Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 114
Capítulo 114: POV Lola Farrow


Notas iniciais do capítulo

Escrevi ouvindo "Good For You" da Selena Gomez com o ASAP Rocky.

ATENÇÃO!

ANTES de ler esse capítulo:
— Pare de fazer tudo que está fazendo;
— Sente-se;
— Certifique-se de que tem uma câmera e/ou gravador perto de você;
— Respire;

ENQUANTO lê esse capítulo:
— Respire;
— Eu falei RESPIRE;

DEPOIS de ler esse capítulo:
— Grite durante meia-hora;
— Certifique-se de que gravou o grito;
— Senão, repita-o e GRAVE DESSA VEZ!
— Me envie o grito/a reação assim que puder;
— NÃO DÊ SPOILERS nem no Facebook, nem no Whatsapp;
— COMENTE. Mesmo que nunca tenha comentado antes. Aqui ou em qualquer lugar;
— ME AME PARA SEMPRE!

MUITO depois de ler esse capítulo:
— Espere pacientemente pelo próximo.

Ah. De nada! Haha e boa leitura!



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Eu tinha resistido bem. Durante quase meu discurso inteiro, tinha conseguido não pensar nele, não lembrar que ele estaria me ouvindo, nem me deixar imaginar o que estaria pensando. Me convenci de que ele nem estava lá, o que tinha sido consideravelmente simples com ele preferindo assistir do bar. Mas não tinha sido fácil. Por mais que tivesse tido muito mais sucesso do que eu tinha esperado, tive que passar o tempo todo lutando contra a vontade de desviar meus olhos e meus pensamentos na sua direção. E ele acabou fazendo questão de ficar de pé na minha frente durante a parte mais crucial de tudo que eu tinha para falar.
Não era de se estranhar que eu tivesse feito um discurso tão desorganizado e repetitivo. E agora, que podia limitar minha própria visão às mulheres da organização, só me restava tentar esquecer de tudo que podia ter sido melhor e do fato de ele ainda estar me olhando.
Ele ainda estava me olhando? Podia jurar que estava. Apesar de não me arriscar a procurá-lo pela festa, sentia cada movimento meu ser uma escolha que não passaria despercebida. Minhas palavras ainda pairavam à minha volta, dentro da minha cabeça, na ponta da minha língua. E ele as tinha ouvido, ele tinha me assistido. Devia estar pensando nelas, refletindo sobre elas, me classificando em sua cabeça como alguém que ele queria por perto. Ou não.
O que eu tinha mesmo falado?
Passava por toda a grande mesa, abria sorrisos e cumprimentava todas as mulheres e homens que mantinham a organização de pé, enquanto meu cérebro trabalhava incansavelmente em tentar encontrar alguma coisa que eu tinha falado que poderia ser interpretada errada. Ou eu mesma tinha errado. Talvez só fosse errada. Talvez agora Marc só tivesse se assegurado de que eu não era para ele.
Não. Não para ele, como ele. Amiga dele. Alguma pessoa que ele realmente pudesse admirar, de quem ele não se esqueceria se resolvesse juntar uma mochila e mudar de país amanhã. Alguém que importasse, que o fizesse questionar sua classificação de um por cento.
Não que eu precisasse da sua aprovação. Sabia bem demais quem era e não tinha falado uma única mísera mentira durante todo meu discurso de última hora.
Mas mesmo assim. Depois do que ele tinha dito sobre os mais ricos, a última coisa que eu queria era que me visse como sendo tão ruim quanto eles.
"Princesa?" No meio de tanta gente, nem estranhei a voz tão perto do meu ouvido. E tampouco me virei na hora. "Princesa Lola?"
Não sabia quanto tinha andado nem quanto ainda faltava. Quanto mais jurava sentir os olhos de Marc registrando cada movimento meu, menos eu olhava para cima. Pelo contrário, ria mais alto, sorria mais aberto, perguntava mais coisas, focava mais em quem estava na minha frente. Era meu jeito de distrair a mim mesma, me convenci, e de não dar atenção àquele frio na barriga que ganhava força toda vez que eu ameaçava reconhecer sua presença.
Estava tão focada em me distrair, que a dona da voz teve que repetir meu nome algumas vezes e alguns tons mais alto para eu me dar conta de que não a ouvia por acaso.
A mulher que estava na minha frente parou sua frase no meio, desviando os olhos para algo atrás de mim. Eu lhe sorri educadamente, sem conseguir me lembrar do que ela tinha estado falando um mínimo segundo atrás, e me virando para ver quem me chamava.
Era uma menina de aparência frágil, não muito mais baixa do que eu, mas bem mais magra. Seus braços finos pareciam tremer como sua voz, mas seus dedos longos seguravam firme à minha tiara, como se pudessem sentir em forma de eletricidade toda a responsabilidade que vinha com ela.
Meus olhos demoraram para encontrar seu rosto, mas quando o fizeram, percebi que ela estava apreensiva. Não, mais que apreensiva, notei, sorrindo para mim mesma. Ela parecia pedir desculpas com seus olhos castanhos e grandes por ter me interrompido, mesmo quando fazia questão de mirá-los em qualquer lugar além do meu rosto.
"Olá," eu falei, meu tom alegre e descontraído, com a intenção de tranquilizá-la. "Como você se chama?"
Mesmo ela demorando para me responder, pude entender que aquele não era um momento comum. Todos à nossa volta pararam o que estavam fazendo para nos observar, o que só me deixava ainda mais curiosa sobre aquela menina. Até um certo silêncio se instalou entre nós, mesmo que o resto da festa o ignorasse.
Ela engoliu a seco, parecendo apertar a tiara ainda mais com os dedos. "Anna," jurei ouvir quando ela abriu a boca. Mas poderia ter sido qualquer outro nome, de tão baixo que tinha falado.
Levantei os olhos dela rapidamente, buscando entre as pessoas ao seu lado alguém que pudesse me explicar o que estava acontecendo só com uma expressão, ou pelo menos me confirmasse que tinha entendido seu nome direito.
Só recebi sorrisos que encorajavam nossa conversa. Então voltei a olhar para a menina.
"É uma prazer te conhecer," rezava na minha cabeça para acertar seu nome, "Anna."
Ela sorriu para si mesma e ninguém se manifestou contra qualquer erro meu, então respirei fundo.
"Vamos lá, fala para ela," uma voz mais direta apareceu a tempo de nos salvar de um silêncio mais constrangedor. Olhei rapidamente por cima do ombro, mas já a tinha reconhecido, vinha de uma das diretoras da organização, Lucy.
"Você tem alguma coisa para me falar?" Perguntei à Anna, voltando a focá-la. Ela pareceu encontrar meus olhos por um segundo só, logo levantando a enorme tiara na minha direção.
"É para você," ela disse, sua voz um pouco mais alta que antes.
Recuei a cabeça, jurando ter entendido errado. "Não," falei, olhando em volta, "é de vocês."
Anna a levantou um pouco mais na minha direção, quase escondendo o rosto atrás dela, deixando praticamente só seu cabelo loiro à vista.
"Ela quer te falar uma coisa, Princesa," Lucy foi até ela, se colocando ao seu lado, suas mãos em seus ombros e todo o apoio possível em sua tarefa.
"Eu-" Anna começou, engolindo a seco, me levando a colocar também uma mão em seu braço. Por mais leve que fosse meu toque, ela pareceu quase levar um choque, mas olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
E talvez fosse mesmo.
Eu sorri timidamente e ela me imitou.
"Nós queremos que fique com a tiara," ela disse, cada palavra saindo levemente estudada.
Franzi a sobrancelha, olhando dela para cada pessoa atrás dela, que nos observava como se já soubessem de tudo aquilo.
"Mas eu dei para vocês," insisti.
"Anna?" Lucy chamou, como se indicasse que era hora da fala dela.
"É uma honra," Anna continuou, voltando a fugir dos meus olhos. "Mas queremos que fique com ela. É nosso jeito de-" Ela olhou para Lucy ao seu lado, os olhos arregalando.
"Use suas palavras," ela disse, como uma mãe.
Anna se voltou para mim com certa relutância. "Você merece. Vossa Alteza!" Ela correu para consertar.
"Você," eu a corrigi.
Ela pareceu respirar fundo. "Você merece," repetiu.
Pronto, Lucy acreditava que tinha sido o suficiente e resolveu me explicar ela mesma. "Queremos que fique com a sua tiara, Princesa, pois todas nós acreditamos que você é a verdadeira prova da realeza. Não importa de que ela sirva, como um jeito de indicar às pessoas que elas devem lhe seguir e lhe ouvir ou até mesmo só para refletir a beleza que tem dentro de si, queremos que a use."
Suas palavras pareceram acertar um ponto fundo e delicado dentro de mim, fazendo minhas bochechas palpitarem por um segundo.
Eu sorri com mais vontade, me recusando a admitir para mim mesma que existia a possibilidade de eu chorar em público.
Até queria protestar, dizer que aquilo poderia tirar todo o propósito do meu argumento no discurso há alguns minutos atrás. Mas não queria contrariá-las e Anna parecia ter sido a grande escolhida para ter a honra de voltar a me coroar. Então só me abaixei na sua frente.
