Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 34
Capítulo 34: POV Blake Arely


Notas iniciais do capítulo

Escrevi essa música ouvindo "Sweet Serenate" do Pusha T com o Chris Brown.



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Sem deixar rastros, repeti na minha cabeça, já acostumado o suficiente com o peso da moça, que nem o percebia mais.
Um verdadeiro espião entra, faz seu trabalho e sai sem deixar rastros. Um verdadeiro espião evita tragédias muito antes das pessoas saberem que eram iminentes. Um verdadeiro espião é invisível. E imprecindível.
E eu não consegui ficar nem uma noite sem ter todas as pessoas olhando para mim. Mesmo que ainda não soubessem meu nome, ainda não era bom o suficiente. Era para eu ter ficado na média, só o suficiente para sobreviver à Seleção sem me tornar um dos favoritos. Não era para eu falar com nenhum outro. E muito menos para quase aleijar a irmã da princesa que um dia viraria minha rainha.
Mas era difícil para mim pensar, ser eu mesmo, quando eu estava longe da minha mesa. Tinha me acostumado com meu refúgio, só imaginando o mundo lá fora. Era minha segurança, minha confiança. Um caso entrava, parava na minha mesa. Eu o estudava, tomava conta dele. E então o resolvia. Eu não precisava sair de lá, não precisava ter que fingir ser outra pessoa. Quase seis anos na agência e eu nunca tinha tido que usar minha profissão falsa. Tinha sido só uma mentira que eu tinha guardado em uma gaveta, fantasiando sobre quando finalmente a tiraria de lá e a usaria em volta do meu pescoço.
Mas ali, ouvindo meus passos ecoarem pelos corredores do castelo, minha vontade era de voltar a guardá-la. A culpa não era minha se eu não tinha esperado tanta responsabilidade em tão pouco tempo. Na vasta lista de habilidades que eles tinham aderido à minha pessoa, não existia um item que garantia que eu conseguiria me manter distante o suficiente das pessoas pela minha missão, mas perto o suficiente para não perder minha chance.
Era complicado demais. Virar um agente infiltrado em uma semana. E eles só confiavam em mim porque não tinham outra escolha. Já podia imaginá-los no escritório, apostando no meu fracasso. E nas repercuções.
Trate cada conversa como um teste do polígrafo, Clifford tinha me aconselhado. Chegue no seu quarto e se lembre de tudo aquilo que aconteceu no seu dia, dando prioridade para aquilo que você não é. Relembre, repense, memorize. Repita quantas vezes for necessário para virar seu instinto. Se bata, repita. Pergunte, com dor, com frio. Cada conversa, uma interrogação. Cada pessoa, uma possibilidade de dúvida. A única coisa que se deve levar da sua vida anterior a missão. O resto lhe é entregue. Você não é você. Você é o que você tem que fazer.
Mas Jones tinha me dito algo completamente diferente. Não se perca, ela tinha dito. Não se esqueça do que te segura ao mundo aqui fora, longe do castelo. Não se deixe levar pela mentira, que isso te tiraria o foco da missão. Não entre na brincadeira, não deixe que te mude. Não duvide do que te espera aqui fora, daquilo que te colocou lá dentro. É a sua base, é a sua segurança. Nós somos quem vai te pegar caso você caia. Não se deixe voar para longe de nosso alcance.
E com qual eu iria? Quem estaria falando a verdade?
"Eu preciso gritar para você me ouvir?!" A voz da moça que eu carregava chegou a meu ouvido, mas só porque ela esperneava como dava em meu colo. Meus olhos encontraram os dela, que estavam para pular de sua cara. "Pelo amor de deus, faz meia hora que eu estou te falando que você passou do meu quarto!"
Eu olhei à nossa volta. Ela estava mentindo. Nós estávamos ainda no segundo andar. E se ela era Valentine DeChamps, ela dormiria no segundo quarto depois da Princesa Gabrielle, logo antes do quarto que o pai da Princesa Nina ocupava quando ele visitava no verão. Eu tinha certeza de que seguia o caminho certo.
Ou ela não era quem eu pensava?
"Nós não estamos no segundo andar?" Perguntei.
"Sim! E é aqui que fica meu quarto!" Ela praticamente gritava, frustrada.
"Pensei que você fosse da família real."
"Eu sou," ela bufou, olhando à nossa volta por um jeito de sair do meu colo. "Mas eu não gosto de ficar lá em cima. É muito guarda e eles nunca me deixam fazer minhas próprias horas."
Ela encontrou o corrimão da escada e se apoiou nele. Não a questionei, só a ajudei a descer do meu colo sem piorar seu pé machucado.
"Mas aqui é onde os selecionados estão," falei, ainda deixando-a apoiar uma só mão em meu ombro.
"Normalmente, é um corredor vazio," disse. "De qualquer jeito, meu quarto fica no final do corredor, perto da escada lateral. Sabe, aquela pela qual nós subimos? Se você tivesse me ouvido, não teria que me levar de volta."
