Do Outro Lado do Oceano escrita por Laura Machado


Capítulo 100
Capítulo 100: POV Marc Hynes


Notas iniciais do capítulo

Escrevi ouvindo "Tide is High" do Seeed (uma das minhas bandas favoritas do universo).



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De todas as coisas inesperadas e inexplicáveis que eu podia imaginar para a minha vida, aquela noite tinha sido a melhor. Era quase como um recorde que eu vinha quebrando sempre, toda vez que insistia em levar Lola comigo para algum lugar. Não sabia quem estava ganhando mais ali, se era eu ou ela, quem estava colecionando experiências que nunca tinha tido antes. Porque, mesmo já tendo invadido dezenas de casas, nunca tinha sido daquele jeito. Nós sempre falávamos que seria uma festa, mas acabávamos entediados depois de algumas horas, deixando tudo para trás. Com a Lola, tinha sido diferente. Com ela, tinha sido uma festa de verdade. Eu tinha até passado a noite inteira esperando que ela protestasse, que reclamasse, que simplesmente se entediasse. Mas ela era a mais animada de todos. E acabei esquecendo de me preocupar com o que ela estava pensando daquilo tudo.
Isso até ela me puxar de lado e implorar para nós irmos embora.
De primeira, eu tinha quase ignorado. Tá, a consciência dela estava batendo, mas eu tinha alguns bons argumentos preparados para usar em minha defesa, começando pelo porquê de ela não precisar encanar com o que tinha acontecido. Ou quase acontecido. Mas ela fez um mega discurso de que não poderia ser pega naquela casa e fez questão de declarar que ela conhecia o morador e seria obrigada a vê-lo enquanto continuasse em Illéa - e pro resto da vida. Daí, eu já tinha decidido que estava bom, então. Era o suficiente e nós podíamos voltar pro castelo. Mas não tinha pressa.
Não até ela ameaçar começar a arrumar toda a casa e fazer Aidan quase enlouquecer. Aí eu me convenci de que ela estava certa. O melhor a se fazer era colocar seus dois pés na calçada do lado de fora daquela casa o mais rápido possível.
"Vamos?" Ela perguntou, sentada do meu lado na cama do quarto rosa.
Eu ainda amarrava meus sapatos, mas ela parecia ansiosa demais para conseguir me esperar por mais muito tempo.
"Você sabe que vamos ter que ir a pé, né?" Perguntei, fazendo-a bufar uma risada.
"Melhor nem pensar, senão vou querer desistir," disse, se levantando.
Ela olhou pelo quarto, notando cada uma das coisas que nós tínhamos estragado ali, mas com um sorriso estranho ameaçando aparecer em seu rosto.
Eu me apressei para terminar de colocar meus sapatos e me levantei. Lola nem esperou que eu falasse mais alguma coisa para sair pela porta e começar a descer as escadas.
Estava passando pela porta, quando eu notei uma coisa na escrivaninha da dona do quarto. Estava dentro de um porta-lápis, um conjunto de pavios mágicos amarrado por uma fita. Soube na hora que era uma coisa da qual Lola ia gostar, mas, como ela estava se fazendo de desanimada e queria tanto ir embora provavelmente ignoraria se eu simplesmente mostrasse para ela. Não tinha nem se interessado em jogar pôquer com a gente quando eu a desafiei a ganhar de mim. Se eu acendesse um pavio mágico ali, ela só reviraria os olhos e sairia correndo pra rua.
Mas não os deixei para trás. Enfiei no bolso e desci as escadas atrás dela.
Ela parecia já ter se despedido de todos os caras, mas ainda olhava para a sala como se estivesse à beira de enlouquecer. Ou de rir.
Eu cheguei perto deles, dei dinheiro a Aidan pela gasolina e a carona, avisei Max que passaria na loja dele no dia seguinte e cobrei Felix de um CD que ele tinha pegado emprestado há anos. Não precisava de mais nada. Só de seguir os olhos de Lola pela sala e ter orgulho daquela bagunça. Mais ainda, de ter alívio por saber que não era eu quem teria que limpar aquilo e que, pelo menos, a pessoa que tivesse ganharia para aquilo. E, se eu fosse ela, cobraria bem.
Dei alguns passos para trás, ainda mirando a sala, mas já indo na direção do hall. Depois acabei me virando, ajeitando minha blusa e conferindo meus bolsos para saber se eu tinha pegado tudo de que precisava.
"Espera," ouvi Lola falando atrás de mim.