Ela a levantou, mirando no topo da minha cabeça e a encaixou, me fazendo fechar os olhos no momento em que voltei a sentir seu peso. Era estranho, mas eu até tinha sentido falta dela. E pensar que elas me viam de um jeito tão admirável me deu ainda mais vontade de andar pela festa com ela.
Quando levantei a cabeça, a timidez de Anna já não conseguia impedi-la de sorrir de orelha a orelha. Mas logo a levou a se esconder de mim, a sair da minha frente e do olhar de todos à nossa volta o mais rápido possível.
Eu mesma olhei para todos que tinham presenciado a cena, rosto por rosto, cada par de olhos, todos os sorrisos mirados na minha direção. Nenhum deles era de Marc. Ele nem estava aonde eu imaginava que tinha estado. Podia jurar tê-lo visto indo até lá com o canto dos olhos quando tinha descido do palco. Mas agora sabia que tinha imaginado. Devia ter seguido o cara errado, gastando energia em cada movimento consciente para nada.
Marlee pareceu chegar até mim no mesmo momento em que Lucy, ainda que tivesse vindo de vários metros a mais de distância. Mas, quando viu que ela queria falar algo, esperou do nosso lado.
"Anna ainda está se recuperando," Lucy explicou num tom só alto o suficiente para eu mesma ouvir. Ela fez menção de me indicar um caminho e nós três saímos de perto da mesa. Não devia querer falar de Anna tão perto dela e eu queria muito ouvir. "Ela é nossa grande vitória."
Só levantei as sobrancelhas, e ela entendeu como um incentivo para continuar.
Nós paramos a alguns metros de lá e ela se virou para me olhar, Marlee ainda do nosso lado. "Ela vem de um caso terrível, sofria abusos diários em casa," tentei não abrir muito a boca de surpresa, enquanto meus olhos voltavam a buscá-la na festa. "Nós tentamos durante anos convencê-la a denunciar e finalmente conseguimos."
Continuei olhando para ela, que tinha se sentado em volta da mesa, seu cabelo chamando mais atenção do que qualquer movimento que fazia.
"Ela só tem 16 anos," Lucy continuou. "E é uma grande fã sua," me virei para olhá-la. "Eu não sei nem como agradecer, Alteza."
"E eu que preciso agradecer por dedicar sua vida para ajudar meninas como ela."
"E meninos," ela completou. "Qualquer ser humano pode ser vítima de abuso," mesmo que falasse algo no qual realmente acreditasse, seu rosto ameaçou fechar. Mas logo ela voltou a sorrir. "Sabe, preciso agradecer por mais do que só suas doações," continuou, sua expressão ganhando uma luz totalmente nova. "Sua seleção tem sido nosso passatempo lá na organização. Temos até um bolão para quem você vai escolher."
Na hora quis procurar Marc de novo, mas só sorri. "No castelo também," falei rapidamente, rindo para mim mesma.
"Estávamos ansiosas para ver quem você traria," Lucy disse.
"Sinto lhe desapontar."
"Não, pelo contrário. Vi você explicando lá fora que não queria tirar atenção da causa," seus olhos subiram até o topo da minha cabeça, logo voltando a encontrar os meus com um sorriso caloroso abrindo em seus lábios. "A senhorita realmente merece a tiara. Deve ser por isso que America gosta tanto de você."
Aquilo me pegou de surpresa.
"Ela gosta?"
"Não sei se sabe, mas fui criada da America quando ela mesma fazia parte da Seleção," Lucy explicou, orgulhosa. "Ela e Marlee," completou, quando essa pigarreou.
"Apenas o começo da mudança," Marlee comentou rapidamente, seus olhos e lábios se perdendo em uma lembrança que só Lucy pôde acompanhar.
Eu já tinha ouvido falar dessa expressão, apesar de indicar um momento histórico de outro país antes mesmo de eu nascer. Segundo meus estudos, o país de Illéa estava prestes a quebrar, tanto economicamente, quanto pela insatisfação do povo. Vinha de um longo período de péssimos governos e uma ditadura fortemente mascarada pelo luxo da realeza. A Era da Escuridão, como era casualmente apelidada. E, segundo meu pai, se não fosse por eles, Illéa agora estaria completamente excluída do resto do mundo, fechada dentro de si mesma.
Não era de se espantar que o povo amasse tanto seus regentes hoje em dia.
"Desculpe-me," pedi a Marlee, quebrando o rápido silêncio que tinha se instalado sobre nós. "Precisa falar comigo?"
"Com Lucy, na verdade," ela disse. "Mas preciso lhe parabenizar, Alteza. Seu discurso foi bastante tocante." Era inevitável sorrir pelas suas palavras. "Tenho certeza de que sua mãe ficaria extremamente orgulhosa." E então sentir meu sorriso congelar no rosto.
Eu sabia que seria arriscado ter falar de minha mãe e ela não era a primeira pessoa a mencioná-la. Em volta da mesa da organização, eu já tinha ouvido diversos comentários. Mas esse foi o primeiro que me acertou na garganta como um golpe, me roubando o ar por um segundo.
"Obrigada," falei, quase como uma palavra estrangeira.
"Se precisar de qualquer coisa, pode me chamar," Lucy me garantiu, apesar de esse ser, de certo modo, o trabalho de Marlee.
Agradeci de novo, logo as deixando a sós.
E então, pela primeira vez desde que tinha entrado naquele salão, eu estava sozinha. E nem sabia direito para onde iria.
Mas como alguém que tinha feito um discurso há meia hora e voltado a usar sua tiara de diamantes, não fiquei só por muito tempo. Dois passos para longe de Marlee e Lucy e um grupo de pessoas se abriu para falar comigo.
Reconheci alguns de nomes, outros de tê-los visto em festas internacionais. Um por cento, as palavras pairavam na minha cabeça enquanto eles me cumprimentavam e parabenizavam. Cada um deles fez questão de elogiar minha mãe, a memória dela ou o que eu tinha falado dela.
Levantei meu queixo logo na primeira vez, sorrindo o melhor possível. Talvez meus olhos não passassem a expressão que eles queriam, mas não poderiam dizer que não fui simpática.
Assim que pude, lhes desejei uma festa ótima e dei outros passos para longe, tentando focar mais em seus nomes do que no que tinham me falado.
Dois outros casais já esperavam que eu cruzasse seus caminhos para virem falar comigo, o que os obrigou a decidir entre si quem começaria.
O primeiro ganhou pontos comigo por não só não ter mencionado minha mãe, como ter passado a maior parte do tempo elogiando medidas britânicas de governo. Dois homens que se apresentaram como empresários e maridos, mas o nome de sua companhia eu desconhecia completamente. Tentei memorizar para pesquisá-la depois, mas, assim que terminei de falar com o segundo casal, já não conseguia me lembrar.
E esses, sim, fizeram questão de me lembrar de uma vez que tinham viajado para a Inglaterra e tiveram a chance de ver minha mãe de longe. Como ela era linda, como era elegante! Como ficaria orgulhosa de saber que eu tinha crescido tanto e era tão encantadora!
Enquanto falavam, senti um impulso de pedir para que especificarem o dia em que tinha sido, talvez tentar me lembrar do que eu mesma fazia então. Mas, por sorte, resisti. E quando me afastei, pude me concentrar na vontade que sentia de colocar alguma coisa alcoólica na boca.
Meus próximos passos foram menos interrompidos, pois fiz questão de me ocupar com meu vestido. Ajeitei coisas inajeitáveis, puxei minhas mangas levemente para a frente, até chequei minhas unhas. Teria sido uma ótima distração, se não tivesse acabado por mirar o anel grande e brilhante que pendia da minha mão direita.
Não. Eu não ia pensar nele. Já tinha me decidido usá-lo, era o suficiente. Qualquer outra análise das minhas razões poderia vir outra hora, outro dia, em outro lugar.
Abaixei as mãos e levantei o rosto, buscando America e Maxon. Eles estavam de pé ao lado da nossa mesa, conversando com pessoas que eu não conhecia. Pensei em ir até eles, dividir o fardo de ter que conversar com absolutamente todas as pessoas que respiravam dentro daquele salão, mas fui parada antes que tivesse a chance.
Eu conhecia a menina que se colocou na minha frente. Talvez não tão bem quanto ela achava que me conhecia, pois logo colocou os braços à minha volta, me abraçando. Era uma amiga de Penelope, princesa da Itália. Eu a tinha visto uma vez, se foi muito, e em uma festa aqui mesmo, em Angeles. E ainda estava exatamente como eu me lembrava, falando sem parar sobre coisas inúteis e fazendo comentários claramente mentirosos.
Julietta era filha de algum empresário rico, descendente de italianos, que dividia seu tempo em achar que era velha o suficiente para se chamar de adulta e nova demais para ter que lidar com responsabilidades. Não tinha me surpreendido Penelope ter ficado tão amiga dela tão rápido, mas hoje em dia até ela não a suportava.
Ela não precisou de mais do que algumas palavras minhas para discursar sobre todas as suas impressões sobre aquele evento, e eu comecei a sentir falta das pessoas que insistiam em tentar adivinhar como minha mãe se sentiria.
Enquanto ela falava, percorri meus olhos pelo salão atrás dela. Os convidados ainda olhavam os itens do leilão, alguns se arriscando a tentar ganhar do que eu pagaria. Mas foi um em especial que chamou minha atenção.
