Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 120
Capítulo 120: POV Amelia Woodwork


Notas iniciais do capítulo

Escrevi ouvindo "Already Gone" da Kelly Clarkson.



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Tinha alguma coisa em trens que eu realmente amava. Talvez fosse a velocidade, sua presença durante todo o desenvolvimento do nosso país ou até a disposição dos bancos. Quem sabe fosse o fato de tantas pessoas diferentes se encontrarem, cada uma entrando de um lugar, saindo em outro. Pessoas que vinham das mais diversas cidades indo a outras que eu talvez passasse minha vida inteira sem conhecer. Cada uma com a sua história, seus problemas, seus pensamentos e alguns desejos.
Ou talvez fosse simplesmente pelo trem me colocar em movimento. Como se eu estivesse mesmo indo a algum lugar que importava. Me dava a impressão de estar frente a frente com a possibilidade de minha vida mudar. Ou então eu só gostava de ser vista por todos os outros passageiros como alguém que guardava uma história muito interessante em segredo. Quando me olhavam, eles não sabiam que tinha acabado de sair do castelo. Nenhum deles adivinharia que estava atravessando o país por causa de uma só pessoa. Nenhum ouvia a quantidade de vezes que eu questionava aquela decisão. Eu era uma estranha ali. Todos éramos. Podíamos ser absolutamente tudo e definitivamente nada. Sem trocar nem uma palavra, nós cruzávamos o caminho um do outro, indiferente a quão significativa aquela viagem podia ser para eles.
Trens ligavam vidas. Não só as que deliberadamente se locomoviam de Angeles a Kent. Mas também aquelas que se encontravam ao acaso. Ouvindo a música perfeita, ficava difícil não perceber que trens eram a essência da vida.
Não poderia existir lugar melhor para eu estar naquele momento. Estava encolhida no meu assento, um casaco se fazendo de coberta, deixando meus calcanhares de fora, mesmo quando eu abraçava os joelhos. Quanto mais me afastava de Angeles, mas achava que devia voltar correndo. Mas o trem me dava a estranha sensação de conforto. Como se eu sempre pudesse me esconder dentro dele caso tudo desse errado. Apesar do frio, apesar de estar em um vagão quase vazio, eu não me sentia tão sozinha. Nem tão frágil.
Elena tinha estado certa. Eu devia ter comprado a passagem que me dava direito a uma cama. Já fazia quase dezoito horas que eu estava ali e só tinha conseguido colecionar sonos inquietos e dores nas costas. Era o trem rápido, mas mesmo assim. Eu estava atravessando o país até o leste, não tinha como ser uma viagem curta. E poderia ter passado o tempo todo dormindo.
Mas talvez não conseguisse nem assim. Não era a minha posição que me acordava de hora em hora. Era o braulho do trem chegando a uma nova estação. Eram os vários rostos que passaram por mim durante o dia inteiro. Era a proximidade da província dele. Era o sol se pondo e ele voltando a nascer. Era o fato de eu me lembrar a cada cidade que aquela não era uma simples viagem. Eu tinha uma coisa para fazer no final dela.
Não carregava quase nenhuma bagagem de mão para alguém que tinha atravessado tantas províncias, mas carregava mais do que o suficiente na minha cabeça. Tinha sobrevivido quase toda a viagem sem pensar demais. Meus sentidos já estavam extremamente conscientes de tudo que eu ainda tinha que entender. Dezoito horas me contorcendo no meu assento para tentar esquecer aquele frio na barriga. Dezoito horas não me deixando pensar no que eu diria. Ainda tinha muito tempo. Ainda podia mudar de ideia. Podia voltar atrás e pegar um trem de volta para a minha faculdade. Ainda tinha tempo.
Mas o sol já brilhava outra vez no meu rosto. Já era segunda-feira. E eu já devia estar no leste há muito tempo. Só mais algumas províncias, mais algumas cidades, só mais algumas paradas. Olhei rapidamente para o papel que segurava até minha mão suar. Segundo o cronograma só faltavam duas estações. Sota. E Kent.
Senti um calafrio me descer pelas costas até as pontas dos meus dedos, que se fecharam a ponto de amassar o papel. Eu devia ter dormido bem mais do que tinha imaginado da última vez. Olhei no relógio, quase sete da manhã. Só mais quarenta minutos.