Podia jurar que ela tinha estado me seguindo até então. Mas ela estava na cozinha, segurando a máquina Polaroid na mão.
"Ainda falta uma foto," ela disse. "Para que você queria guardá-la?"
Dei de ombros, indo devagar até ela. "Não tinha pensado," admiti. "Só imaginei que acharíamos alguma coisa."
"Junta todo mundo," ela fez gestos no ar. "Pelo menos uma tem que ser com todo mundo."
Os caras se entreolharam, mas não demoraram para obedecer. E eu não contrariei. Lola segurou a câmera bem no alto, tentando mirar o máximo possível em todos nós. Eu fiquei do lado dela, coloquei minhas duas mãos em seus ombros e tentei sorrir. Mentira. Na verdade, nem tentei. Só fiz cara de quem não sabia o que fazer e esperei que ela tirasse a foto. Pude até senti-la um pouco rígida com a minha aproximação, mas fiz questão de até chegar meu rosto mais perto do dela.
Depois do flash antigo da câmera disparar, ela abaixou o braço e esperou a foto sair, enquanto eu voltava a me afastar antes que ela dissesse alguma coisa. Não que tivéssemos falado sobre o que quase tinha acontecido na piscina, mas imaginava que ela tinha a mesma filosofia que a minha: não falar sobre aquilo nunca e seria como se não tivesse nem chegado perto de acontecer.
Ela não tinha nem começado a balançar direito a foto para secar e os caras já riam. Nenhum deles tinha aparecido direito. Era só a minha cara enorme e a da Lola e pedaços dos outros. Um braço, um pescoço, o cabelo só do Dillon. Essencialmente, eles só tinham servido de fundo para nós dois.
Lola torceu o nariz, parecendo desapontada até, mas parando para observar a foto por um bom tempo. Enquanto isso, eu discretamente procurei uma caixa de fósforos para os pavios mágicos.
"Desistiu de ir embora?" Perguntei, fazendo-a me olhar na hora.
"Não. Vamos."
Felix abriu o portão e nós saímos. Eles disseram que ficariam mais algumas horas e, por isso, não podiam nos dar carona. Mas eu sabia que não era verdade. Em poucos minutos, eles descobririam que não tinha mais nada para eles fazerem ali e as pessoas que realmente tinham animado aquela festa já tinham ido embora. Mesmo assim, eu preferia ir embora a pé a arriscar entrar no carro com o Aidan depois de ter bebido. Ele jurava que conseguia se manter sóbrio, mas eu jurava não acreditar. E, por mais exausto que eu estivesse, andar me ajudaria a chegar mais sóbrio no castelo para dormir melhor antes de ter que acordar no dia seguinte e trabalhar de novo.
Assim que o portão fechou atrás de nós, Lola se virou para olhar para a casa.
"Isso aconteceu mesmo?" Ela perguntou, seus olhos vidrados e o sorriso estranho ameaçando outra vez tomar conta de sua expressão.
"O quê?" Perguntei, mas ela nem pareceu me ouvir. Parei na sua frente, a forçando me olhar. "O que quer saber se aconteceu?"
Ela me olhou por um segundo, ficando séria outra vez. Mas logo se virou e começou a andar, na direção que tínhamos vindo.
"Quero saber se você me trouxe mesmo para destruir a casa do Josef," pediu.
Eu a segui. "Josef?'
"Josef Ward, o conselheiro real!" Ela arregalou os olhos, inconformada com minha falta de atenção. Achei que era uma bronca, mas, estranhamente, ela começou a rir. Rir demais até. "Eu, Lola Farrow, invadi e destruí a casa do conselheiro real de um dos maiores países do mundo. Aliás, do país com o qual eu estou tentando firmar uma aliança."
"É isso que a Seleção é? Uma aliança?" Perguntei, enfiando as mãos nos bolsos e tentando focar no caminho à frente.
"O que você achava que era?"
"Frescura?"
Ela olhou por cima do ombro na minha direção, bem quando eu apoiei minha mão nas suas costas e indiquei que ela devia virar a esquina comigo.
"Eles não tinham príncipes solteiros," ela disse, se abraçando até segurar os ombros com as mãos. "Eu precisava de algum jeito de fazer uma aliança. Eis a Seleção."
"Interessante," falei, completamente desinteressado.
"E agora eu sou a responsável por destruir a casa do conselheiro do-"
"Se eu ouvir a palavra conselheiro mais uma vez," parei de andar e ela me imitou, "juro que volto lá e faço coisa pior," ameacei.