Ele me sorriu antes mesmo de eu me dar conta de que era Marc. Até levantou seu copo no ar, enquanto eu me contentava em retornar o cumprimento.
Mas demorei demais para reconhecê-lo e reagir. Quando finalmente estava abrindo o sorriso, ele já tinha desviado os olhos.
"Julietta, desculpe-me, mas tem uma pessoa que eu preciso cumprimentar!" Não sentia a menor obrigação de agradá-la, mas tampouco queria ser mal educada. Só não lhe dei foi tempo para me contestar.
Mirei aonde Marc estava com certa determinação, me recusando a ser parada no caminho outra vez. Olhava fixamente para ele, cada passo uma pergunta. O que ele tinha achado do discurso? Tinha feito algum sentido? Tinha feito alguma diferença? Ele me via agora como mais um por cento ou como ele?
Quando me aproximava, percebi que ele não estava sozinho, conversava animadamente com um cara inconfundível.
Hans Lied, ex-empresário, atual primeiro ministro alemão, também creditado pela popularidade dos seus atuais monarcas depois de uma época em que o povo pareceu quase querer voltar à república. Se ele tinha sido um gênio quando tomava conta das empresas ferroviárias de toda a Europa, agora então era uma lenda. Foi impossível não me perguntar se Marc tinha alguma noção de com quem estava falando. Ou até mesmo o que eles poderiam ter em comum.
"Mas é exatamente por isso que ele se matou!" Marc falava quando eu me aproximei deles. Ainda estava consideravalmente longe, mas ele fazia questão de falar alto. "Se, depois de passar quase setenta anos dividindo sua vida em conceitos e dizendo que o trabalho de um ser humano era pensar e produzir novas formas de vida, ele continuasse aceitando viver naquelas condições, seria um imenso hipócrita!" Hans riu de um jeito até estranhamente orgulhoso, parecendo concordar com ele. "E eu nunca tive a chance de conhecê-lo pessoalmente, mas o que sei de Gilles, ele era qualquer coisa, menos hipócrita."
Hans colocou sua mão no ombro magro de Marc como um pai faria na formatura de seu filho. Estava prestes a falar alguma coisa, apontando para ele, quando me notou.
"Menina, você fez um bom trabalho," ele disse, mostrando todos seus dentes para mim no seu melhor jeito simpático. "Como é que você encontrou um cara que conhece Gilles? Nem meus filhos se dispõem a ler os livros dele."
Sorri para ele. Tinha imaginado que, a próxima vez que encontraria Marc, o ouviria me falando o que tinha achado de todo o discurso e estava até bastante desapontada por não ser assim. Mas gostava de ver que Hans tinha apreciado tanto uma conversa com ele.
"Seus filhos são brilhantes, Lied, e você sabe disso," falei, fazendo ele rir de novo, a ponto de jogar a cabeça para trás. Lancei um olhar rápido na direção de Marc, logo voltando a mirar Hans.
Devia estar imaginando, mas era quase como se ele tivesse sorrido com seus olhos, de um jeito pleno e inédito. Se me arriscava considerar aquilo, podia jurar que tinha visto orgulho em seu rosto.
Não. Estava imaginando. Era só o que eu queria ver.
"Está certo, eles são," Hans deu de ombros, o resto da sua risada rouca morrendo na boca. "Mas ainda assim, parabéns. Quando ouvi sobre a sua Seleção, tenho que admitir que achei que seria uma grande baboseira. Mas agora vou até começar a acompanhar, não que vá durar mais muito tempo, não é, Marc?" Ele piscou um olho só para Marc, lhe dando um soco rápido e aparentemente pesado no ombro.
Do outro lado da conversa, suas palavras levaram meu coração à garganta em um segundo.
"Não, ele não-"
"Não vou ganhar," Marc me interrompeu. Ele tirou seus olhos de Hans e os mirou em mim só por um instante. "Não sou um selecionado," corrigiu rapidamente.
Hans o olhou estranho, inclinando a cabeça de lado.
"Ele trabalha no castelo,"expliquei, sem saber se era o que Marc falaria.
Mas ele acabou com a minha dúvida logo em seguida. "Na cozinha do castelo," completou. "Por enquanto."
"Nós somos só amigos," garanti.
"Não faço parte da Seleção."
Os olhos de Hans ficaram indo de Marc para mim e de volta para ele sem parar. Até que cansou e deu de ombros.
"Se você diz," falou, ainda desconfiado, como se existisse algum jeito de não ser verdade.
"Eu acho que vou pegar outra dose," Marc disse, balançando seu copo de leve no ar. "Quer alguma coisa?"
Nossos olhos se encontraram de novo. "Qualquer coisa," respondi, sem conseguir pensar naquele momento em algo específico.
Ainda conseguia sentir meu coração na base da minha garganta, por mais idiota que fosse eu me preocupar tanto assim. Ainda mais com alguém como Hans.
Assim que ficamos sozinhos, ele se aproximou de mim. "Ele não pode fazer parte?" Perguntou, sua expressão séria, como se realmente acreditasse naquela possibilidade. "Duvido que qualquer outro seja tão inteligente quanto ele."
De fato, na hora em que falou isso, tentei imaginar cada um dos oito que me esperavam no castelo em seu lugar, na frente de Hans, mantendo de igual para igual uma conversa que eu só podia apostar ser sobre filosofia. Uma conversa que, se tivesse que admitir, nem eu conseguiria acompanhar.
"Você ficaria impressionado," respondi, acreditando de verdade que pelo menos alguns não teriam problemas.
O que me deixava impressionada, em compensação, era Marc, de todas as pessoas do mundo, ter se enturmado com ele. Hans era mais do que um por cento, vinha de uma longa família rica que, à primeira vista, pareceria extremamente conservadora e preconceituosa. Mesmo que eles fossem das minhas companhias favoritas em festas internacionais e jamais excluíssem qualquer pessoa, nunca imaginaria Marc lhes dando uma chance sem precisar de incentivo. Sem contar com conseguir falar sobre filósofos cujos livros eu não conseguia ler mais do que duas páginas.
"Se você diz," Hans não fez a menor questão de esconder seu desapontamento, mas logo abriu um sorriso. "Olha Marjorie ali, vou falar um oi para ela. Mande notícias a seu pai, estamos todos torcendo por ele!"
Sem me deixar responder, ele deu um tapinha no meu ombro e se afastou. Ele sabia melhor do que ninguém que eu preferia não falar da minha mãe, mas naquele momento era estranho também pensar em alguém ter que torcer pelo meu pai.
Assim que resolvi respirar fundo e deixar aquele assunto enterrado no fundo da minha cabeça, recebi dois toquinhos no meu ombro.
Era outra mulher e o que deveria ser seu marido.
"Olá, Alteza. Eu sou Adrienne Rooney e esse é Stuart. É um prazer te conhecer," ela esticou a mão para eu apertar, que aceitei só para não a encabular.
"O prazer é meu."
"Sua mãe deve estar orgulhosa," o cara disse, levando logo em seguida uma cotovelada indiscreta da mulher na costela.
"IT Estaria orgulhosa" ela corrigiu, correndo para se despedir e se afastar.
Não estava nem a um metro de distância, quando já a ouvia reclamando com ele pela sua falta de sensibilidade.
Podia ver outras pessoas querendo se aproximar, mas Marc foi o primeiro, me oferecendo uma taça de champanhe.
Mas eu peguei foi o copo de uísque da sua outra mão e tomei um gole, deixando que a bebida queimasse minha garganta e reconhecendo na hora o favorito de meu pai.
Quando lhe devolvi, ele já não estava mais surpreso, só parecia se divertir, um sorriso torto no rosto.
"Você tem ideia de que cada garrafa do que você está bebendo custa mais de cem dólares?" Perguntei, agora sim aceitando o champanhe.
Ele riu. "Ouvi dizer que uma princesa aí está pagando pelas despesas da festa, quis aproveitar." Ainda fez questão de piscar um olho só para mim.
Eu só revirei os meus. "Só os itens do leilão," o corrigi. "Mas é, talvez as despesas fosse um gesto mais significativo."
"Se não desse para pagar pela festa com o dinheiro do leilão, esse seria um evento bastante inútil."
Dei de ombros, já que ele tinha razão.
Aquela era a hora de falar do discurso. Respirei fundo, tentando pensar em por onde começar, quando vi que duas meninas se aproximavam na minha esquerda. Até que estivessem na nossa frente, friquei torcendo para que desviassem o caminho. Mas não tive essa sorte.
Para minha surpresa, Marc se colocou ao meu lado, sua mão livre deslizando pelas minhas costas e me segurando pela cintura, movimento que fez ser impossível eu entender as primeiras palavras que elas me falaram.
Mas como não devia ser nada muito extraordinário, eu só engoli a seco, decidi prestar atenção e forcei um sorriso.
Logo me arrependi. De todas as pessoas que quiseram mencionar minha mãe, elas foram as piores. Parecia que já nem sabiam quem eu era, porque estávamos ali. Na cabeça delas, no instante em que eu teoricamente a liberei como assunto, não existiria outra coisa a não ser minha mãe. O que ela tinha feito em vida, como teria orgulho de mim, essa parte era ruim. Antes, até achava que era terrível ter que ficar ouvindo estranhos tentarem adivinhar a relação que eu tinha com a minha mãe.
