parou para pensar por um tempo, seus olhos rodando feito loucos até pararem em mim de novo. "O que você diria se eu te falasse que posso conseguir um passeio de helicóptero por Angeles?"
Aquilo me pegou de surpresa. "Tá falando sério?"
"Claro!"
"Eu acharia ótimo," admiti. "Nem que ela não fosse comigo. Quem é o piloto?"
Foi a vez dele de quase revirar os olhos. "Não é você, não se preocupe. Quando for convidá-la, me avisa que eu preparo tudo," ele voltou a andar, colocando uma mão nas minhas costas. "Vamos fazer você ganhar esse negócio," ele disse, me dando um tapa de leve.
"Vamos?"
"Eu e Enny," ele explicou. Quando viu minha expressão, continuou. "Sabe, quando ela vier te dar uns conselhos."
Eu já ia dizer que não precisava de conselhos, quando meus olhos caíram na minha porta um pouco mais à frente no corredor. Eu lembrava de tê-la fechado, mas agora ela parecia escancarada.
"Ei, Loric," me voltei pra ele. "Você não disse que precisava falar com uma menina?"
"Ah, sim," ele olhou à nossa volta. "Preciso mesmo, com uma criada. Boa sorte com seu encontro hoje," ele disse logo antes de se afastar de mim.
"Valeu," falei, enquanto o observava entrar pelo quarto que eu podia jurar ser do Keon Illéa.
Assim que ele desapareceu, eu cheguei perto da minha porta. Fui devagar, tentando me esconder. Se alguém estava achando que era boa ideia invadir meu quarto, eu queria saber porquê.
Assim que vi uma menina dando a volta na minha cama, pensei que fosse uma das minhas criadas. Eu as tinha dispensado, mas talvez uma delas precisasse arrumar alguma coisa e tivesse voltado.
Mas a menina parou na frente do meu mural, observando as fotos de perto, colocando as mãos dentro do bolso de trás de seu jeans. Podia vê-la indo de foto a foto, bastante interessada. Mas foi só quando ela riu para o que eu imaginava ser o meu cachorro deitado de costas, que eu reconheci quem era.
Ela jogou a cabeça para trás, fazendo seu cabelo cair pelas costas e me deixando ver a curva do seu rosto. Ela parecia bem mais animada do que no outro dia, menos de ressaca.
Quando fez menção de se abaixar para ver as fotos mais embaixo, eu me apoiei no batente da porta. Estava gostando de assisti-la em silêncio, ver suas reações naturais. Tinha certeza de que ela não estava tentando me agradar, pois fazia uma careta diferente para cada foto.
Mas alguma outra coisa chamou sua atenção. E quando eu percebi que era o livro de fisioterapia que eu estava lendo para tentar me ajudar com o meu ombro, entrei em pânico. Dentro dele estava o meu diário da dor. E eu não precisava daquilo sendo divulgado para ninguém.
"Margaret," falei, na hora me lembrando que ela não gostava de ser chamada assim.
Antes mesmo de se virar para me olhar, ela já me corrigia. "Maggie."
Eu sorri para ela. "Maggie," repeti, quando ela percebeu que era eu que estava ali. Ela deu tantos passos para trás, que quase estava se mesclando com a parede. "Vejo que você encontrou meu mural," apontei para ele, enquanto entrava no quarto e ia em sua direção.
"Sim, desculpa," ela disse, passando por mim quase como se tivesse medo que eu a fosse encurralar. "Eu só vim te entregar seu blazer. Está pronto. Como novo," ela foi até a cama e alisou o plástico em cima dele. "Mil desculpas," ela pediu de novo, apesar de nem me olhar nos olhos.
"Não tem problema," lhe garanti, depois olhei para o mural. "Imagino que tenha conhecido o Bengala."
"Como é?"
"Meu cachorro, Bengala," falei, apontando para algumas das fotos dele.
"Você chamou ele de Bengala?!" Ela perguntou, tão indignada com aquilo que baixou a guarda e veio até mim, olhando também para ele. "Que crueldade."
"Não é crueldade," me defendi, sem conseguir evitar de sorrir. "É sarcasmo."
"Talvez," ela deu de ombro.
"Ele não é illéano," falei, querendo criar conversa. "Eu o adotei da Nova Ásia."
"Sério?" Quando ela se virou para mim, seus olhos estavam grandes e curiosos. Mas não passaram muito tempo me mirando.
"Sério," falei, indo me sentar na minha cama, mas sem tirar os olhos do mural. "Em um campo de batalha," continuei. "Na verdade, ele ganhou a sua bengala por nossa culpa."
"Nossa?"