Ela franziu as sobrancelhas para mim, tentando descobrir se eu estava falando sério. Depois revirou os olhos e voltou a andar.
"Você não entende!" Declarou. "Eu vou ter que passar o resto da minha vida trazendo meu marido para passar férias aqui. E encontrando Josef por aí, ouvindo suas opiniões e sempre pensando comigo mesma, 'eu sei quem invadiu sua casa'."
"Provavelmente vai pensar mais nisso do que ele," falei. "Se eu pudesse apostar, diria que ele vai dar uma olhada na casa e já sair pela porta, ligando e contratando quem precisar para arrumar. E, enquanto isso, ele se hospeda no castelo."
"Aonde eu vou estar!" Ela exclamou, rindo tanto de histeria, que batia os dentes "Eu, o encarando. Uma dos invasores."
Balancei a cabeça para mim mesmo. Não tinha muito o que eu falar, era verdade.
"Bom, se você prefere, pode admitir direto. Ou eu mesmo conto tudo," assim que falei isso, ela parou de andar para me encarar.
"Nunca," disse, me mirando tão fundo, que eu podia jurar que aquela era uma ordem.
E isso quase me fez ter vontade de contar mesmo.
"Claro que não, não seja louca," falei, voltando a andar.
Nós continuamos em silêncio até pararmos na esquina de uma avenida grande, onde tinha carro passando até mesmo de madrugada. Ela se abraçava, quase como se quisesse se diminuir.
"Você tá com frio, por algum acaso?" Perguntei.
Ela deu de ombros. "Por quê?" Tentou se fazer de desentendida, mas seus dentes batiam de leve. E agora eu sabia que não era só histeria.
Não pude evitar de rir. "Tá se contorcendo," falei, começando a tirar minha blusa para dar para ela. Não estava lá muito seca, mas era melhor do que a que ela vestia.
"Não precisa," disse, quando eu me coloquei na sua frente e a deixei nos seus ombros. Mas seus dentes ainda batiam freneticamente. "Eu tenho um problema. Quando fico com frio de repente, começo a tremer. E mesmo depois de melhorar, não consigo parar."
"Não consegue parar de tremer?" Perguntei, achando aquilo estranho.
Ela deu de ombros, seu corpo inteiro balançando de frio, mesmo ela se contorcendo embaixo da minha blusa. Tirei minha toca na hora, colocando nela.
"Estou falando, não adianta," disse, enquanto eu ainda tentava afastar seu cabelo. "Preciso me distrair com alguma coisa, ou nunca vou conseguir parar. É choque mesmo, não é frio-"
Antes que ela terminasse de falar, eu a abracei. E o mais forte que eu conseguia. Não queria esquentá-la, ela insistia que esse não era o problema. Mas talvez um pouco de pressão fizesse o corpo dela relaxar.
Mesmo depois de sentir que já podia soltá-la, a abracei por mais um tempo. Até apertei mais. Eu mesmo estava gostando de como aquilo me tirava o frio e só a larguei quando senti que ela estava me empurrando para longe discretamente.
"Melhor?" Perguntei, me afastando.
Ela ficou imóvel, como se esperasse que fosse voltar a tremer. Mas nada aconteceu. "Bem melhor," disse, parecendo mesmo agradecida, mas desviando um pouco de mim para começar a atravessar a rua, antes mesmo de eu ter me virado para tomar aquela iniciativa primeiro.
Mas eu a segui logo atrás.
"O que é isso?" Ela perguntou, enfiando as mãos no bolso da minha blusa e tirando de lá o que eu tinha encontrado no quarto da menina.
"Pavio mágico," falei, fazendo-a me olhar estranho. "Sim, é um treco idiota. Mas você vai amar."
"E desde quando eu gosto de coisa idiota?" Ela perguntou, apesar de já o girar nas mãos.
Eu a segurei pelos ombros, obrigando-a a virar a esquina que ela quase tinha ignorado. Ela nunca se preocupava se eu sabia o caminho ou não e nem questionava aonde nós estávamos indo. Confia muito em mim para alguém sobre quem ela não sabia nada.
"O que faz?" Perguntou logo em seguida.
"Sério que você não sabe o que é isso?" Peguei o conjunto da mão dela e tirei um, deixando os outros no bolso da calça. Tive que enfiar a minha mão em um dos da blusa que ela vestia para pegar a caixa de fósforo. E ainda parei de andar para ter certeza de que não ia me queimar.
Ela abriu um sorriso. "Não."