Mas isso não era nada. E só percebi quando uma delas, Lirah, historiadora, me fez sentir meu coração despencando dentro de mim ao resolver falar da sua doença
A primeiro instante, achei que estava ficando louca. Ela não podia simplesmente estar me falando sobre o tipo de câncer que minha mãe tinha tido, o que tinha ouvido falar que tinha acontecido dia após dia dentro do hospital. Não era possível que aquilo estivesse acontecendo! Tínhamos tomado o maior cuidado para que não tivéssemos detalhes sendo publicados e discutidos enquanto ela estava viva e era ainda pior tê-los jogado na cara quando já tinha morrido! E mesmo que toda a nossa tentativa de privacidade não tivesse funcionado, me era inconcebível aceitar que ela acreditava ser apropriado falar dela para mim, quando eu mal conseguia me lembrar de seu nome.
Illéanos. Illéanos que não sabiam o limite e achavam que tudo era casual e aceitável. Illéanos que dispensavam a educação e o respeito por aqueles que eram forçados a terem uma vida pública.
Até Marc me segurou mais firme pela cintura, enquanto a menina ainda falava de outros tipos e detalhes do câncer que me faziam querer estremecer. Ele abriu a boca para falar alguma coisa, mas eu fui mais rápida.
"Desculpe, mas como você se chama mesmo?" Eu a cortei.
Ela pareceu morder a língua por um segundo. Mas logo piscou algumas vezes, respirando fundo e terminando por abrir um sorriso. "Lirah," respondeu. "Lirah Banks."
"Lirah," comecei, com toda a intenção de acabar explicando para a cabecinha dela que não estava com vontade de discutir aquilo ali.
Ou em lugar algum do mundo!
"Você não me conhece, Alteza, mas acabaria conhecendo de qualquer jeito," ela disse, me atrapalhando.
Sua amiga ao seu lado parecia satisfeita, vitoriosa com o ar petulante que lhes preenchia.
"Como acabaria por conhecê-la?" Fiz questão de tentar levantar minimamente o nível da minha própria linguagem, torcendo que fosse o suficiente para ela entender que não tinha espaço entre nós para ela se sentir superior.
Talvez eu estivesse imaginando. Talvez todo o confronto que eu sentia vindo delas estivesse só na minha cabeça. Sabia que podia ter pouca paciência para pessoas que insistiam em assuntos sobre os quais eu não queria falar normalmente. Mas também era inegável que elas estavam passando dos limites.
A tal Lirah fez questão de levantar o rosto na minha direção antes de responder, independente da sua pequena estatura. "Eu trabalho com Alaric Harrison," ela disse, me dando vontade de rir da coincidência de tudo aquilo. "E esse anel," ela apontou para a mão que segurava minha taça de champanhe, "IT eu que fiz."
Senti o chão fugindo de meus pés e fui obrigada a me encostar em Marc, que sentiu que eu precisava do apoio extra, discretamente chegando mais perto de mim. Qualquer vontade que pudesse ter antes de rir desapareceu tão subitamente quanto tinha aparecido, e eu fui obrigada a trocar a taça de mão.
"Aliás, eu adoraria poder vê-lo de perto," ela deu um passo na minha direção, enquanto meu instinto me levava a esconder a mão atrás das costas.
Mas antes que pudesse impedi-la, ela se deu o direito de pegá-la e a levá-la para perto do rosto para examinar.
"Uau," soltou, virando meu dedo para ver até por baixo. "É ainda mais bonita do que eu me lembrava.
Eu puxei a mão de volta assim que tive a chance. "É," falei rapidamente.
Ela pareceu endireitar suas costas novamente, mas não quis se afastar. "Então Alaric estava certo? Ele está mesmo ganhando?"
Com o canto dos olhos, vi Marc levar o copo à boca e tomar alguns goles grandes. Sua amiga olhou para ele, mas Lirah estava mais concentrada em ouvir minha resposta.
"Ele está indo muito bem, sim," foi o que eu respondi, tentando calcular na minha cabeça a saída mais fácil e elegante possível.
"Ele deve ter ficado terrivelmente decepcionado quando descobriu que não poderia acompanhar você até o evento," ela continuou, seu tom extremamente forçado. "Depois de todo o trabalho que teve!"
"Ele poderia me acompanhar," a corrigi. "Mas eu não quis."
Ela inclinou a cabeça de lado, estudando meu rosto, apertando seus olhos já pequenos e exageradamente maquiados. "Sua mãe realmente ficaria orgulhosa de você, Princesa," se essa fosse a última vez que eu tivesse que a ouvir a mencionando, estaria feliz, "parecendo já uma rainha, das cabeças aos pés, e ainda a homenageando na frente de todos. Ela ficaria muito emocionada de poder presenciar esse momento e de saber que você ainda se lembra dela."
Tive que me segurar para não a empurrar para trás. Ou talvez fosse a mão de Marc na minha cintura que tivesse se firmado um pouco mais.
Depois de todos os jeitos que ela tinha falado da minha mãe, ainda tinha a coragem de sugerir que eu não me lembrava dela?
Era isso então? Era por isso que todo mundo insistia em falar dela? Eles achavam que eu tinha chegado a esquecê-la? Que, toda manhã, assim que eu acordava, eu não jurava, nem que por cinco segundos, que ela ainda estava viva, que ainda podia ir até o seu quarto, a encontrar lendo um livro na janela, começando seu dia com uma xícara de chá e um romance? Eles realmente achavam que em algum momento da minha vida eu tirava a imagem dela da minha cabeça? Que ela já não estava mais no fundo da minha mente, eternamente presente em qualquer decisão que eu tomasse? Eles realmente achavam que eu preferia não falar dela porque não queria me lembrar dela? Será que nunca tivesse passado pela cabeça deles que talvez eu simplesmente não conseguisse falar dela?
"Não existe jeito melhor do que se lembrar dela do que com seu anel, não é?" Lirah perguntou retoricamente. "Mesmo que somente com uma réplica," ela fez questão de pegar minha mão outra vez, parecendo ter a intenção de soltá-la em seguida.
Mas algo no anel a chamou atenção, derretendo a expressão que antes ela mantinha intacta e acionando um alarme na minha cabeça.
"Você tem razão," eu disse, puxando minha mão de volta antes que ela falasse mais alguma coisa ou notasse algum detalhe em especial. "Não existe jeito melhor de honrar sua lembrança. Agora, se me dá licença, vi alguém que preciso cumprimentar."
Desviei dela na hora, mirando a direção na qual estava virada, bem mais preocupada em sair de perto dela do que em chegar a outro lugar. Estava tão focada em me afastar, que nem me dei conta de que deixava Marc para trás. E quando finalmente percebi, achei melhor continuar do que o esperar.
Não queria nem pensar no que ela poderia ter visto. Não queria nem cogitar o que poderia tê-la feito apertar os olhos daquele jeito. Não aguentaria me perguntar o que ela poderia estar pensando agora, se estava chegando a alguma conclusão, qual o tamanho do risco que eu tinha corrido. Andava com a mão apertando minha perna de lado, como se aquilo fosse ajudar a fazer o anel desaparecer. Péssima ideia. De todas as que eu já tinha tido na minha vida, aquela era a pior.
Apertava meu passo a cada metro, deixando para trás vários convidados que pareciam ainda querer uma chance de falar comigo. Andava tão depressa que logo cheguei à entrada, passei pelas portas sem questionar e dei de cara com o hall de entrada, agora praticamente vazio. Podia ouvir saltos vindo da porta de saída na minha direção e, antes que conseguissem subir alguns degraus da escada e me avistar, entrei na primeira porta aberta.
Armário de casacos. Perfeito.
Passei pela divisão que existia para deixar os convidados do outro lado e fui me esconder atrás de algumas fileiras de casacos grandes, pretos e desnecessários para o clima de Angeles.
Idiota. Eu tinha sido extremamente idiota. E o pior era que ela estava certa. Lirah ou sei lá qual era o nome dela estava certa! Eu realmente tinha achado que valia a pena o risco, valia a pena usar aquele anel logo naquela noite, que seria um jeito de homenagear a minha mãe. Mas se ela percebeu-
Se ela conseguiu ver-
"Lola."
O som do meu nome me fez dar um salto e acelerou tanto meu coração, que eu pude senti-lo no meu ouvido.
Mas era só Marc.
"O que você tá fazendo?" Ele perguntou, se aproximando de mim.
Só percebi que tentava tirar o anel quando segui seus olhos para as minhas próprias mãos. Meus dedos já estavam vermelhos, tanto o que o usava, quanto os que sofriam para conseguir fazê-lo mexer poucos centímetros.
"Eu preciso tirá-lo," respondi, logo voltando à tarefa. Não importava quanta força fazia, meus dedos simplesmente não conseguiam mover o anel mais nem um pouco. Ele tinha chegado à quase metade do meu dedo e se recusava a deslizar. "Eu devia ter usado a réplica. A réplica é maior, ela cabe melhor."
Marc ameaçou dar um passo na minha direção, e, por puro nervosismo, meu instinto foi me afastar. Mas ele insistiu, se aproximando com cautela e franzindo sua sobrancelha, enquanto focava seus olhos nas minhas mãos e as tomava nas suas, o que eu quase não deixei. Ele esperou alguns segundos só as segurando, e, depois de eu finalmente voltar a respirar fundo e me acalmar, soltou de uma e fez o anel deslizar pelo meu dedo, com certo trabalho, mas até sair.