"Ah, desculpa," eu falei, fazendo menção de pegá-la no colo de novo. Mas ela segurou uma mão no ar para mim.
"Estou cansada agora. Dois minutos e eu lhe darei a honra de cumprir sua penitência."
"Penitência?"
"É. Não é por isso que você insistiu tanto em me trazer para cá? Para que eu não te odeie para sempre?"
Era até difícil entender o que ela falava quando minha cabeça ainda estava presa a tentar decidir o melhor jeito de sobreviver à minha missão. E ela devia ter percebido, pois logo franziu suas sobrancelhas, me imitando, buscando no meu rosto uma resposta.
"Você tá legal?" Acabou perguntando.
"Só...um problema aí," completei, com um sorriso. "No trabalho."
"Ah, então é por isso que você queria acabar com as minhas possibilidades de ter sucesso no meu?" Perguntou, me deixando confuso entre acreditar e achar que estava brincando. "Pois saiba que isso não vai me abater. Nada me abate. Nem seu mau olhado."
"Uau," soltei. "Amarga."
"Como é?"
"Nada," olhei para baixo por um segundo, rezando pra minha palavra ter morrido ali. Depois voltei a olhá-la. "Vamos?"
Nada que eu queria mais do que deixá-la em seu quarto e acabar com a minha responsabilidade para com ela de uma vez.
"Preciso de mais um tempo," pediu, se segurando no corrimão e sentando nas escadas. Eu a ajudei, mas assim que ela estava estável, lhe dei um pouco de distância.
Aquele corredor eu já conhecia. Mas ainda não tinha me acostumado a ver o castelo de verdade, depois de estudar tanto o seu mapa. Eu só o imaginava um pouco mais...cheio.
"Onde estão os guardas?" Perguntei, me virando pra ela. "Quer dizer, sei que esse corredor tem menos, uma das razões para você escolhê-lo, mas eu esperava que tivesse um pouco mais do que," olhei para os dois lados, "bom, nenhum."
Ela revirou os olhos. Realmente, amarga. Não tinha nada de idiota no que eu tinha falado!
"Você sabe que está tendo uma festa lá embaixo, não é?" Me perguntou. "E que noventa por cento da festa são funcionários do castelo."
Dessa parte eu não sabia. Me contentei com aquela resposta para evitar que ela revirasse os olhos de novo para mim.
Mais alguns minutos em silêncio, enquanto eu não me deixava pensar no meu trabalho. Se eu tinha chegado ao ponto de não ouvir quando ela tinha falado comigo, talvez não devesse ficar me questionando em horário comercial.
Que, pra mim, eram vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
"Qual seu problema?" A voz de Valentine perguntou do nada, ecoando pelo corredor.
"Meu problema? Eu não tenho problema nenhum!" Qual era daquela menina de ficar implicando comigo?
Ela riu, a última reação que eu esperava dela.
"No seu trabalho," me corrigiu. "Qual o problema no seu trabalho?"
Eu não sabia se aquilo era melhor ou pior. Como eu responderia?
"Um aí," disse, simplesmente, colocando minhas mãos no bolso e indo analizar um quadro na parede contrária a ela.
"Não, vai," ela insistiu. "Me conta. Eu posso ajudar. E se não puder, pelo menos me faz esquecer da dor no meu pé."
O tom da voz dela foi bem estudado para me fazer entender que era uma chantagem sem que ela tivesse que falar mais nada.
Eu respirei fundo.
"Eu tenho uma...análise pra fazer. E dois colegas meus me falaram para fazer de dois jeitos diferentes."
"E qual o problema?"
Foi minha vez de revirar os olhos. "Qual jeito escolher, é claro. Eu não sei qual está falando porque realmente acredita no jeito, e qual só quer me ver falhar."
Ela pareceu pensar por um tempo. Quando voltou a falar, parecia tão animada, que eu podia jurar que não era a mesma pessoa.
"Eu entendo tudo do assunto," disse. "Ballet é uma coisa muito difícil. Não só pelos movimentos, mas pelas meninas em volta. Tem muita gente de bom coração, mas ainda assim é uma batalha constante. É difícil saber se as dicas que você está recebendo são verdadeiras ou só um jeito de te tirar da competição."
"Exato!" Eu soltei, animado por ela me entender. Sem perceber, tinha voltado a andar até me encontrar logo na sua frente. "E como você descobre qual é qual?"
"Você não descobre," ela balançou a cabeça, seu olhar se perdendo atrás de mim por um segundo e rapidamente voltando a me mirar. "Você precisa descobrir é o que funciona para você. Mesmo que uma dica seja verdadeira, se não é para você, não tem como você segui-la. Às vezes a que era para ser ruim te ajuda. Às vezes você percebe que nenhuma é boa. É uma ciência. Tentativa e erro. Tente, erre, melhore uma coisa, tente outra coisa, vai entendendo como você funciona, como você trabalha e vai fazendo o resto do mundo se adaptar a isso. Você precisa aprender quem você é e partir daí. Não tem erro."
Ela sorria, e eu provavelmente a imitava. Parecia que ela tinha guardado aquela lição dentro dela durante anos, louca para poder colocar para fora e inspirar alguém. E eu que tinha tido a chance de ouvi-la.