"Nunca foi em uma festa de aniversário?" Perguntei, mas ela deu de ombros. "Está falando sério?"
Ela riu. "Não," disse, orgulhosa de si mesma. "Claro que eu sei o que é isso. Só queria saber aonde você tinha encontrado e porque tinha pegado."
Revirei os olhos. "Segura," pedi, entregando um pavio para ela.
Lola obedeceu. E, do momento em que eu risquei o fósforo até ter conseguido acender o pavio, seus olhos me observavam com cuidado. Para quem já sabia o que era aquilo, ela definitivamente estava interessada.
Quando o fogo realmente pegou e as faíscas começaram a cair, ela pareceu hesitar. Fez menção de pegar, mas acabou retraindo a mão quando elas ficaram mais forte. Parecia ter medo delas, mas estar atraída demais para se manter longe. E, assim, logo ela tirou o pavio de mim, um sorriso enorme enchendo seu rosto. Dava para ver o brilho refletindo em seus olhos azuis, ameaçando testar quantas tonalidades eles podiam adquirir de uma vez.
Ela voltou a andar, criando um caminho de luz à sua volta. Eu a segui, enquanto ela o levava para cima e para baixo, acompanhando as faíscas com a cabeça e sem tirar os olhos do pavio por um segundo sequer. Nem precisávamos falar mais nada, ela tinha gostado exatamente como eu tinha imaginado e estava ocupada demais para me contestar. Parecia até ter se esquecido completamente de que eu estava logo ali, de tão hipnotizada que estava. Só tinha olhos para o jeito que o pavio brilhava sem rumo, sem regras, como seu próprio fogo de artifício portátil.
Assim que acabou e ele se apagou, ela parou. Eu andava devagar atrás dela, já tirando o segundo do bolso.
Nem precisamos falar mais nada. Eu só o acendi e ela o tirou de mim, me oferecendo um sorriso de volta. Em poucos segundos, ela já desenhava outra vez na noite com seu brilho. Dessa vez, ela quase corria pela rua, girava e me fazia ter que ficar olhando constantemente para os lados para não deixá-la ser atropelada. Ela realmente parecia uma louca. Uma mulher adulta, próxima na linha do trono de um dos reinos mais antigos do mundo, e ela perdia completamente a cabeça por causa de uma vela de aniversário.
O Reino Unido estava definitivamente perdido.
Mas era legal poder vê-la assim. Queria ter mais vários pavios no meu bolso, só para prolongar aquilo o máximo possível. Queria que ela tivesse a chance de se deixar levar mais um pouco, que girasse a ponto de se esquecer do seu nome ou de onde nós estávamos. Não tinha a menor pressa em chegar no castelo. Ela podia enlouquecer até onde conseguisse que eu estava bem.
E ela parecia concordar comigo, pois praticamente respirava o brilho do pavio como mágica. Se concentrava tanto nos desenhos que ela fazia com a luz dele no ar, que nem percebia o rastro de fumaça que deixava para trás. Mas não era para perceber. Ela tinha alguns segundos com ele queimando e o resto da vida para se preocupar com as consequências. E parecia entender aquilo. Sabia que concordaria. Até abria os braços, alcançando o que podia, ficando nas pontas dos pés. Se eu visse de fora, podia jurar que ouvia música, ou pelo menos que cantava alguma coisa em sua cabeça.
Era bem por isso que eu queria trazê-la para a invasão. Ela podia achar que era algo político e talvez fosse, para Aidan e os outros. Mas eu queria vê-la naquele ambiente. Queria ver que ela tinha mesmo aquilo dentro dela. Que eu não estava errado, que ela tinha o potencial para ser louca daquele jeito.
E ela tinha. Ela realmente tinha. Naquele momento, eu tive a certeza de que ela me entenderia por completo. Entenderia o que era querer ser alguém que era louco pela vida. Louco por falar, louco por respirar, por quebrar casas e ir a rachas. Louco para fazer o que quer que cruzasse seu caminho como algo único. Naquele momento, ela sabia o que era inspirar e expirar cada vez como se fosse sua última e não deixar nada passar em branco. Mesmo se fosse um pavio mágico e batido, passado por mil aniversários. Mesmo se fosse só um brilho qualquer, uma noite qualquer, uma rua qualquer. Era mais do que ordinário. Era vida. E definitivamente não estava passando batido nas mãos dela.