E, por mais estranho que fosse, assim que ele o pousou na palma de minha mão, senti quase uma obrigação de colocá-lo outra vez.
Por alguns minutos só conseguia ouvir nossa respiração. Podia sentir Marc me observando, esperando para ver se eu estava mesmo mais calma ou acabaria jogando o anel do outro lado da sala. Eu o focava tão fundo na minha mão, tão fixamente, que até senti uma pontada de vontade de descontar nele minha frustração. Nem que fosse só para ver o que aconteceria.
Mas, quando levantei a cabeça, não encontrei Marc com medo da minha reação. Ele me observava, sim, porém de um jeito completamente diferente. Seus olhos percorriam meu rosto e demoraram para encontrar os meus.
Mas, assim que ele percebeu que já o olhava de volta, Marc deu um pequeno passo para trás.
"Melhor?" Perguntou, me obrigando a ter que parar e pensar para me lembrar do que ele poderia estar falando.
Nesse tempo, aproveitei para suspirar fundo, fechando o punho no meu anel. "Bem melhor," respondi, apesar de sentir um nó na minha garganta. "Obrigada." Até minha voz parecia ter dificuldade de sair.
Ele só concordou com a cabeça, suas sobrancelhas ainda franzidas, talvez ainda pensando no porquê de tudo aquilo ter acontecido.
Eu me deixei cambalear para trás até onde eu sabia que estava a parede, abrindo distância entre nós. Ele pareceu entender de vez que eu já estava bem, aproveitando para sair da minha vista por alguns segundos, só o suficiente para voltar com um copo de uísque e um de champanhe em cada mão.
"Quer ficar um tempo aqui?" Perguntou, quando já estava na minha frente, minha taça passando dos dedos dele para os meus.
Meus olhos pareceram encontrar as bolhas da bebida interessantes demais por alguns segundos para responder na hora.
Acabei os desviando para o chão e respirando fundo. "Me esconder aqui?" Perguntei, levando a taça meio caminho até a boca. Dei de ombros, desistindo também de beber.
Parecia ser exatamente o que Marc queria ouvir, pois ele não hesitou em abrir o paletó e afrouxar a gravata quase a ponto de tirá-la.
Era impossível não sorrir, nem que de um lado só do rosto, quando ele veio até o meu lado, abrindo os primeiros botões da camisa, e se sentou no chão como se estivesse em seu quarto.
Não existia nada no mundo que eu quisesse fazer mais do que me sentar do lado dele. O chão nunca tinha me parecido mais confortável. Mas não conseguiria segurar meu vestido quando uma mão se ocupava da taça e a outra ainda guardava o anel.
Abri a mão para olhá-lo, considerando se deveria colocá-lo outra vez, quando Marc estendeu a sua.
"Deixa que eu guardo," falou, adivinhando o que eu tinha estado pensando.
Mas eu não podia simplesmente entregá-lo. Não sem antes contar de seu valor. Não sem-
"Eu sei que é o verdadeiro," ele disse, fazendo aspas no ar com as duas mãos, "o que quer que isso signifique. Não vou perder."
"Como você sabe?" Ao invés de lhe entregar fechei minha mão outra vez, a trazendo ao peito.
Lirah! Foi a primeira coisa que eu consegui pensar. Lirah tinha percebido! Quando eu o deixei com ela, devia ter falado! Ela tinha mesmo conseguido ver a diferença! Eu era tão burra! Por que eu tinha que ter decidido usá-lo logo hoje? Por que eu simplesmente não-
"Você acabou de falar," Marc interrompeu meus pensamentos, me dando um alívio momentâneo.
Seguido de pânico outra vez. "Eu falei?"
Ele fechou os olhos, confirmando como se fosse óbvio.
Tentei vasculhar minha própria memória, mas não conseguia me lembrar de quando eu poderia ter falado aquilo para ele. Não sabia se tinha sido há dois minutos ou dois dias. Não sabia nem se ele estava inventando.
Mas sua mão voltou a se esticar na minha direção e, conclui, era indiferente.
Com alguma relutância, acabei por lhe entregar o anel, que ele logo levou ao bolso de dentro do paletó. Enquanto concluía o trabalho deixando o copo na sua frente e puxando as duas mangas para os cotovelos, eu segurei a saia do vestido até conseguir me sentar.
"Você vai estragar seu terno," falei, fazendo ele bufar uma risada.
"Estou preocupadíssimo," respondeu, tomando um gole do uísque e voltando a apoiá-lo no chão.
"Não, não imagino que esteja," não estava com muito ânimo para protestar, e ele deve ter percebido, pois inclinou seu rosto na minha direção, mas não respondeu.
"Por que você correu?" Ele perguntou, ao invés. "Quando ela falou do anel, quero dizer. Você roubou ele de algum lugar?"
Eu só tinha a intenção de bufar uma risada, mas, uma vez que eu mesma me ouvi, tive vontade de rir mais ainda. Porém, não demorou para me acalmar de novo, quando percebi que a coincidência de tudo aquilo estava mais para deprimente do que engraçada.
"É sério," Marc insistiu. "Qual a história desse anel? Por que alguém faria uma réplica e qual o problema com o verdadeiro?"
"Olha só quem está fazendo as perguntas agora," provoquei, querendo cutucá-lo no ombro.
Até olhei mais na sua direção, mas acabei achando melhor deixar quieto.
"A réplica que aquela adorável moça fez-"
"Não tem câmera aqui, Lola, pode falar a verdade."
"Sinta o sarcasmo, Marc," pedi, tendo que me segurar para não rir demais.
Ele pareceu que ia retrucar, mas o máximo que fez foi segurar meu olhar por um tempo. Depois revirou os olhos.
"A réplica eu ganhei de presente," continuei, sentindo todo meu corpo desanimar só de voltar ao assunto. "Alguém achou que eu precisava me lembrar de sua existência dele hoje."
"Alguém?"
"Manchester," respondi por instinto. "Alaric," corrigi. "O cara que a moça adorável mencionou, Alaric Harrison."
"O selecionado que ganhou a prova dos balões."
Até me afastei um pouco da parede para olhá-lo melhor, logo voltando a me apoiar. Depois tive que desviar o rosto para os casacos que me tocavam no ombro até conseguir parar de sorrir.
Aquilo era idiota, e foi o que eu fiquei repetindo na minha cabeça. Mas só a mínima demonstração de que eu não era completamente irrelevante da parte dele era uma novidade. Antes daquele momento, talvez duvidasse se ele pelo menos sabia o meu nome.
Sobrenome, pelo menos.
"Tá, ele te deu o anel," se não fosse por Marc mesmo me lembrando, nunca voltaria a explicar.
"Ele achava que era o presente perfeito," continuei, balançando a cabeça para mim mesma. "E talvez fosse. Fazer uma réplica de um anel perdido que era da minha mãe deveria ser o presente perfeito."
"Mas?"
Eu suspirei, levantando o rosto e deixando meus olhos se perderem pelos casacos que eu via debaixo. "Mas ele não se perdeu sozinho. Alguém o escondeu."
"Alguém."
"Eu," falei rápido, com medo de acabar desistindo e voltando ao caminho mais fácil da mentira. "Eu o escondi. Eu queria que acreditassem que estava perdido. Eu declarei que estava perdido. Na verdade, meu pai, mas mesmo assim."
"Por quê?"
Eu sabia que ele perguntaria. Só queria ganhar tempo para me preparar emocionalmente.
"Porque eu sou a pessoa mais egoísta do mundo," foi minha resposta.
Honestamente, estava sendo vaga de propósito, queria que ele perguntasse. Mas era seu silêncio que me desafiava a ir até o final.
"Não escondi o anel porque eu gosto dele. Nem por uma questão de Estado. Não escondi porque isso garantiria a segurança do meu país. E sim porque não queria que meu primo o encontrasse. Skar Baird, que, por coincidência, é quem assumiria se acontecesse alguma coisa e minha Seleção desse errado."
Tinha me mantido até então encarando a parede do outro lado da sala, mas percebi que Marc estava assentindo e acabei virando o rosto na sua direção.
Nossos olhos se encontraram e, por um segundo, achei que ele fosse desviar e desistir daquele assunto.
"Por que ele quer o anel?" Ele quis saber, ao invés.
Voltei a virar o rosto para a frente, minha mão girando a taça de champanhe a ponto de ameaçar derrubar um pouco no carpete.
"É valioso?" Ele insistiu.
"O único valor é ter sido da minha mãe," respondi, dando de ombros. "O que já é um valor considerável, ainda mais tanto tempo depois de ela-" eu mesma me cortei, cobrindo minha interrupção com um gole de champanhe. "Ele não se importa com o valor," acabei completando. "Não é como se fosse vendê-lo ou guardá-lo para mostrar que era proprietário de algo tão raro."
"Por que então?" A pergunta de Marc me fez olhar por cima do ombro para ele.
Ou talvez fosse minha própria vontade de ver como reagiria.
"Ela deixou o anel para ele," falei cada palavra como um passo que eu dava e não poderia voltar. "Eles eram meio próximos."
