Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 39
Capítulo 39: POV Marc Hynes


Notas iniciais do capítulo

Escrevi ouvindo "Champagne Supernova" do Oasis.
Esse capítulo é dedicado à Julia Torres, que fez aniversário dia 15!
E também para todas as pessoas que leem e não ganharam capítulos nos seus aniversários!



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Pessoas se apegam muito a coisas. Talvez para preencher buracos nas personalidades toscas delas. Talvez para se distrairem das vidas vazias que levam. E se a quantidade de coisas fosse diretamente relacionável ao valor de uma pessoa, eu apostaria que o selecionado dono do quarto onde eu tinha entrado tinha muito a compensar.
E ele não parecia ter vergonha de sua compensação. Cada um de seus pertences era prova de sua futilidade e vaidade. Eu não tinha a menor ideia de como ele era, mas a imagem dele se matando para pegar tudo no caso de uma emergência me era clara. Tava na cara que era em toda aquela tralha que ele baseava quem ele era. Se eu me importasse, teria pena dele. Ele queimasse na sua fogueira das vaidades sozinho.
Pulei cada uma das bolsas que deviam custar mais que seu cérebro para sair o mais rápido que podia. Mas assim que abri a porta, a luz do corredor iluminou uma mesa do meu lado. Só parei por mais de dois segundos para ver o que estava ali, porque era a foto de uma garota.
Os olhos azuis dela eram os maiores que eu tinha visto. E ela quase parecia lacrimejar, o que me fez pegar a foto e tentar ver mais de perto, só pra saber se era aquilo mesmo que estava ali. Mas ela não estava chorando. Era a própria cor dos olhos que parecia se quebrar em mil pedacinhos e cada um tomava uma tonalidade.
Voltei a afastar a foto de mim, mas ainda a segurando. Eu lembrava dela. Eu sabia que era ela que tinha quase roubado Johnny. Mesmo parada, ela ainda mantinha seu ar de petulância, quase como se quisesse ter certeza de que todos que olhassem para a foto dela se curvariam. Ou talvez ela só odiasse o fotógrafo.
Deixei a foto em cima da mesa e me virei para sair do quarto. A última coisa que notei antes de fechar a porta foi a tiara dela.
Mas era claro que ela era a princesa. Por isso queria saber se alguém sentiria a falta dela. Por isso tinha soltado aquele monólogo em cima de mim sobre como a covardia dela de se esconder era na verdade coragem. Por isso tinha parecido levar um tapa quando eu me recusei a simplesmente não responder uma pergunta dela.
Será que eu deveria avisá-la que um dos seus selecionados guardava uma foto dela antes mesmo da Seleção começar?
Assim que eu saí no corredor, percebi que estava bem perto da escada principal. Lá embaixo, a festa continuava. E a princesa provavelmente estava por lá, fazendo sei lá o quê. Eu poderia voltar a encontrá-la, fingir que não tinha percebido quem ela era. Já podia imaginar os milhares de jeitos em que eu a provocaria. Ela parecia bem fácil de irritar. Tudo que eu teria que fazer seria não me abaixar para ela.
Por alguma razão, eu simplesmente não desci. Não era como se eu precisasse decidir o que fazer, era mais como se ainda quisesse adiar o inevitável. Mas aí ouvi alguém subindo as escadas. E me apressei pra fazer o mesmo.
Só parei quando cheguei no terceiro andar.
Não sabia direito quanto tempo fazia que eu trabalhava no castelo, mas poderia contar nos dedos quantas vezes eu tinha estado ali, de frente para os aposentos reais. O som das vozes vindo do corredor debaixo só me fez distanciar ainda mais da escada. Abri meu blazer e puxei as mangas até meu cotovelo. Podia sentir que a camisa estava toda embolada por baixo, mas aquilo só me fez forçar ainda mais até que não caísse mais.
Dei alguns passos em direção à primeira porta que achei. Se tivesse que apostar, diria que é de um dos príncipes. Imaginaria que o rei e a rainha dormiam em um quarto mais para a direita. Porque na esquerda eu sabia que ficava o da princesa convidada.
Naquela tarde mesmo eu tinha subido ali para montar um dos caprichos dela. Se eu a tivesse visto, teria conseguido reconhecê-la no corredor.
Sem pensar muito, comecei meu caminho até lá. Fiz questão de soltar minha gravata borboleta que tinha me apertado a noite inteira. Teria jogado-a em qualquer lugar no corredor, mas ainda preferia que ninguém soubesse que eu tinha passado por ali.
A porta do quarto dela me parecia tão pesada quanto a de qualquer outra pessoa ali. Talvez fosse o dourado escuro da pintura. Não ouvia barulho nenhum daquele andar, minha lógica me dizia que não tinha ninguém por perto. Mas e se tivesse? E se eu entrasse e me vissem? E por que eu estava entrando ali?