Eu sabia que o que estava fazendo era loucura. Era mais do que loucura. Não tinha a menor garantia de que daria certo. Não tinha nem ideia sobre o que diria para ele. E, mesmo que eu fizesse tudo certo, chegasse na sala certa, na aula que Elena estava convencida de que ele daria, o que me provava que ele realmente me queria? Ele podia muito bem me achar louca, ele definitivamente me acharia louca! Ninguém que cruzava o país do nada durante quase um dia inteiro estava bem da cabeça. Ainda mais sem a menor garantia do que encontraria no final.
Não. Eu precisava parar de pensar no que ele diria, em como ele reagiria. Já estava nervosa demais tendo que pensar nas minhas próprias explicações, tanto para ele, quanto para mim mesma. E tinha uma coisa que Elena tinha dito na plataforma antes de eu embarcar da qual precisava me lembrar.
Respirei fundo, deixando minhas pernas caírem no chão. O que quer que seja, será, repeti na minha cabeça algumas vezes. Aconteceria o que devesse acontecer. Não importava. Não devia importar. A reação dele não devia importar. Eu só tinha que me preocupar com a minha parte.
Mas era quase impossível não querer primeiro saber o que ele pensaria daquilo tudo. Minha vontade era chegar na sua frente depois de uma viagem de dezenove horas e perguntar o que ele queria me dizer, se é que tinha alguma coisa para dizer. Tá que eu estava tomando a iniciativa, a atitude, qualquer uma dessas coisas que a Elena tinha ficado tão animada de me ver fazendo. Mas ainda queria saber se não estava pisando em falso. De que adiantaria eu fazer tudo isso para chegar lá e ele nem querer me ver na sua frente?
Podia imaginar Elena sentada no banco logo na minha frente. Se não fosse tão cedo, estaria mandando mensangens para ela com todas as minhas perguntas. Mas agora precisava me contentar com a minha imaginação.
E então, lhe perguntei na minha cabeça. E se ele não quiser me ver na sua frente?
Então você volta, ela me responderia, abrindo os braços no ar.
Assim? Rejeitada? Para passar o resto da vida sendo a garota que atravessou o país só para ouvir um não?
Poderia apostar no sorriso que Elena daria, satisfeito e até um pouco convencido, já que ela teria a resposta perfeita. E eu sabia exatamente o que diria, pois foi o que me disse quando eu quis voltar atrás já na estação.
Melhor do que ser a garota que era medrosa demais para ir atrás de um cara que tinha desistido de se casar com uma princesa por ela.
Bufei, um pouco irritada com o quanto ela estava certa, mesmo sem estar ali.
"Droga," soltei sem querer em voz alta. A mãe da família que se sentava mais perto de mim me lançou um olhar de reprovação. "Desculpa," repeti, dessa vez bem mais baixo. Não era como se eu tivesse acordado seus filhos.
Mas eu queria xingar bem pior. Bem pior. Porque eu sabia que era inevitável. Não só pelo que Elena tinha falado, mas por mim mesma. Não conseguiria parar de reclamar e o caminho todo eu estaria pensando em desistir. Mas algo dentro de mim me dizia que iria até o fim. Por bem ou por mal, eu chegaria até lá. Realmente não conseguiria dormir, não conseguiria viver sem ir até ele, sem saber o que aconteceria.
Era isso. Era curiosidade que me movia. Como poderia acordar todos os dias sem saber o que teria sido se eu fosse atrás dele? Uma rejeição parecia terrivelmente dolorosa. Mas era o tipo de coisa que sararia. Não saber seria para sempre.
Além de que, quando eu me deixava imaginar o que poderia acontecer, não conseguia me esquecer do que a princesa tinha falado.
Aquilo era o mais perigoso, pensar nas suas palavras. Era o que acelerava meu coração e o fazia subir até a boca. Mesmo estando no mesmo lugar que um segundo atrás, no momento em que pensava naquilo, sentia como se estivesse na frente dele. Não tinha sido a princesa que tinha decidido que ele não era bom o suficiente para ela. Ele que tinha pedido para sair, porque tinha se apaixonado por mim. E sim, ainda podia me lembrar de ela falando, ele tinha dito o meu nome.
Puxei meu casaco até o rosto, escondendo meu sorriso por trás dele. Queria tentar imaginá-lo na frente dela, falando meu nome. Amelia, ele provavelmente tinha dito. Parecia se recusar a me chamar de Mia. E eu odiava aquilo.