"Meio próximos?"
"Muito próximos." Ele precisava mesmo me fazer falar? "Apostaria que ela gostava dele mais do que de mim."
Deixei que ficássemos em silêncio, mirando os olhos no chão e contando os segundos que esperava para continuar. Não sabia se realmente apostaria naquilo e mesmo que houvesse a oportunidade, eu preferia nunca saber. Ou até mesmo nunca admitir.
Mas aquele era o momento para ele me falar que não era verdade. Já tinha tido aquela conversa com Clare e ela tinha me garantido que era impossível minha mãe gostar mais de Skar do que de mim. Marc, em compensação, parecia não sentir a menor necessidade de me confortar com uma certeza que ele não poderia ter.
Era estranho, desconfortável, mas terrivelmente agradável não ter que ouvi-lo jogando palavras vazias para cima de mim.
A próxima vez que respirei fundo foi a primeira em que realmente pude sentir o ar me preenchendo.
"O anel era para ser dele e eu o escondi."
"Eu entendi."
"Poderia falar que eu não sabia o que estava fazendo na época, que era nova demais, mas já faz bastante tempo que eu ganhei consciência do que me levou a escondê-lo. E ainda não fiz nada," virei o rosto na direção de Marc, que agora mirava o chão. "Eu sou tão egoísta que nem me deixo sentir culpa. Me convenço de que não tem nada de errado e nem penso no anel. Eu realmente o coloquei hoje como uma vitória." Meus olhos caíram em minha mão, agora só marcada por ele. "Finalmente eu poderia vesti-lo. Finalmente não teria que me esconder, conseguiria me explicar. E embaixo de cada nariz que me via como inocente, eu usaria o anel da minha mãe. Minha mãe." Tinha colocado força extra para falar a palavra e mesmo assim pareceu bem mais difícil do que o resto.
Mas eu não estava só contando a Marc. Era a primeira vez que eu mesma ouvia aquelas palavras, dentro e fora da minha cabeça. E elas não vinham sozinhas, traziam lembranças da minha mãe com Skar, dele procurando o anel depois, do desespero de não encontrá-lo, de como me culpava por tudo. Como gritava comigo por não conseguir mais tê-lo, por não conseguir mais vê-la.
E eu em silêncio, de pé na sua frente, seu dedo a centímetros do meu nariz, mas minha boca fechada. Eu já o tinha escondido. E por maior a tempestade que ele tivesse feito à minha volta, por pior que tivesse sido a tormenta dentro de mim, continuaria em silêncio. Ele se descabelou e eu me agarrei à mentira que já tinha criado. Porque eu queria acreditar nela bem mais do que me sentia culpada.
"Até mesmo agora," abri os braços, quase acertando Marc, "que a menina lá deve ter percebido que era o verdadeiro, eu ainda estou torcendo para que não descubram. Não porque eu não quero admitir, mas porque eu não quero me desfazer dele. Já me acostumei com o segredo e o peso dele não me incomoda tanto quanto deveria. Eu só queria poder ficar com ele," meus olhos foram até o bolso do paletó de Marc e ele percebeu, logo tirando o anel de lá para me devolver.
Mas eu balancei a cabeça, negando e fazendo ele guardar outra vez.
Nós ficamos em silêncio por alguns segundos, não porque eu não queria falar mais nada, mas porque não sabia como continuar.
A não ser-
"Eu sou uma péssima pessoa."
Se antes ele só prestava atenção no que eu falava, agora Marc tinha levantado a cabeça de uma vez, como se tivesse levado um choque.
"Isso não te faz uma péssima pessoa," sua voz direta contrastava com a minha que mal parecia conseguir sair pela boca. "Era sua mãe, você quer se lembrar dela. Está no seu direito ser egoísta."
Bufei uma risada, escutando o que ele falava bem mais do que queria admitir.
"Eu imaginaria que a pessoa que eu ouvi discursando hoje merece roubar toda a jóia da coroa e ainda não ser considerada egoísta," ele completou, fazendo ser impossível eu não sorrir.
Tá, mais do que sorrir. Tive que fisicamente colocar minha mão na boca para parar de mostrar tanto dente. Eu sabia que era egoísta, nem ele nem ninguém conseguiria mudar minha opinião sobre isso. Mas, por mais que não fosse válido, aquele ainda era o melhor argumento que eu poderia esperar ouvir.
"Não foi dos piores discursos, é?" Não queria parecer que precisava de elogios, mas ainda assim aceitaria mais alguns.
"É," ele deu ombros, de um jeito sarcástico, "mais ou menos."
Eu revirei os olhos, querendo lhe empurrar pelo ombro, mas achando melhor não.
"Até que teve um certo impacto, né?" Falei, como se fosse para mim mesma. "Se não tivesse sido tão confuso e hipócrita."
Marc pareceu bufar do meu lado, me obrigando a olhá-lo. "Você não acha mesmo que essa história do anel cancela tudo que você já fez na vida, não é? Ou tudo que você falou?"
"Não exatamente," eu queria só falar não, porque sabia que estava certa. Só não queria ter que usar o argumento que ganharia para mim.
Não queria nem pensar que ele existia. Preferia só concentrar na minha certeza de que tinha um lado meu que eu não queria mostrar para ninguém, nem para mim mesma. Um lado bem pior do que aquele que tinha escondido o anel e mentido.
Marc só balançou a cabeça, entendendo minha resposta como concordância, mesmo que relutante.
Ele estava sentado do meu lado, cotovelos apoiados nos joelho e ombro a alguns centímetros do meu. Não tinha feito nenhuma questão de arrumar o cabelo e talvez aquela fosse minha parte preferida. Nem tanto o paletó dobrado grosseiramente nos cotovelos ou a gravata que já estava praticamente inteira desfeita. Mas como ele tinha deixado o cabelo desajeitado até quando o resto da roupa o engomava.
Ele sabia quem ele era. E eu sabia quem ele era. Eu sabia quem era a pessoa que estava respirando fundo do meu lado, alto demais para qualquer pessoa normal, girando o copo no ar. Eu sabia no que ele acreditava, pelo que ele vivia, quão longe de mim ele sempre estaria. Não sabia o que ele estava pensando, e nem adiantava tentar adivinhar o que ele diria em seguida. Mas eu sabia quem ele era. Com todas as coisas que ele já tinha se recusado a me contar e todas as outras que eu talvez ainda fosse descobrir, não podia dizer que não o conhecia.
E mais do que isso, queria que ele me conhecesse também. Não tinha ideia do quanto precisaria falar para ele ter essa mesma certeza que eu, mas queria que tivesse de mim. Sabia que, se tinha alguém para contar, era ele. Por pior que fosse, por mais que pudesse acabar fazendo-o me ver como alguém de quem ele precisasse manter distância, eu lhe contaria. Precisava contar. Se fosse para lhe afastar, então que fosse logo. Então que fosse antes que me incomodasse.
"Eu-" comecei, me cortando.
Todo meu instinto me mandava parar. Não só de ter a intenção de contar, mas de pensar também. No momento em que eu falasse em volta alta, estaria fazendo aquilo ser verdade. Enquanto ainda guardasse dentro de mim, poderia negar. Era o único lugar aonde tinha existido mesmo. Não precisava contar para ele. Não precisava contar para ninguém. Podia passar o resto da vida sem pensar naquilo. Não devia cometer o mesmo erro do anel.
Mas era o Marc.
Ele se virou para me olhar por cima do ombro, provavelmente questionando eu ter parado antes de terminar, e seus olhos encontraram os meus.
Era o Marc, repeti na minha cabeça. Eu sabia quem ele era.
"Existem outras razões," falei, mordendo as laterais da minha língua por dentro da boca, "para eu ser uma péssima pessoa." Ele não fez nada, não desviou os olhos mesmo quando eu desviava os meus e voltava para os dele. Não mudou também sua expressão e manteve suas sobrancelhas levemente arqueadas, seu rosto a contáveis centímetros do meu.
Se eu ia mesmo falar aquilo, queria que ele olhasse para outro lado. Ou que estivesse em outro lugar. Minha vontade era me levantar e ficar de costas para ele, falar o mais rápido possível e acabar aquilo de uma vez.
E foi por isso mesmo que eu continuei aonde estava. Era impossível continuar o encarando, mas pelo menos eu não corri, pelo menos não me mexi. Não mais do que cruzar meus braços.
"Eu-" Só de começar a falar de novo, minha cabeça já balançou, meu próprio corpo negando o que eu queria dizer.
Marc deve ter percebido, pois falou. "Não tem nada que possa me contar que vá me convencer de que você é uma péssima pessoa, Lola."
Olhei rapidamente para ele, como se precisasse me certificar de que ele falava sério.
"A não ser que você diga que matou alguém," ele completou, me fazendo bufar uma risada engasgada. "Não matou, não é?"
"Não, não matei," respondi, com o menor dos sorrisos no rosto, que logo desapareceu quando continuei. "Mas quase." Não sabia se tinha sido a minha risada ou a dele, mas eu simplesmente continuei. Depois de tantos anos me proibindo de pensar naquilo, era só ele me fazer rir que eu coloquei para fora. "Quando meus pais me chamaram para contar que minha mãe estava doente, eu achava que seria algo sobre meu pai. O resto do castelo inteiro já estava agindo como se estivesse de luto e eu podia jurar que os ouviria me falando que meu pai que estava doente, que era ele que eu perderia."