Olhei em volta como se esperasse encontrar alguém me observando. O corredor tinha o teto alto e era largo o suficiente para ganhar do meu quarto. E espalhadas por ele estavam várias estátuas, cada uma em seu pedestal, competindo pela atenção de quem passava ali com os quadros nas paredes e os lustres. Era o corredor, pelo amor de deus. E eu tinha certeza de que tudo ali era mais caro do que a cama em que eu dormia.
Curiosidade mórbida. Era isso, eu decidi, que me levava ali. Eu queria ver com meus próprios olhos que uma coisa daquelas existia. Era mais fácil desprezá-las pessoalmente.
Antes que me questionasse de novo, virei a maçaneta e entrei no quarto dela. Em mais uma dose de coragem, acendi a luz sem nem pensar duas vezes. E, para meu alívio, estava vazio. Me convenci rapidamente de que eu nunca nem tinha duvidado de que estaria, mas a verdade era que ainda não estava completamente calmo.
Dei um passo e um pensamento já me atormentou. O que eu estava fazendo ali? O que eu esperava encontrar? Qual era a da minha curiosidade? Por que eu tinha que tratar a menina como um bicho de zoológico, estudar seu habitat, entender o que ela usava pra sobreviver?
A culpa não era minha. Ela que tinha decidido nascer em berço de ouro. Ela já tinha passado a vida inteira como propriedade de seu país. E eu só queria ver um pouco mais. Só para saber mesmo o que fazia ela se preocupar tanto com as pessoas esquecendo dela quando ela tinha tido a maior sorte do universo.
Droga de curiosidade mórbida.
Fechei a porta atrás de mim e entrei mais um pouco. Aquilo era ridículo. Por que eu pensava que ela poderia ser mais do que ela já tinha se mostrado? Ela era princesa, pelo amor de deus. E tinha escolhido a dedo o selecionado dos mil cremes de cabelo. Não tinha porque esperar muito mais dela.
Então se ela era tão desprezível quanto ele, não tinha muito com que eu me preocupar.
Comecei meu caminho, agora certo de que nada que eu encontrasse ali fosse ter muito significado. O primeiro lugar onde que fui foi sua penteadeira. Primeira prova. Só tralhas de beleza, mais tralhas do que ela tinha membros, definitivamente desnecessário. E bastante condizente com o que eu esperava dela.
Abri a porta do seu closet só para dar uma olhada e me certificar de que todas as coisa que ela mais prezava eram roupas. Mas uma coisa no canto escuro do fundo me chamou a atenção. Brilhava forte com a luz fraca que iluminava o closet, então imaginava que seria um diamante. Talvez estivesse sendo curioso demais, não o pegaria se fosse isso mesmo. Mas olhar de longe não faria mal.
Só que quando eu afastei os vestidos dela, o que eu vi não era um colar, ou brinco, ou qualquer coisa que garotas usam. Era uma máquina de escrever, antiga e azul clara, grande e provavelmente bastante pesada.
Aquilo era bizarro. Será que era de outra pessoa que tinha ficado ali antes? Por que ela teria uma máquina de escrever?
Não tinha uma folha nela, mas estava em cima de várias. Tentei levantar a máquina só um pouco, mas era realmente pesada e o máximo que consegui foi tirar um pouco de cima da primeira folha. Tentaria outra vez, mas já tinha sido o suficiente para eu ver o que queria. Era um manuscrito chamado "Novembro". E logo embaixo, em letras menores, estava o seu nome, "Lola Farrow".
Eu nunca tinha ouvido falar de ela ter escrito um livro. Nunca nem imaginaria coisa parecida. Sobre o que falaria? Política? Jogos de poder? Em novembro? O que aconteceu em novembro?
Voltei a colocar a máquina em cima das folhas exatamente como eu a tinha encontrado e saí do closet.
Aquela tinha sido uma péssima ideia. Eu não precisava ver manuscritos secretos dela. Eu não precisava nem me lembrar que ela existia. Honestamente, não tinha nada contra ela. Mas toda aquela história de Seleção não fazia muita diferença pra mim. Não mudava minha vida. No máximo trazia mais gente para alimentar no castelo.
Meus olhos correram pelo quarto dela enquanto eu demorava um século para fechar a porta do closet. A mesa que eu tinha montado para ela poder fazer seus cupcakes ainda estava ali, o forno em cima. Cheguei mais perto, me sentindo pelo menos no direito de estar ali. Aquilo era algo de minha responsabilidade. Eu devia ter falado pra alguém tirar antes da festa. Mas todo mundo estava mais preocupado em poder tirar uma noite de folga. Eu incluso.