Mas só odiava porque gostava. E bastante. O nome de velha que minha mãe tinha escolhido para mim não soava tão ruim quando saía da boca dele. Pelo contrário, soava estranhamente graça. E só me fazia sorrir ainda mais.
Eu precisava parar com aquilo! Ele não estava na minha frente, falando aquilo para mim! Poderia muito bem ter mudado de ideia. Eu chegaria lá e ele me diria que tinha sido tarde demais. Porque era tarde. Quando ele tinha me falado que tinha se apaixonado por mim, eu o mandei me esquecer. Me deixar em paz. Ele poderia muito bem devolver minha próprias palavras como um tapa na minha cara. E eu precisava me preparar para aquilo.
Se eu pelo menos soubesse o que diria! Ele provavelmente perguntaria porquê. Por que eu tinha dado a louca de só deixar um bilhete para a minha mãe e fazer a viagem mais longa da minha vida. Por que eu tinha esperado ele ir embora para perceber que não queria que fosse?
A culpa disso era dele, totalmente dele. Foi embora rápido demais, nem tinha me dado tempo de pensar direito. Nem tinha me dado a chance de me despedir. Se pelo menos tivesse vindo até mim, me dito que tinha pedido para ir embora e que era por minha causa! Mas não, deixou os bichinhos na minha mesa e desapareceu completamente.
Está bem, talvez a culpa fosse também um pouco minha. E eu provavelmente deveria começar me desculpando.
Comece com um beijo, Elena diria, rindo logo depois. E só de a imaginar assim, já voltei a me contorcer na poltrona.


Kent era bastante diferente do que eu imaginava. A estação ficava do outro lado da rua da entrada principal da universidade, o que só provava a minha teoria de que aquela era a maior atração da capital. Mas, para chegar lá, o trem teve que passar por toda a cidade. E depois de dezenove horas de altíssima velocidade, a ponto de quase não conseguir ver a paisagem, ele diminuiu. E cada uma das casas ficou dolorosamente visível.
Eu esperava uma cidade grande e prateada. Feita de prédios e empresas ricas. Jovens estilosos para todos os lados e um subúrbio cheio de mansões. Mas a capital homônima de Kent já deveria ter visto dias melhores. A maioria das vizinhas parecia quase abandonada, vandalizada, cinza. E não um cinza bom, feito de concreto e progresso. Cinza abandono.
Conforme fomos chegando mais perto da estação, as coisas começaram a mudar. Mas ainda assim não se comparava nem com os bairros de classe média alta de Angeles. E perceber tudo aquilo me distraiu por alguns poucos minutos.
Mas, assim que o trem diminuiu ainda mais sua velocidade e começou a se aproximar da plataforma cheia de estudantes, eu senti de novo o frio na minha barriga se espalhar pelo corpo inteiro. Mal conseguia sentir minhas mãos quando as portas se abriram e eu desembarquei. Desviei com pernas bambas de todos os universitários que deviam voltar da semana do saco cheio e de todas as poucas famílias entre eles, o tempo todo segurando às duas alças da minha mochila com toda força que tinha.
Do trem, já tinha tido a chance de ver a universidade de relance. Mas tive que parar um pouco para recuperar meu fôlego quando pisei na calçada. Sua entrada era bonita o suficiente para me deixar tonta normalmente, parecendo concentrar ali todo o dinheiro de uma província inteira. Mas era ainda pior quando era um símbolo do que eu estava prestes a fazer.
Não pense, Mia, falei para mim mesma, mirando o chão quando pude atravessar. Melhor não pensar e só ir em frente. Se todo mundo ficasse se questionando antes de pular de paraquedas, todos pousariam com o piloto ainda dentro do avião.
Não pense. Só pule.
"Com licença," pedi, chegando ao portão principal e sorrindo para o guarda.
Será que ele podia ver que meu coração estava na minha garganta?
"O que foi?" Ele perguntou, relutantemente tirando os olhos de uma televisão para me mirar.
Meu sorriso estremeu do lado de fora do vidro que nos separava.
"Eu preciso ver um professor," falei, como se cada palavra me custasse a sair.
Ele apertou os olhos para mim, levemente irritado. "E o que está te impedindo?" Perguntou, balançando a cabeça e indicando com a mão ao prédio da faculdade.
Minha educação, pensei.
