Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 36
Capítulo 36: POV Lola Farrow


Notas iniciais do capítulo

Escrevi ouvindo "Chandelier", dessa vez da Sia mesmo!
Esse capítulo é o prêmio da Ana Beatriz Thimoteo, que criou o Keon e ganhou o desafio da festa!



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Nada daquele momento me parecia real. Não havia nada ali que me parecesse meramente palpável. As luzes do salão eram fortes em contraste com as paredes mal iluminadas do lado de fora. E pela distância que eu estava, com o jardim entre nós, aquele parecia um quadro animado que eu assistia, do qual eu não fazia parte, nem nunca faria. Era a vida de outras pessoas, o castelo de outras pessoas, a seleção de alguém que eu mal conhecia. Eu estava presa do lado de fora. Tive a impressão de que não existia nada no mundo que eu pudesse fazer que me colocaria lá dentro. Eu não pertencia àquele lugar. Era a estranha ali. Minha vontade era de sair correndo.
Mas ao mesmo tempo que aquilo me fazia bastante solitária, me colocava em uma posição única. Eu podia dar passos atrás, podia analisar o que faria. Eu não estava completamente dentro, eu ainda poderia sair quando quisesse. A solidão não me incomodava. Não me importava de ficar sozinha. Eu não queria ser igual aos outros, não queria ser só mais uma. Estava bem comigo mesma. Por mais que eu tivesse que piscar algumas vezes e me convencer de que eu estava ali, de que o castelo era alcançável e de que tudo ali estava também acontecendo comigo, eu ainda sabia no meu coração que eu era a extra ali. E aquilo me caía bem.
Alaric respirou fundo do meu lado. E mesmo sem olhar para ele, senti como se fosse seu jeito de me lembrar que por mais que estivesse sozinha em tudo aquilo, naquele exato momento, eu tinha uma companhia.
"Nós devíamos ter vindo para cá antes," ele disse, casualmente. "Eu posso pensar em vários desafios para você aqui. Muitos deles envolvendo uma certa escuridão."
Eu bufei uma risada rápida e sem humor. Talvez ele não entendesse que eu estava lidando com questões importantes, que não estava no clima de falar sobre o jardim.
"A noite foi ótima como foi," falei.
Depois, fiquei alguns segundos em silêncio, durante os quais ele parecia nem se deixar respirar muito alto. Quando olhei por cima do ombro para ele, percebi que me observava.
A água da fonte logo atrás do nosso banco tentava refletir o máximo de luz que conseguia, mas ainda assim eu mal podia ver seu rosto. Desviei meu olhar para o jardim atrás de nós, a cada metro se afundando mais ainda em escuridão.
Talvez já estivesse na hora de nós voltarmos para a festa. Não queria nem pensar em todos falando sobre nós dois ali, sozinhos no jardim vazio.
Assim que me levantei, ouvi o sinal vindo do salão.
"Meia-noite," eu disse, quando vi Alaric franzindo as sobrancelhas em confusão.
Ele se levantou e veio ficar na minha frente. "Isso quer dizer, sem máscaras?"
Eu sorri de lado pelo jeito que ele me olhava. Seria difícil imaginar o que aquela máscara estava impedindo que ele fizesse. Todo o efeito que ele poderia querer, ele estava conseguindo passar. Se não me afetava como ele esperava, era eu o problema. Não ele.
Não que fosse problema. Me orgulhava de conseguir ver o que ele queria e não me deixar me impressionar tão fácil.
Eu dei um passo à frente, chegando bem perto dele. Ele pareceu enrijecer com a aproximação, seus ombros tensos. Mas seus olhos acompanhavam meus movimentos sem perder nem um segundo.
Eu praticamente segurava minha respiração quando levei as duas mãos à mascara dele e a deixei escorregar levemente para trás em seu cabelo ralo e preto. Ele me deixou olhar para ele, apesar de já saber o que veria. Assim, sem máscara, sem nada atrás do que se esconder, ele quase parecia frágil, exposto. Vulnerável.
Eu sorri, sem conseguir evitar de pensar naquilo. Ele tinha passado a noite inteira provando que era forte, que aguentava o que fosse. E eu tinha que admitir que ele tinha feito um trabalho incrível. Nenhum dos desafios que eu tinha proposto para ele o tinha diminuído. Até então, nada tinha abalado a sua confiança. Até então, ele tinha sido perfeito.
Mas sem a máscara, ele parecia um garotinho, seus olhos grandes e brilhando para mim.Impressionável. Vulnerável. Ali, a poucos centímetros de mim, embaixo das pontas dos meus dedos, que eu deixei traçar sua maçã do rosto até chegar ao seu queixo.
Não sabia de onde ele tinha conseguido sua confiança de volta, mas vi quando ele trancou sua mandíbula e engoliu a seco. E em um segundo ele estava se aproximando de mim, determinado a encontrar meus lábios com os seus.
E se não fosse pelo barulho de um cara gemendo de dor, eu teria deixado.