Dois cupcakes, era o que tinha sobrado do que eu imaginava ser uma fornada inteira. Eles eram marrons e estavam enfeitados com o que parecia ser uma tentativa grosseira de glacê real e do que devia ser caramelo. Foi só quando eu o peguei, tirei o papel e mordi que tive a certeza de que era mesmo de caramelo.
Comi indo até a janela e me perguntando se ela perceberia que um tinha sumido. Deixaria aquele mistério para ela resolver, não me importava muito.
O jardim estava escuro, escuro demais para olhar para ele. Parecia que a qualquer segundo um exército sairia dali e nos atacaria. Tudo bem que eles queriam uma festa de última hora e não tinham quem convidar a não ser os próprios criados. Mas chegar ao ponto de deixar o jardim e os aposentos vazios era demais, não?
Como um alarme programado para tocar quando alguém se atrevesse a questioná-lo, eu ouvi alguém abrindo a porta do quarto do lado. Amassei o resto do cupcake na minha mão e saí pela varanda. Tive que enfiá-lo no meu bolso quando percebi que provavelmente teria que escalar parede abaixo para me esconder.
Mas foi inútil. Quem quer que fosse abriu a porta e a fechou logo em seguida. Nada de escaladas necessárias. Arrisquei alguns olhares para dentro e o quarto continuava como eu o tinha deixado. Respirei fundo, esperei mais alguns segundos e entrei de novo.
Aquilo era besteira. Não tinha porque eu estar ali. E se eu fosse pego, seria idiotice demais. Estava me esquecendo do lema: se ia fazer alguma coisa errada, que fizesse valer a pena. E descobrir os hobbies que a princesa usava para ocupar seu tempo de ócio não valia.
Quando abri a porta para o corredor, tentei ver e ouvir o máximo que podia. Mas parecia estar vazio. Foi só quando eu saí que percebi que vinha alguém da escadaria principal. Fiz o caminho contrário, terminando o corredor. Mas tive que parar no meio da escada antes de chegar ao segundo andar.
Era ela. E o Keon, de todas as pessoas do universo. E o Chris, mas isso não importava. Ele trazia Keon quase que no colo e ela o acompanhava. Eu estava praticamente encurralado. Se eles não saíssem do meu caminho a tempo, quem quer que vinha no terceiro andar acabaria me encontrando. E eu precisaria de uma desculpa ótima. E rápida.
Mas melhor que uma desculpa era uma saída. Eu não ia ficar ali, inventando mentira. Nem ficaria só esperando ser pego e ter que usá-la.
Subi de volta as escadas e parei na frente de uma estátua de um torso de homem que segurava uma pena à sua frente. Escritor, como a princesa, pensei. Puxei sua pena e só soltei quando vi a parede atrás dele começando a se mexer. Não era grande o movimento e nem alto, mas era o suficiente para me indicar onde a porta abria. Eu a empurrei o mínimo que precisava para entrar e a fechei sem pensar duas vezes.
No escuro do esconderijo, pensei comigo mesmo que precisava compensar Sebastian um dia desses por ter me ensinado todas as passagens quando eu tinha chegado no castelo. Irônico que logo eu teria que agradecer alguém da família real.
Tive que sentir as paredes com as mãos no começo mas logo cheguei a um dos caminhos principais, que eram iluminados, e daí foi só descida. A última das escadarias levava à cozinha mais próxima do meu quarto. Talvez fosse por isso que eu usava tanto aquelas passagens. Era bem mais fácil do que ter que andar pelos corredores. Mais estreitas, claro. Bem menos luxuosas. Mas bem menos barulhentas também. Mas quase sempre unicamente minhas.
Assim que eu entrei no meu quarto, tirei o blazer como se tivesse aversão a ele. E talvez tivesse. Tirei a camisa também, sem perder muito tempo com os botões, logo para poder ficar só de regata. E então o cinto, os sapatos e todas as regalias que eu tinha tido o privilégio de usar por uma noite. Como eu devia estar grato! Uma noite para sonhar com a vida que eu não tinha!
E nem queria ter. Muita arrogância deles pensar que todos nós víamos aquela festa como um super presente que não devíamos recusar. No máximo eles tinham me comprado pelo uísque. Ele serviria com a única razão para eu não ter organizado uma revolução.
Ele e o fato de que eu ainda precisava que a Seleção durasse mais um dia para ganhar a aposta.
Johnny deve ter me ouvido, pois logo a porta do banheiro rangiu e ele saiu lá de dentro, já me mirando. Eu mal tinha me deitado na minha cama, quando ele pulou em cima de mim, só parando quando estava acomodado nas minhas pernas.
O que será que tinha acontecido com a princesa em novembro?


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Notas finais do capítulo

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