Provavelmente percebendo que eu ainda estava absorvendo tudo aquilo, ela se apoiou no corrimão e se levantou como dava.
"Vamos," ela disse. "Eu te ajudei, agora você precisa me levar até minha cama. Estou exausta!"
"Meu prazer," falei, me posicionando embaixo de um dos seus braços para sustentá-la. "Quer que eu te carregue?"
"Não!" Ela pediu. "Assim é mais fácil para eu conseguir seguir meu caminho, mesmo que você queira fazer o errado."
Amarga, pensei. Mas já não me incomodava mais tanto assim.
E então eu ouvi o barulho do que parecia uma cadeira batendo no chão.
"O que foi isso?" Perguntei, olhando por cima do ombro.
Valentine também procurava, mas seus olhos desceram a escada, onde logo depois uma menina riu. E então outra.
"Alguém bebeu demais," ela disse, continuando a mancar em direção ao seu quarto.
Eu a acompanhei, mas minhas orelhas estavam em pé. Não duvidava de que alguém estava bêbado. Nem que as risadas tinham vindo do andar inferior. Mas eu tinha certeza de que o outro barulho tinha vindo de cima.
Nós estávamos virando o corredor, quando eu ouvi alguns passos. Parei de andar na hora, forçando Valentine a parar comigo. E fiquei em silêncio, tentando buscar qualquer barulhinho, qualquer vento ou movimento estranho. Qualquer coisa que me indicasse que eu não estava ficando louco, que não estava tão ansioso para alguma coisa acontecer, que estava começando a alucinar.
Mas nada. E quanto mais Valentine me olhava esquisito, mais eu me sentia culpado de estar deixando-a preocupada.
"Desculpa, eu achei que tivesse ouvido alguma coisa," disse, em resposta ao jeito que ela me olhava.
"Tipo, alguém andando?"
"Sim!" Respondi, talvez entusiasmado demais. "Você também ouviu? Acho que foi no andar de cima."
"Não, foi nesse," na hora em que falou isso, achei que ela fosse tirar com a minha cara, falando que eram os nossos. Mas não. "Parece que foi no andar de cima, porque esse chão dá um eco esquisito. Os tapetes ajudam, na verdade. Era muito pior aqui antes."
"Tá falando sério?"
"Estou. Demorei anos para reconhecer o barulho. Você não sabe como era terrível sempre ficar imaginando que tinha alguém andando em cima de mim. Sabe, o terceiro andar é mais vazio ainda-"
Não fiquei para ouvir o final. Se ela tinha certeza de que era naquele andar, eu precisava saber quem era. Nós estávamos no andar dos selecionados. E eles eram todos os meus maiores suspeitos.
"Você consegue chegar no seu quarto, não é?" Perguntei, me virando para olhá-la no último segundo antes de virar o corredor de volta para a ala principal.
E então eu o vi, começando a descer as escadas pelas quais eu tinha subido há pouco tempo. Apertei meu passo, mas ele deve ter me ouvido, pois ele fez o mesmo.
Antes que eu conseguisse chegar ao primeiro degrau, ele terminava o último. E quando eu finalmente cheguei no andar de baixo, eram muitos convidados entrando e saindo do baile para eu saber quem ele era. Todos vestidos iguais. Todos igualmente ocupados, como eu imaginava que ele fingiria estar, para me despistar.
E se eu tivesse imaginado? E se ele fosse simplesmente um selecionado normal que tivesse ido ao seu quarto e voltado à festa? Eu estava mesmo com todos meus nervos à flor da pele. Eu precisava me acalmar. Acabaria botando fogo em copos d'água, tão forte a tempestade que eu esperava que acontecesse.
Andei até a janela mais próxima e me apoiei de costas para ela, um olho dentro do salão.
Primeira noite e eu já estava ficando louco. Depois de passar minha vida inteira lendo livros de espionagem, eu podia pelo menos concordar quando eles diziam que só se aprende a trabalhar em campo estando lá. Como andar de bicicleta, eles adoravam dizer. Pode-se ler tudo sobre o assunto, mas se aprende mais com uma hora de prática, do que uma década de teoria.
Uma coisa que faltava nos livros? Manual do que fazer quando você acha que não vai conseguir. Eu chamaria o capítulo de: como desistir antes que você faça burradas demais sem volta.


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Notas finais do capítulo

Eu leio absolutamente todos os comentários. Mesmo quando não os respondo, eu leio e guardo no meu coração. Haha, só para vocês saberem que eu não estou ignorando vocês, pelo contrário. Mesmo que rápido e com poucas palavras, cada comentário aqui faz muita diferença pra mim! E eu queria agradecer todas aquelas que comentam, mesmo quando eu não respondo!
E, é claro, todos que leem, mesmo sem comentar! Nunca se esqueçam de que eu escrevo para vocês. Eu não estou fazendo um favor para vocês, vocês que fazem para mim por lerem. Sem vocês, eu não seria nada! Muito obrigada



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