Mas tinha sido alto o suficiente para me fazer pensar que alguém estava morrendo. E também para me fazer desviar meu rosto atrás de conseguir ver quem era. Eu podia jurar que nós tínhamos estado sozinhos.
A segunda vez que eu ouvi não foi um gemido, mas ele xingando alguma coisa. Sua voz vinha de perto da escada da varanda e eu andei até lá, sentindo Alaric logo atrás de mim. O cara estava deitado na grama logo na frente do último degrau.
"Keon," Alaric falou atrás de mim, me fazendo virar para ele.
"O selecionado?" Perguntei. Ele só concordou com a cabeça.
Voltando a olhar para Keon, eu me senti responsável. Tinha feito a besteira de passar a noite inteira com um só deles, deixando os outros para se sentirem esquecidos. Será que ele tinha bebido por isso? Pensando que já tinha perdido?
A minha vontade era de acreditar naquilo. Mas só de pensar na possibilidade, imaginei o que Clare falaria. Ela diria para eu parar de me achar tão importante, a menos que alguém me desse razão. E tudo que eu via naquela hora era o cara todo torto, deitado de olhos bem fechados na grama. A minha única certeza era o álcool.
"Eu preciso ajudá-lo," informei Alaric.
"Quer companhia?" Ele ofereceu.
"Não!" Soltei antes que pudesse pensar. Eu já tinha passado a noite inteira com ele. Mais alguns minutos, que fossem, não ajudariam. Só fariam aumentar a possibilidade do que tinha quase acontecido.
Ele já tinha tido muita prioridade. Eu precisava ajudar Keon sozinha. Ou com qualquer outra pessoa que não fosse um selecionado. Na verdade, qualquer criado que pudesse me ajudar seria bem vindo.
"Não, eu consigo me virar sozinha," expliquei para Alaric, que subiu os poucos degraus em direção à festa, mesmo sem deixar de me mirar. "Foi bom poder te conhecer antes, Manchester."
Ele sorriu, mas não se mexeu mais nem um centímetro.
"Você precisa de alguma coisa?"
"Só uma," ele pediu, colocando as mãos nos bolsos. Decidiu me mirar bem antes de continuar. "Tome um chá comigo."
Eu bufei de leve, deixando meus olhos correrem pelo salão atrás dele, mesmo que não estivessem olhando realmente para nada.
"Sério, Manchester? Eu esperava mais de você," disse, balançando a cabeça e voltando a olhá-lo. "Eu detesto chá. Por algum acaso você não sabe nada sobre mim?"
"Tomar chá," ele começou, dando alguns passos de volta em minha direção, "é o ato de se sentar em volta de uma mesa, conversar, comer, e deixar o tempo passar. Você não é obrigada a tomar realmente chá. Aliás, você não é obrigada a tomar nada. Só precisa se sentar na minha frente, ser linda e me deixar te conhecer melhor."
Por que ele fazia aquilo? Por que me fazia ficar sem ter o que dizer, ao mesmo tempo em que tudo nele me matava de vontade de responder e ganhar dele?
Tinha sido assim que ele tinha conseguido me prender a noite inteira. Desgraça.
"E então?" Perguntou, quando já estava bem na minha frente, só vários degraus mais alto. "Toma um chá comigo um dia desses?"
"Eu não posso negar, posso?"
Ele não respondeu, só sorriu. E então começou a andar para trás, ainda me mirando nos primeiro passos, mas se virando depois de alguns.
"Quando, exatamente?" Perguntei às suas costas.
"Eu te aviso," ele disse, só virando seu rosto o suficiente para que eu o ouvisse.
E então ele continuou andando para longe de mim e entrou na festa.
Eu fiquei ali para balançar a cabeça pro jeito dele. Mas não por muito tempo, pois logo lembrei de Keon. Cardiff, capital do País de Gales. Illéa. Logo o mais promissor.
Respirei fundo e tirei minha máscara do rosto, finalmente livre de ter que aguentar o áspero da renda.
"Ei," eu chamei, enquanto tentava balançá-lo pelos ombros.
"Eu to indo, Marc," ele soltou, sem abrir os olhos. " sabe que eu te considero muito. Tô só vendo daqui. Já subo," ele deu alguns tapas no braço da minha mão que ainda estava em seu ombro.
Quem era Marc? E porque ele achava que eu era ele?
Tentei de novo lhe acordar, balançando mais forte. Ele murmurou outras coisas, confirmou que considerava muito o tal Marc, depois prometeu que se eu o deixasse dormir mais um pouco, logo ele subiria.
Enfim, ele acabou abrindo os olhos.
E eu poderia apostar no segundo exato em que ele percebeu quem eu era, pois os arregalou, depois piscou várias vezes, os esfregou. E então tentou me olhar de novo.
"Não, você não está imaginando," eu disse, colocando as mãos na cintura. "Ótima primeira impressão que você resolveu me oferecer. Devo dizer, a melhor até agora."
Ele até abriu a boca para falar alguma coisa, mas todas as suas forças pareciam estar sendo focadas em tentar manter os olhos abertos.