O resto do sorriso de Marc desapareceu mas seus olhos pareceram focar melhor em mim, o que, por mais simples e banal que fosse, me deu forças para continuar.
"Eu sou uma pessoa tão ruim que, quando eles me falaram que era minha mãe, a primeira coisa que eu sentia foi alívio." Tive que torcer meu rosto todo para impedir meus olhos de lacrimejarem, mas não adiantou.
Não era nem pela frase inteira, era aquela palavra, alívio, que me fazia contorcer e torcer para que o mundo me engolisse de uma vez. Uma palavra que constituía na maior vergonha possível.
Mas, no rosto de Marc, ela não fazia nada. Eu apertava minha barriga, descontando nela tudo que aquela única palavra desencadeava em mim. E ele não parecia abalado.
Pelo contrário, franziu a sobrancelha depois de um tempo e perguntou. "É isso?" Como se fosse qualquer coisa. "Você acha que isso te faz ser uma péssima pessoa?"
Ele me mirou por um segundo, esperando que eu negasse. Quando não o fiz, ele riu. Riu! Não muito, não jogou a cabeça para trás, nem teve que recuperar o fôlego. Mas enquanto eu queria me enterrar no chão, ele achava engraçado.
"Desculpa, Lola," pediu, sorrindo largo para mim, apesar de suas sobrancelhas continuarem franzidas. "Mas é que legal ver que você acha isso tão terrível assim."
"Legal?!" Podia ver que ele tinha mais coisa para falar, mas eu podia jurar que ele não tinha entendido direito. "Eu acabei de te falar que preferia meu pai a minha mãe!"
"Não," ele desencostou da parede para virar mais de frente para mim. "Você disse que ficou aliviada de saber que seu pai não estava doente."
"Quando minha mãe estava!" Levantei minha voz bastante dessa vez, mas ele continuava sorrindo.
"Ah, Lola," para minha surpresa, ele procurou minhas mãos e as segurou firme nas suas, ainda parecendo se divertir com aquilo. "Você realmente não é uma péssima pessoa. Pelo contrário, isso só mostra o quanto você é boa. Podia apostar que já não existia mais ninguém assim como você." Seus olhos se perderam nas nossas mãos, ameaçando desviar minha própria atenção para lá. Ele queria tanto ganhar o argumento, que fez questão de passar o dedo de leve pelas costas da minha mão antes de continuar. "Você não estava aliviada por ser sua mãe, só por não ser seu pai. Isso não diminui o que você sentia por ela. Não cancela tudo, não se preocupe. Você gostava tanto dela que roubou o anel dela!"
"Ótimo argumento!" Falei, já imitando seu sorriso. Queria me contorcer ainda, mas precisaria das minhas mãos. E ele parecia chegar sempre mais perto de mim, a cada segundo focando mais em meus olhos, seus dedos segurando firme nos meus, suas palavras começando a fazer sentido.
E eu queria tanto me deixar acreditar!
"Mesmo que você realmente preferisse que seu pai vivesse à sua mãe, isso não te faria uma péssima pessoa," ele continuou. "Eles são pessoas também, a sua afinidade e admiração muda de um para outro. Não significa que você é-"
"Ingrata!" Eu o cortei, achando que o faria perder o argumento.
"Isso, não significa que você é ingrata," ele completou, abrindo mais ainda o sorriso por ter percebido minhas intenções. "Não diminui o que você sentia pela sua mãe. Muito menos a falta que ela deve fazer para você," nessa hora, ele soltou de uma das minhas mãos para buscar o anel no bolso. Não me perguntou nada e nem precisava. Simplesmente pegou minha mão esquerda e deslizou o anel pelo dedo anelar, onde ele entrou sem problemas. "Você não precisa provar para ninguém o que ela foi para você. Nem para si mesma."
Ele fazia questão de continuar me olhando nos olhos, me fazendo esquecer de todas as palavras que eu conhecia. Nunca tinha pensado por esse lado. Nunca nem teria considerado isso. Não tinha me deixado analisar o tão temido alívio porque tinha medo do que encontraria do outro lado.
Mas talvez ele estivesse certo. Ele parecia estar certo. Eu já não sentia o peito cheio ou meus ombros cansados. Eu estava bem. Estranhamente bem. Porque fazia sentido. Bem mais sentido do que eu esperava que ele fosse fazer.
Eu não precisava provar para ninguém o quanto eu a amava, repeti na minha cabeça. Não precisava provar para ninguém. E mais, não precisava medir. Nem precisava medir o quanto amava meu pai. Não tinha porque comparar. Não tinha o quê comparar! Era só-
Senti suas mãos deslizarem de leve pelas minhas e ele ameaçar entrelaçar os dedos nos meus. E, por mais estranho que fosse, aquilo quase me fazia sentir mais exposta do que o que eu tinha admitido. Antes que eu pensasse no que fazia, antes mesmo que tivesse certeza de que era aquela a finalidade de seu movimento, puxei minha mão esquerda para perto do rosto, fingindo a analisar.
"E o anel?" Perguntei, torcendo para que, da próxima vez que levantasse o rosto, eu já tivesse de volta o mínimo de confiança que conseguisse.
Assim que o senti soltando a outra mão, me arrependi de ser tão medrosa.
"Se te incomoda assim guardar o segredo, devolve," ele disse, se afastando tanto que pôde voltar a apoiar na parede, deixando o ar condicionado dali de dentro refrescar meu rosto de um calor que, até então, eu nem tinha percebido que sentia. "Ou então espera você achar que seu primo merece."
"Ah, isso é nunca," ele tinha acabado de se sentar de novo do meu lado, mas eu já sentia falta de tê-lo na minha frente.
O que era idiota, bem idiota. Mas eu sentia como se tivesse quebrado um momento como vidro.
"Mas pelo menos fique aberta à possibilidade," ele respondeu, virando o último gole de uísque, "se isso te ajuda a se sentir menos culpada."
"Ajuda," minha boca falou sozinha, enquanto minha cabeça trabalhava em jeitos de conseguir trazer aquela aproximação de volta.
Eu conseguia sentir seu ombro encostado no meu e o ar continuava terrivelmente denso. Não teria que me esticar muito para pegar de volta na sua mão. Virei meu rosto na sua direção e tive a certeza de que chegaria em poucos segundos até o dele. Era até fácil conseguir que me olhasse de volta, só precisava mirá-lo por um curto espaço de tempo. De algum jeito, ele sabia que eu o olhava e respondia. E sorria se eu sorrisse, por mais deslocado que fosse aquele gesto.
Ele estava logo ali, prestando atenção a ninguém mais do que eu. Literalmente logo ao meu lado, ao meu alcance. E eu queria aquele momento de volta. Não queria ser apreensiva, não queria sentir que estava exposta demais, vulnerável demais. Mas queria ele de novo na minha frente, suas mãos de novo nas minhas. Queria pelo menos parar de sentir como se todas as possibilidades do que poderia vir depois estivessem escapando dos meus dedos como pó.
Mas me virei de volta para a frente, pegando a taça de champanhe com as duas mãos. Já tinha me esquecido dela, mas qualquer coisa serviria para me distrair agora.
"Não foi tão ruim, não é?" Perguntei. "Ter vindo, quer dizer."
Era melhor assim. Ele sentado do meu lado. Já tinha feito demais por mim, demais para uma noite só. Não podia me deixar levar. Era só uma proximidade normal de quem era amigo. E bem mais do que eu esperava conseguir dele. Não era hora de confundir as coisas.
"Na verdade, foi até bem interessante," ele respondeu.
Será que eu estava tão desacostumada a me aproximar de uma pessoa que eu não conseguia nem entender quando alguém não me queria?
"Não esperava que fosse mudar sua opinião do um por cento," expliquei, "não era isso que eu estava tentando fazer."
"Eu sei."
"Só queria que você visse que dá para influenciá-los a usar seu dinheiro com quem realmente merece," continuei sem hesitar. "E precisa."
Eu tinha que parar de pensar nisso! Não tinha o que analisar, ele já tinha me rejeitado. E era bom que tivesse, porque eu não estava livre. Eu tinha oito caras dispostos a se casarem comigo me esperando no castelo. Oito caras que tinham deixado suas vidas para trás pela chance de me conquistar.
"É, eu percebi sua influência," Marc falou, alheio aos meus pensamentos. "Sobre eles," completou. "Percebi sua influência sobre eles."
Oito caras que, naquele momento, não pareciam existir para mim.
"E tem gente boa no um por cento também." Eu já nem refletia muito sobre o que estava falando. Não tinha assunto que fosse prender minha atenção. A única coisa na qual queria pensar teria que ser proibida. Pelo meu próprio bem.
Marc concordou, explicando o que tinha achado de Hans. Mas, toda vez que eu olhei para ele depois disso, só conseguia acompanhar os movimentos de sua boca, sem escutar as palavras. E, quando tentava me focar, me distraia com os vincos em sua testa, já cansados de acompanhar suas sobrancelhas constantemente franzidas. E com o jeito que ele tinha a mania de entortar o sorriso para baixo antes de se deixar levar de vez. Mas principalmente com as inúmeras rugas que apareciam no canto de seus olhos quando ele ria.