"Minha e do meu pelotão," admiti. "Na época eu ainda estava começando. E tive que ir checar se nosso avião tinha acertado o alvo que queríamos. E ele estava lá. Efeito colateral, segundo meus superiores."
"Ai, meu deus!" Ela soltou, se virando para me olhar com uma mão na frente da boca.
E só então que a minha ficha caiu. "Você não pode contar isso para ninguém," falei, me levantando e indo até ela. "Eu preciso que você me prometa que nunca vai contar isso para ninguém."
Ela me mirou estranho, ainda tentando se recuperar da minha história e entender porque eu estava falando aquilo.
"Não que nós tenhamos feito qualquer coisa errada," me apressei de explicar. "Eu só não posso contar absolutamente nada que acontece quando estou em serviço."
Seus olhos caíram no chão, enquanto sua mão continuava na frente da boca. Mas ela concordou com a cabeça.
"Ele está bem," falei, em uma tentativa de fazê-la ficar menos horrorizada comigo. "Eu cuido dele. Ele é um cão feliz, prometo."
Funcionou. Na hora, ela franziu suas sobrancelhas para mim, mas seus lábios escondiam um sorriso. "Eu acredito," respondeu, logo se virando de novo para as minhas fotos.
"Minha mãe está cuidando dele," falei antes que pudesse evitar. Qual era meu problema? Porque eu ainda estava contando da minha vida assim pra ela? "Ela tem um apartamento perto da minha base."
Mesmo sabendo que estava contando demais, eu continuava.
"Essa é ela?" Maggie perguntou, apontando para a foto onde eu posava com meus pais.
"Sim," disse, chegando mais perto. "Ela gosta de se manter perto. Sabe como é, tem saudades."
Na hora em que eu falei isso, queria fazer a careta que expressava o quão idiota eu era de ficar contando coisas vergonhosas para uma menina que eu nem conhecia. Mas ela se virou para mim, e eu só sorri.
Quando Maggie voltou a olhar para a foto, eu tentei consertar. "É o que ela fala, pelo menos," disse, me deixando esfregar minha testa. Era minha mãe, tinha que ser minha mãe naquela foto que estava me fazendo falar desse jeito. "É até meio chato, ela fazer questão de morar perto."
"Ah," Maggie soltou, e, mesmo estando de perfil para mim, pude notar quando ela torceu o nariz. "Eu gosto que a minha mãe more perto," disse. "Gosto de ter família que posso visitar todo dia sem precisar de uma mala."
"Tem uma diferença entre você ir visitar e eles baterem na sua porta," falei, lembrando das milhares de vezes que minha mãe aparecia em horas inoportunas.
Ela deu de ombros. "Eu não me importo," disse. "Às vezes eles sabem que você precisa deles antes de você." Ela apontou para uma foto no mural, me obrigando a ver qual era. "Você tem uma tatuagem?"
"Só uma," respondi, como se aquilo fosse me ajudar a não ter problemas na Seleção. Eu ainda não sabia o que eles pensavam por ali de tatuagens, devia ter estudado o campo antes de deixar essa informação em aberto. "E só fiz mesmo para cobrir minha cicatriz."
"Você tem uma cicatriz?" Ela pareceu ainda mais interessada com essa pergunta, até se virando para me olhar.
"Algumas mais do que eu gostaria de ter," admiti.
Estava pronto para reclamar de como era impossível não ter nenhuma em qualquer área do exército, quando ela falou uma coisa que me fez mudar de ideia.
"Eu gosto de cicatrizes," foi o que ela disse, como se admitisse que gostava de sorvetes.
"Você gosta de cicatrizes?" Perguntei, para ter certeza.
"Gosto," ela continuou. "Significa que você passou por alguma experiência."
"Uma experiência ruim," a corrigi. "Qual a beleza disso?"
"Você sobreviveu," ela falou, se virando para me olhar. "Você passou por alguma coisa longe de ser agradável e sobreviveu. E tem um lembrete diário de como é melhor do que quer que seja que aconteceu com você."
Ela parecia bastante orgulhosa da sua teoria, mas ela não conhecia a que eu tinha no ombro.
"Nem sempre uma cicatriz significa que o problema já passou," falei.
"Mesmo que ainda te incomode, cicatrizes são tecidos regenerados," ela insistiu. "Alguma coisa você venceu. Algum limite você ultrapassou. Alguma vitória você teve."
Tive que apertar os olhos para vê-la melhor e ter certeza de que ela estava falando sério.
"Não é tão fácil assim," falei.
"É, claro que é," ela se virou de novo para o mural e apontou para o Bengala. "Veja seu cachorro, por exemplo. Acha que algum dia ele para e olha para a perna inexistente dele e reclama?"