Os portões estavam mesmo abertos, eu tinha visto, não era idiota. Mas achava que precisaria de algum tipo de passe especial, pelo menos para entrar nas salas. Era assim em Angeles.
Segui o fluxo de alunos que pareciam chegar aos montes. Junto com a estação de trem, tinha uma de metrô que parecia juntar e distribuir todos os habitantes de Kent, cada vez mais me fazendo perguntar se existia ainda alguém ali que não era estudante.
Existia, pensei, assim que vi um cara passando por mim vestido de terno. Os professores.
O campus era bastante parecido com o da minha universidade. Grama para todo lado, estudantes separados em grupos, pessoas correndo para não perderem aulas, outras nem conscientes o suficiente para se importarem. Mas o prédio era bem mais bonito, de tijolos vermelhos e um tanto envelhecido. Era estranhamente aconchegante. Bem parecido com o que eu tinha imaginado, o lugar aonde eu tinha apostado que ele trabalharia.
Era a cara de Alex mesmo.
Só a menção do nome dele pareceu ter me engolido como uma onda de nervosismo outra vez. Eu precisava encontrá-lo. Não sabia mais quanto tempo conseguiria guardar tanta coragem. Não quando eu estava também morrendo de medo.
Assim que avistei um mural de avisos, andei até ele. Esperava algum mapa, alguma indicação pelo menos de que tipo de prédio cada parte era. Precisava de humanas. História II. A aula de Alexander Dobrovisky, segundo o site da universidade. Mas nada de um mapa.
Fiz menção de dar um passo atrás, mas foi impedida por um outro corpo, bem mais alto, bem mais forte que o meu.
"Desculpa," pedi, me desviando dele.
O garoto não parecia ser nem um segundo mais velho do que eu. Provavelmente era mais novo.
"Que isso, eu que não te vi aqui," ele falou, pronto para continuar seu caminho.
Mas uma ideia me ocorreu.
"Espera," falei, antes que ele desse mais do que um passo. Ele virou para me olhar. "Você sabe aonde fica a Sala 403?" Droga, era 403 mesmo?
"Você é nova aqui?" Ele quis saber, voltando até ficar na minha frente.
"Transferência," confirmei, celebrando silenciosamente dentro da minha cabeça por ter conseguido inventar a mentira perfeita. "Tenho aula de História II agora."
"Ah," ele abriu um sorriso na hora em que eu falei. "Com o russo?" Eu franzi a sobrancelha, o que só contribuiu para que ele risse. "Dobrovisky, né?"
"É."
"Russo," ele sorriu. "Você realmente é nova aqui. Está estudando História?"
"Geografia," corrigi, logo pensando que então não fazia muito sentido eu ter que ir na aula dele. "A matéria de História é só um hobby meu. Gosto de estudar o passado do nosso país, como nos tornamos Illéa, essas coisas," mentira, mentira, mentira, pensei logo em seguida, sorrindo e o mirando fundo nos olhos para que acreditasse em mim.
"Sei como é," ele disse, parando alguns segundos para me observar. "A Sala 403 é logo na entrada daquele prédio," ele apontou para algo atrás de mim e eu segui seu dedo até o lugar que indicava. "Mas, viu, se você quiser saber mais do passado do nosso país, se estiver interessada, eu tenho um negócio aqui para você," ele puxou sua mochila para a frente, abrindo só o suficiente do zíper para amassar um papel pra fora. "É um clube," ele explicou assim que eu o peguei e analisei o desenho grande e estilizado de uma águia. "Vale a pena dar uma olhada. Se você realmente gosta de História Illéana."
"Amo," menti uma última vez. "Muito obrigada."
"Corre," ele disse, quando eu esperava um de nada. "Acho que a aula já começou faz um bom tempo."


Ele estava certo. A aula já tinha começado. E eu não só tinha chegado lá atrasada, como ainda fiquei andando de um lado para o outro na porta por um bom tempo até me convencer de que precisava entrar.
Não que eu precisasse. Podia muito bem ter esperado a aula terminar, sentadinha no banco mais próximo. Mas, se a minha curiosidade era forte o suficiente pra me trazer de Angeles até lá, eu não conseguiria ir contra ela agora. Precisava ver como era uma aula dele!