Nem sabia porque estava rindo. Não conseguiria imaginar o que ele poderia ter visto naquela festa para ser motivo de rir daquele jeito. Mas não importava, já estava grata por poder vê-lo assim.
E há alguns minutos ele estava na minha frente, segurando a minha mão, falando tudo que eu nem sabia que precisava ouvir. Mesmo que estivesse logo ao lado, era diferente. Toda vez que virava o rosto na direção da parede contrária a nós, era como se eu me distanciasse vários quilômetros. Não era a mesma coisa
E nem precisa-
"Vamos?" Só cheguei a ouvi-lo porque tinha levantado a voz.
"Aonde?" Me virei outra vez para olhá-lo.
Ele tirava sua gravata e colocava no bolso. "Jantar. Não ouviu anunciando que vai ser servido? Imagino que você precise estar presente."
"Sim," respondi, ainda tentando absorver aquilo. "Preciso mesmo."
Fome! Devia ser por isso que eu estava com o estômago embrulhado. E eu achando que eram nervos.
Ele se levantou de uma vez, cada movimento seu descontraído. Os meus, em compensação, ainda estavam tensos, ainda se recusavam a desistir daquele momento. Eu nem estava de pé e já sabia que alguma coisa dentro de mim passaria as próximas horas, os próximos dias insistindo em não desistir, insistindo em torcer para vê-lo outra vez.
Mas eu queria mais do que vê-lo. Eu queria mais do que encontrá-lo no corredor. E qual seria a próxima vez que eu teria essa chance?
Eu descruzei as pernas.
Quando eu conseguiria ficar sozinha de novo com ele?
Deixei a taça de champanhe de lado para pegar depois.
Quando ele seguraria minhas mãos outra vez?
E estaria tão perto assim?
Eu me levantei.
Ele poderia ir embora do castelo amanhã.
Ajeitei a saia do meu vestido.
Eu poderia nunca nem vê-lo mais.
Assim que levantei o rosto, foi impossível não perceber o quanto ele estava perto de mim. E, mais rápido do que qualquer pensamento que já tivesse tido, eu simplesmente me inclinei na sua direção. Tinha toda intenção de ir até o fim e, antes que pudesse hesitar, ele fez o mesmo.
Um milésimo de segundo. Esse foi o tempo em que meus lábios ficaram nos de Marc. Um mísero milésimo de segundo de impulso inconsciente e nós dois nos afastamos, ambos procurando nos olhos do outro uma explicação.
O suor frio, que antes se concentrava na minha barriga, agora tinha se espalhado pelo corpo inteiro. Eu podia senti-lo entre meus dedos, nas pontas dos pés, da minha nuca até cada fio de cabelo. Em cada extremidade minha.
Um milésimo de segundo era pouco tempo demais. Podia muito bem ter imaginado. Ele podia estar me olhando por eu ser louca. Mas eu ainda conseguia sentir a pressão dos lábios dele nos meus. E não sentia minha garganta pulsar com as batidas do meu coração por acaso. Ainda estava a pouco centímetros dele, ainda conseguia ouvir sua respiração acelerada, competindo com a minha.
Não. Era mais do que confusão que eu podia ver nos seus olhos. Era quase um reflexo do que ameaçava estourar em meu peito toda vez que eu não inspirava oxigênio o suficiente. Era medo. E eu nunca tinha sentido um medo como esse antes. Nem tão grande, nem tão definitivo.
Levou um milésimo de segundo para nós agirmos por impulso e um segundo afastados para percebermos que queríamos o medo, que precisávamos dele. Um segundo, milhares de questões e uma única resposta. Tempo demais para perceber que o que sentimos no milésimo não tinha sido por acaso. Um segundo e nós encontramos o caminho de volta um para o outro.
Eram pouquímos centímetros, mais uns dois milésimos até que eu sentisse seus lábios nos meus outra vez, mas quase morri de antecipação. E mesmo quando ele já traçava um caminho nas minhas costas com as duas mãos, me abraçando e me puxando para ele, me beijando e me roubando o ar, eu ainda sentia o medo me queimar por dentro. Medo de ele parar, medo de eu nunca conseguir sentir aquilo de novo, medo de não ser verdade. Porque era bom demais para ser verdade! Era forte demais pra ser real! Ele me empurrava contra a parede, e eu o puxava para mim. Me agarrava à sua camisa e o puxava para mim. A gente encaixava bem demais, eu queria ele demais e ele, droga!, ele me queria. Eu podia sentir na sua pele, no calor que vinha dela e em cada toque possessivo seu. Cada vez que ele levava sua mão à minha nuca, me segurando como se dele, seus dedos no meu cabelo me arrepiavam até os pés, fazendo eu me colocar nas pontas e sentir como se pudesse flutuar. Ou pelo menos quisesse, e muito!, tentar.
Não sabia se ele estava tentando provocar a mim ou a si mesmo, mas de vez em quando se afastava, só alguns centímetros, só o suficiente para nossos olhos se encontrarem e eu sentir falta. Só o suficiente para que a próxima vez que a gente se beijasse fosse ainda mais intensa.
Eu tinha me esquecido de tudo. Não tinha ideia de onde estávamos ou quem poderia aparecer. Não me lembrava de nenhum selecionado, nem saberia dizer o que eram. Mas tampouco importava. Minha única certeza era quem eu era. E quem ele era. E o quanto eu o queria. Toda vez que o sentia aumentar minimamente a distância entre nossos corpos, eu o abraçava mais forte, enrolava meus braços de volta em seu pescoço, depois segurava seu rosto com as duas mãos. Nada mais precisava existir. Nada mais devia existir. Eu deixaria o mundo se reduzir a nós dois.
Nós dois e o medo, que insistia em me fazer querer cada vez arriscar mais.
Não saberia dizer quanto tempo tinha passado, mas nós só nos afastamos mesmo de corpo inteiro quando ouvimos alguém passando pela porta. Conversas e barulho de sapatos que me deixaram ainda mais apavorada. Eu o queria de volta no instante em que já não estava mais beijando Marc. Ele foi até o final da arara de cabides e eu me empurrei contra a parede, ainda sentindo a eletricidade do que tinha acontecido correndo pelas minhas veias.
Ele se manteve escondido, olhando para a porta e esperando, de costas para mim. Eu sabia que deveria estar raciocinando já naquele momento. Deveria estar entrando em pânico, sentindo a responsabilidade do que tinha feito me empurrar para baixo. Mas a culpa não veio. E, por mais consciência que eu tivesse de que era errado, eu não conseguia parar de sorrir. Contava os segundos para Marc voltar a me olhar, se virar e andar de novo até mim. Nem prestava atenção aos barulhos de fora, não estava pronta para sair daquele armário. Não me importava com quem poderia nos encontrar. Até tentaria, mas sabia que não conseguiria me importar. Eu só queria saber que era Marc - e cada vez que eu pensava em seu nome, sentia o frio na barriga me perfurar ainda mais fundo, - era Marc que estava logo ali, a dois passos de distância de mim.
Dois passos que eu podia dar, distância com a qual eu podia acabar. Antecipação que podia morrer dentro de mim assim que ele voltasse até mim.
"É melhor a gente ir."
Ou não.
"Antes que-"
"É," eu o cortei, "tem razão."
Não! Melhor? O que definia melhor? Melhor para quem? Para mim? Eu estava melhor ali, o assistindo fazer o caminho até onde eu estava como tinha antecipado, mesmo que ele acabasse só por pegar o copo de uísque no chão, como se não fosse nada.
"Pode ir primeiro," falei. Precisava ficar sozinha.
Queria ficar com ele. Mas se tinha que voltar para qualquer que fosse o lugar de onde tínhamos saído, precisaria me recompor primeiro. Ou pelo menos voltar a respirar direito.
Ele assentiu devagar, enquanto eu tentava ajeitar o conseguia sentir do meu cabelo. Precisaria encontrar algum banheiro antes que voltasse ao salão de festas. Podia até sentir minha tiara um pouco mais solta.
Marc começou a ir embora, mas, antes de chegar no final da arara, ele parou e se virou de novo para mim, só metade do corpo, só o suficiente para me olhar por cima do ombro. Ainda ajeitar a tiara e parei assim que percebi que ele ainda estava ali.
Eu quase podia sentir as batidas do meu coração refletindo no ar entre nós quando ele se virou de vez e voltou devagar até mim.
Já segurava minha respiração quando ele parou na minha frente. E eu fechei os olhos, sentindo ele deslizar sua mão pelo meu rosto até me segurar pela nuca, dessa vez bem mais de leve. Mas não precisava ser firme. Meu rosto acompanhava o movimento do seu toque. Eu inspirava seu cheiro e seus olhos direcionavam minha antecipação. Só precisou mirá-los na minha boca para eu sentir o chão fugir dos meus pés.
Não durou um milésimo, nem um segundo. Foi infinito. Calmo, consciente e infinito. Assim que ele se abaixou para me dar o último beijo, eu me senti inteira. Talvez maior do que era antes, definitivamente melhor. Mais eu do que já tinha me sentido a vida toda. E mesmo quando se afastou de vez, aquela sensação ficou comigo.
Ainda estava ansiosa, sim. Mas não sentia mais medo.
Não. O que eu sentia era diferente.
Era certeza.


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Notas finais do capítulo

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