"Vem," eu disse, oferecendo meu braço para ele se apoiar. Ele hesitou um pouco e, quando se levantou, se apoiou mais no corrimão atrás dele do que em mim. "Acho que está na hora de eu te mostrar seu quarto."
"Eu to bem," ele arriscou, apesar de mal conseguir ficar parado de pé.
Desafiava leis da física, pois não caiu. Mas foi por pouco várias vezes.
Eu lhe dei meu braço como pude e o indiquei o caminho mais longo, mas que evitava passar pelo salão de festas. Esperava encontrar pelo menos um criado quando entrasse pela pequena porta lateral, mas nada.
Tive que equilibrar Keon e parar por alguns segundos várias vezes antes de finalmente chegar a um corredor que tinha um guarda para me ajudar. Ele era bem mais pesado do que parecia, mas o guarda não teve nem metade do trabalho que eu. Nós subimos pela escadaria lateral, de longe a minha favorita. O chão do primeiro andar era todo em quadriculado de preto e branco e dava um efeito encantador. Tinha mil memórias ali, nenhuma das quais eu queria lembrar naquele momento.
Fiz questão de acompanhar Keon até seu quarto. Quando o guarda abriu a porta, ele já estava relativamente melhor. Balançava menos, mesmo sem apoio nenhum. Só não parecia muito ciente ainda do que estava à sua volta.
Eu agradeci o guarda e o dispensei. E então observei Keon cambalear até sua cama. Podia jurar que ele ia se jogar, mas só se sentou. Apoiou seus cotovelos nos joelhos e esfregou a cara com as mãos até que elas estivessem em sua nuca.
"Eu não sou assim," ele me prometeu. Ou então falava para si mesmo.
Eu não disse nada, mas andei até ele. Não sabia bem o que ele tinha feito, porque tinha bebido. Podia perguntar, mas não queria que ele se afundasse mais.
Ele era o Illéa. Era ele que tinha uma estrelinha do lado na ficha. Ele era praticamente da realeza. Eu não queria deixar que sua primeira noite tivesse um efeito tão negativo na Seleção. Eu tinha esperanças grandes demais para ele.
Me sentei do lado dele. "Não se preocupe," disse. "Amanhã você tem outra chance."
Quase quis fazer uma careta. Não gostava de ser tão boazinha. Nem queria que ele me visse assim. Ou talvez quisesse. Por que eu iria querer isso? Por que iria querer que me visse como boazinha?
Ele respirou fundo, bem alto para um lugar que só era iluminado pela luz do corredor. E então ele olhou para mim, por cima de seu ombro.
Ele pareceu analisar meu rosto, dos meus olhos aos meus lábios. E eu fiz o mesmo.
A escolha fácil. Rápida. Praticamente realeza. Levava o nome do país. E a poucos centímetros de mim.
O que mais eu queria? Poderia acabar tudo ali. Poderia simplesmente voltar para o meu país, poderia continuar com a minha vida.
Talvez fosse a escuridão que tivesse me afetado. Talvez fosse o fato de que ele estava logo ali. Mas antes que eu pudesse perceber o que fazia, eu mesma já me inclinava na direção dele. Todo a atmosfera pareceu pesar em volta de mim, como se o ar fosse algo sólido, palpável, facilmente de ser cortado. Eu senti como se o escalasse, sem saber bem o que estava fazendo, só me convencendo de uma vez que eu encostasse os lábios dele nos meus, eu entenderia o porquê de tudo. E não me parei.
Ele não falou nada. Não me questionou. Me retribuiu o beijo sem problemas. Mas assim que eu me afastei dele, sabia que tinha sido um erro. Eu não sabia quem ele era. Poderia ser fácil escolhê-lo, mas ainda seria errado. O que eu estava fazendo? Me conseguindo um prêmio de consolação pela noite do lado do Alaric? Aquele era meu jeito de tomar o caminho mais fácil ou de simplesmente suprir uma carência adolescente? Qualquer que fosse, eu só preferia que tudo fosse esquecido, ignorado.
Me levantei antes que Keon pudesse tentar me beijar de novo. E saí do quarto dele, falando que o veria no dia seguinte. Eu nem tinha fechado a porta quando o vi deitando na cama.
Não esperei chegar até meu quarto. Me apoiei na parede do corredor mesmo, para tentar respirar.
Aquela não podia ser eu. Não podia ser. Não importava a quantidade de desculpas que eu tinha, eu não conseguia aceitar que tinha me deixado levar por nenhuma delas. Eu precisava superar a carência. Eu precisava voltar a mim mesma. Não seria vencida pelo sobrenome dele. Nem pelo jeito de Alaric. Eu precisava de cabeça limpa. Aquela festa tinha sido um erro. Sentimentos demais, muita confusão para eu conseguir pensar direito. Era uma decisão séria que eu teria que tomar. Não daria para continuar desse jeito meio bêbado, nem que fosse só pelo momento. Eu precisaria estar sóbria. De bebida e de coração. Apagaria tudo o que tinha acontecido. Começaria do zero. Página em branco.
Aquilo tudo tinha sido uma distração. A minha Seleção de verdade começaria agora.


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