Por sorte, tudo estava escuro. Era uma sala auditorial com uns bons duzentos alunos. Ninguém nem percebeu que eu entrei, pois a porta ficava atrás de uma parede de provavelmente duas fileiras de cadeiras. Tive que seguir o círculo no escuro até encontrar os degraus que desciam até as primeiras cadeiras. Uma única olhada para dentro da sala e eu já me escondi atrás da parede de madeira outra vez.
Não era uma separação, só um detalhe bem planejado para aquele momento. A voz de Alex enchia a sala toda, me obrigando a encostar a testa na parede e respirar fundo várias vezes antes de arriscar outro olhar aonde ele devia estar.
Lá embaixo, depois do último degrau, ficava a lousa, a mesa e o professor. Só coloquei o suficiente de fora para conseguir observá-lo, escondendo tudo que podia de mim atrás da parede. Ele estava de costas, apoiado em um aparelho de slides. E estava escuro demais para conseguir vê-lo de verdade.
Aliás, a sala inteira estava bastante escura. Resolvi aproveitar para dar dois passos para dentro e me sentar na primeira cadeira vazia que vi. Deixei meu corpo inteiro escorregar para baixo, tentando evitar que ficasse muito à vista. Mas a sala estava quase inteira cheia. Precisaria de muito, mas muito azar mesmo.
Bem o meu tipo de azar, aliás.
Mas ele não me viu. Durante os próximos vinte, trinta minutos, ele só falou, mostrou fotos que pareciam ter mais de quinhentos anos de idade e ignorou todas as piadas que os alunos faziam em referência à Seleção. Eu me sentia como uma pessoa de fora conseguindo ter a chance de ver como era estar por dentro. Alguém que sabia demais, se incomodava demais com aqueles comentários, mas que ninguém conhecia. Cada vez que alguém mencionava a princesa, eu me afundava mais na cadeira, ou colocava minha mochila mais para cima, tentando me tampar. O nervosismo me corroía por dentro, me mantendo sempre prestes a sair correndo dali. Mas eu estava bem. De certo modo, estava bem.
Até ele acender a luz.
Era daquilo que eu precisava, pensei, na hora me endireitando um pouco mais para olhá-lo. Alex não estava vestido de selecionado, com smoking e máscara. Nem usava uma bermuda adorável e desconfortável. Ele vestia calça e colete de tonalidades diferentes. Sua camisa não parecia nada cara e estava amassada até os cotovelos. E a gravata alguns tons mais escuro de azul que ela parecia estar ali só por protocolo. Mas a melhor parte era que ele usava tênis.
Era ele, de verdade. Era Alex. De repente, tudo que ele já tinha falado, cada olhar que já tinha lançado na minha direção fez sentido. Ele não era só mais um selecionado. Ele era quem eu achava que conhecia, quem eu queria conhecer ainda mais agora. Até seus modos agora pareciam encaixar, de um jeito incrivelmente charmoso.
Ele desligou a máquina de slides e foi até o meio da sala, arriscando um olhar pelos alunos.
Eu me abaixei de novo.
"Só uma pergunta," ele disse, com uma confiança que eu nunca tinha visto nele até aquele dia. "Em que ano foi isso?"
Praticamente toda a sala levantou a mão junta, rindo logo depois com ele.
"Você vai dar ponto por essa?" Uma menina logo à sua frente perguntou.
Ele se apoiou na máquina de slides, se entortando, fingindo pensar, me dando vontade de correr até ele, me obrigando a respirar fundo algumas vezes.
"Não seria justo," disse no final. "Não sei quem poderia ter levantado a mão primeiro." Deu de ombros, logo procurando alguém para responder.
Eu estava quase deitada na cadeira, mas deslizei mais um pouco.
"Julien," ele chamou, fazendo todos abaixarem as mãos e um cara sorrir triunfante. "Se você errar essa, perde ponto."
Ninguém teve uma única reação àquilo, como se não fosse nem possível.
Enquanto todos olhavam na direção do tal Julien, eu preferi ficar analisando o rosto de Alex. A última vez que eu o tinha visto, ele tinha estado na minha frente, me escutando falar para me deixar em paz. Fazia, o quê? Três dias?
Quatro.