"Ele é um cachorro, ele não pensa."
"Mas se ele pensasse," ela continuou, "tenho certeza de que estaria mais feliz tripé e do seu lado do que com quatro pernas e perto de campos de batalhas. Existe o que aprender e tirar de qualquer situação."
"O mundo não é um conto de fadas, você sabe, não é?" Minha intenção não era ser grosso, mas foi assim que saiu.
Maggie, ao invés de se ofender, se virou para me mirar. "Claro que é," me respondeu, sorrindo como se aquilo fosse óbvio.
"Não, não é," falei, bufando uma risada. "Às vezes as pessoas perdem pernas e braços e as suas vidas continuam a mesma droga de sempre. Não existe fadas madrinhas que aparecerão e melhorarão a situação delas."
Ela demorou um segundo para me responder. "Está se chamando de fada madrinha do Bengala?" Foi o que me perguntou.
Revirei os olhos. Quando fui falar de novo, fiz menção de apontar para uma foto no meu mural que estava perto dela. Ela praticamente fugiu para não ter que relar em mim.
"Está vendo esse cara, Mario?" Perguntei retoricamente. "Ele estava marcado para voltar uma semana antes do filho dele nascer. Mas dois dias antes, ele teve que atravessar um bairro perigoso para conseguir nos avisar que tínhamos sido descobertos. O carro que ele dirigia explodiu bem antes de conseguirem mirar na gente."
Maggie parecia assustada, mas preferia olhar para o chão.
"Merdas acontecem," foi como eu terminei.
Ela concordou com a cabeça. "Ele salvou vocês," não era uma pergunta.
"Quê?"
"Ele salvou vocês, não é?" Ela levantou o rosto para me olhar. "Você está vivo, ele deve ter conseguido avisá-los."
Eu não entendia o que ela queria dizer com aquilo, mas assenti, relutante. "Sim, ele conseguiu nos avisar."
"Ele salvou vocês," ela repetiu. "Você não consegue ver a beleza nisso? O mundo é uma droga, as pessoas perdem braços, tem câncer, veem suas cidades explodirem por caras em aviões. Mas elas também aprendem a viver sem o braço, médicos saem do conforto da sua casa para irem trabalhar em campos de batalha, cachorros ganham um novo amigo, são adotados por caras que deveriam ser seus inimigos," ela deu de ombros, falando do Bengala. "Pessoas doam órgãos, fazem manifestações, se jogam em frente de balas pelos outros, lutam por estranhos," ela finalmente voltou a me mirar. "Não, o mundo não é um conto de fadas. Mas isso porque você não quer que seja. Eu quero," ela apontou para si mesma. "E eu vou fazer o que eu puder para que o meu seja. Sinto muito se você tem que viver em um mundo cinza."
Sem falar mais nada, nem me dar chance de falar, ela se virou e saiu do meu quarto. Eu olhei de volta para a foto de Mario, tirada no dia em que nós tínhamos chegados na Nova Ásia. Ele sorria mais do que todos nós juntos ali. Tinha acabado de saber que sua mulher estava grávida. Só alguns meses e ele poderia voltar para ela, era o que ele ficava repetindo o tempo todo.
Por que eu só conseguia ver o lado da tragédia? Nós tínhamos ficado ali, nós tínhamos sobrevivido. Mas mesmo sabendo que o que ele tinha feito tinha sido essencial para nós termos saído de lá, a única coisa na qual conseguia pensar era em como eu tive que voltar para meu país e explicar para a mulher dele que ele não tinha tido a mesma sorte.
Eu me deitei na cama, me deixando pensar nele. Mario tinha sido mais do que só um cara que eu tinha conhecido e servido junto. Ele tinha me ensinado praticamente tudo que eu sabia sobre pilotar e, sem ele, eu nunca teria conseguido chegar aonde tinha chegado. Não só por questão de sobrevivência, mas porque ele tinha reservado para mim todos os segredos que tinha aprendido em quase oito anos pilotando. Eu tinha avançado rápido e devia isso completamente a ele.
Bufei uma risada, pensando no que Maggie diria se eu contasse isso para ela. Me falaria que ele tinha sido minha fada madrinha e que aquela era prova de que o mundo podia ser um conto de fadas.
Eu não sabia dizer se aquilo era só uma questão de personalidade ou era porque ela tinha passado a sua vida toda - que nem deveria somar muitos anos - em um castelo. Mas, bufada ou não, ela tinha conseguido me fazer rir pensando em alguma coisa que tinha acontecido quando eu estava servindo. E aquilo não acontecia nunca.


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