Eu tinha ido ali apesar do medo da rejeição. Mas eu mesma o tinha rejeitado descaradamente. Eu o tinha descreditado quando ele me disse que tinha se apaixonado por mim. Tudo porque eu não sabia que ele teria a coragem, que era do tipo que pediria para sair da Seleção e que desistiria da oportunidade de se tornar rei de um país por mim. Ele tinha feito tudo aquilo que eu tinha decidido como condição para eu deixar alguém se aproximar. E, melhor, ele nem sabia das minhas regras. Não tinha feito por mim. Tinha feito por ele. E por quem eu tinha me tornado para ele.
E agora eu estava me escondendo? Eu devia me sentar direito, torcer para ele olhar nos meus olhos sem me odiar. Torcer para que não tivesse seguido meu pedido e esquecido de mim.
"1776," quando o aluno respondeu, todos os outros bateram palmas, me acordando dos meus pensamentos.
Me sentei direito, enquanto eles começavam a organizar suas coisas e Alex ia até sua mesa, nos dando as costas.
Era isso. A aula estava terminando. O que eu ia fazer? Simplesmente me levantar e ir falar com ele? Pedir desculpas?
"Ah, espera," ele pediu, se virando de volta para nos olhar. Ainda estávamos sentados, apesar de todos os outros daquela sala parecerem já estar no limite dos assentos. "Alguém aqui chegou atrasado e precisa assinar a lista?"
Antes que eu pensasse no que estava fazendo, levantei minha mão.
Cada milésimo de segundo que ele demorou para olhar na minha direção pareceu ser infinito. E as batidas do meu coração aceleraram com cada um.
Mas ele acabou me encontrando. Seus olhos acabaram pousando em mim. E eu pude abaixar minha mão.
Nunca conseguiria me esquecer da expressão em seu rosto quando ele percebeu que era eu. Mesmo que me levantasse naquele momento e saísse de lá sem falar com ele, a viagem inteira já tinha valido a pena pela esperança que passou pelos seus olhos nos segundos em que ele só conseguiu ficar me mirando de volta.
"Eu, hãn," ele pigarreou, desviando seu olhar para o chão, ao papel na sua mão. "Então, é," ele deu as costas, voltando à sua mesa. "Vocês-" Quando ele foi se virar de volta para nós, seu braço bateu em uma caneca de plástico a levando ao chão, café se espalhando até quase a primeira fileira.
Assim que ele tentou ir limpar, esbarrou em uma pilha de papéis, alguns caindo logo em cima da poça no chão.
"Quer ajuda, professor?" Um aluno se ofereceu, quando eu já me levantava para fazer o mesmo.
"Não, eu," Alex se levantou, seus olhos encontrando os meus por um segundo antes de ele voltar a desviá-los. "Vocês estão liberados," foi só o que falou, balançando a cabeça e voltando a tentar minimizar os danos do café.
Os alunos todos se colocaram de pé de vez, levando o barulho que faziam na direção da porta, desaparecendo antes que suas conversas, uma vez atrás da parede. Contra o fluxo, andava eu. Um degrau de cada vez na direção de Alex.
Ele tinha jogado várias papéis toalha em cima do café, mas não parecia ter o menor controle da bagunça. Deve ter percebido que eu chegava perto dele, pois parou de tentar arrumar tudo aquilo. E só respirou fundo algumas vezes, as mãos apoiadas nas pernas.
E então se levantou.
"Amelia," ele disse, sua voz quase baixa demais para eu escutar, apesar de todos os alunos já parecerem ter ido embora.
Foi impossível não rir do quanto eu já tinha antecipado o momento em que ele me chamaria pelo nome.
"Alex," mas falar dele exigiu uma pequena mordida no canto do meu lábio.
Ele franzia a sobrancelha, ainda respirando fundo, esfregando uma mão na outra como se ele que tivesse aparecido do nada naquela sala de aula. Suas mãos foram à sua nuca, depois começaram a organizar inutilmente as folhas mais próximas na sua mesa.
"Eu," comecei, enfiando as mãos no bolso e tentando ignorar o nó na minha garganta. "Ótima aula."
Ele concordou com a cabeça várias vezes.
Qual era o meu problema? Onde estava a minha coragem? Pelo amor de deus, eu tinha atravessado um país. Ele já sabia o que eu tinha para dizer. Só precisava que eu dissesse.
"Você deixou uma coisa para trás," falei, a sentindo dentro de um dos bolsos do casaco. "Você foi embora e a esqueceu."
Ele pareceu desmanchar na minha frente, soltando dos papéis nos quais mexia. Engoliu a seco, completamente desanimado, e acompanhou com os olhos conforme eu tirava a pedra do meu bolso.
Assim que a notou, seus olhos iluminarem de alívio. Ótimo. Ele tinha pensado que eu estaria devolvendo os bichinhos. Era o que eu queria.
"É uma água marina," expliquei, segurando a pequena caixinha entre nós. "Não é muito valiosa, a não ser pelo fato de que é difícil de se encontrar hoje em dia assim. Bruta."
Ele me olhava como se segurasse a respiração, e eu fiz o mesmo, desviando meus olhos para a pedra. Se tivesse que encará-lo mais um pouco, não conseguiria terminar.
"Meus colegas não queriam que eu fosse atrás dela. Pelo contrário, me chamaram de louca, disseram que eu estava arriscando minha vida por nada," virei a caixinha nas mãos, buscando os defeitos da pedra que eu já tinha memorizado. "Apesar de ela realmente ter estado em um dos lugares mais inóspitos que já tive que visitar, simplesmente sabia que precisava tê-la. Eu precisava tê-la. Ia contra quase tudo que eu conhecia e pelo que vivia. Mas eu sabia que ela era minha. Uma força bem maior do que meu medo me fez ir atrás dela. E eu estava certa. Ela era minha."
Senti minhas bochechas palpitarem, mas engoli qualquer choro que pudesse ameaçar vir.
"Algumas coisas valem a pena arriscar," continuei, minha voz quase não saindo, como se eu sentisse as palavras ao mesmo tempo que as dizia. "Quando você sente que é para ser seu, quando seu instinto te diz para esquecer do resto do mundo e ir atrás daquilo, você vai." Levantei os olhos para Alex, que estava bem mais perto do que antes. Ele franzia as sobrancelhas. Não de confusão, mas como se tentasse manter o máximo de controle possível sobre sua reação. E aquilo me deu uma pontada de confiança, da qual precisava para continuar. "Ela ainda é minha. Mas quero que seja sua também. Porque você é uma dessas coisas, Alex. Quer dizer, não que eu ache que você é uma coisa. Eu só acho que você vale o risco." Ele pareceu bufar, ou inspirar, ou rir, não dava para saber direito. Mas eu só continuei, engolindo qualquer intenção que meu corpo tivesse de me fazer até lacrimejar. "Eu sei que te mandei me esquecer, mas você precisa entender a minha posição. Para todos os efeitos, você tinha se comprometido a se casar com uma princesa. Casar. E eu não te queria daquele jeito. Mas isso não significa que eu não te queria. E aí você foi embora e eu nem pude-"
Alex deu um passo à frente, dispensando tudo que eu falava com a melhor interrupção que eu pudesse querer. Eu estava no meio da frase, mas suas mãos buscaram meu rosto, me levando para ele até que eu já não conseguisse mais continuar.
Independente do tempo que fazia desde que eu o tinha visto pela primeira vez, eu tinha passado cada segundo me segurando para não pensar naquilo. Tinha me proibido de sequer imaginar a possibilidade de ele me beijar. E só percebi o quanto precisava daquilo, o quanto o queria quando senti seus lábios nos meus.
Todas as palavras que eu conhecia, todas as explicações que achava que lhe devia desapareceram na minha boca. Minhas mãos quiseram soltar da pedra, largar minha mochila, esquecer do resto do mundo para eu poder abraçá-lo e sentir, pelo menos naquele instante, que tudo que eu tinha para perder poderia também ser meu.
Mas ele me soltou logo em seguida, dando um passo inteiro para trás, levando suas mãos e todo o meu ar com ele.
"Desculpa," pediu, balançando a cabeça, respirando tão fundo que eu podia ver o efeito do ar entrando e saindo de seu peito.
Pisquei várias vezes, tentando recuperar meu fôlego. "Pelo quê?" Perguntei, chegando mais perto dele. Arrisquei pousar minha mão sobre seu colete, deslizando devagar até sua nuca. "Por ter parado?"


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Notas finais do capítulo

Se você leu o capítulo 118 da Lola antes do dia 15, deve ter percebido que ela tinha dito Universidade de Paloma e agora a Mia foi até a de Kent. Eu editei o capítulo 118 para encaixar com esse daqui, pois vi o mapa que a Kiera Cass (finalmente!) liberou de Illéa e percebi que Paloma não era aonde eu precisava que fosse.