Ela era também louca. Louca para dançar como se estivesse sozinha. Louca para escrever seu nome com a vela e virar para mim e rir, como se aquilo em sua mão fosse a coisa mais incrível no mundo. E se deixar queimar, brilhar, explodir como se o que sentia já não coubesse mais dentro dela. Ou era felicidade ou uma simples vontade infinita de ser o máximo que podia ser. Mas ela olhava para mim e eu sabia que ela também sentia o mesmo. Eu sabia que ela finalmente me compreendia.
E eu entendi. No momento em que o pavio apagou e ela tirou o terceiro da minha mão para acender sozinha, eu entendi.
Entendi porque nós estávamos ali. E porque tinha sido tão fácil deixar algo ameaçar acontecer entre nós. Era simples, na verdade. Eu tinha insistido tanto, não devia me espantar de ela ter esquecido mesmo de quem era. E, ali, na casa do tal conselheiro ou até no racha, era fácil de vê-la como uma garota normal. Mais do que normal, na verdade. Era quase impossível não ver que ela tinha mesmo aquilo dentro dela, aquela vontade de viver que brilhava nela sem precisar de uma coroa de ouro. Impossível não perceber quando ela se entregava completamente a felicidade e esquecia de todos que podiam estar em volta. E eu sabia que era exatamente aquilo que tinha me feito quase aceitar o rumo que a noite tinha tomado.
Mas, por mais que eu gostasse de poder trazê-la pelo tempo que fosse para o meu mundo, a realidade era bem diferente. E eu não iria tomar nenhuma decisão irreversível.
Porque ela era mesmo aquela menina que rodava pela rua, tão feliz que nos obrigava a fazer um caminho diferente e mais longo para o castelo.
Mas ela também era a herdeira de um trono. Ela ainda tinha um reino inteiro esperando por ela. E nove selecionados que tinham assinado contratos declarando sua intenção de se casarem com ela. Porque era isso que ela realmente carregava nas costas. Contratos, coroa, reino. Ela não era mesmo uma garota qualquer. Não era do tipo que estava livre de compromissos. Se fosse, talvez eu me importasse menos com as consequências de me deixar levar pela noite e pela festa. Mas ela estava amarrada a mais coisas que eu poderia contar. E não importava quanto eu quisesse fazê-la se esquecer de tudo aquilo que a devia ter mantido presa a vida inteira, ela nunca desistiria de sua vida toda.
Tudo com Lola precisaria ser definitivo, certeiro, decisivo. Nada poderia ser leve. Eu não estava na Seleção e nem nunca estaria. Não era aquilo que eu queria. E mesmo se quisesse, sabia que era só pelo momento. Sabia que era só por quem ela demonstrava ser quando estava comigo, no meu mundo. Mas ela ainda tinha um mundo inteiro dela, onde ela estava o mais distante possível de mim. Não importava se eu gostava dela quando ela se soltava, porque não era só aquilo que ela era. E eu definitivamente não precisava tomar uma decisão errada. Definitivamente não precisava daquele problema.
A luz do pavio que ela segurava se apagou, mas ela continuou desenhando com ele no ar, pela primeira vez percebendo que também deixava um rastro de fumaça.
Nem do brilho ela precisava. Nem eram as faíscas que tanto a encantavam. Quis bater o pé no chão, ou simplesmente empurrar a caixa dos correios pela qual nós passávamos. Se pelo menos ela viesse sozinha e não carregasse uma bagagem de um reino inteiro!
Respirei fundo, sem ela nem poder ver minha expressão, já que andava bem à minha frente. "Quer outro?" Perguntei, me juntando ao seu lado. "É o último."
"Quero," ela disse, pegando-o de mim. Eu já riscava o fósforo, quando ela fez um gesto, o negando. "Vou guardar esse."
"Para quê?"
Ela o mirou, apagado e inofensivo. "Para quando eu precisar lembrar que tem uma coisa no mundo que brilha como ele."
Tive vontade de abraçá-la, de me colocar na sua frente e finalmente fazer aquilo que eu tinha impedido no último segundo na piscina. Até mesmo sem brilho algum, sem fumaça nem nada, ela ainda mirava o pavio como se quisesse guardar em sua mente tudo de que ele era capaz.
O máximo que eu fiz foi colocar meu braço em volta de seu pescoço e a forçar a virar a esquina comigo. Mas teria que servir para ela entender o quanto aquilo me dava orgulho, por mais estranho que fosse. Ela segurou o pavio até o último segundo antes de nos aproximarmos do castelo, depois o colocou no bolso.
"Posso te perguntar uma coisa?" Pediu, quando já podíamos avistar o portão dos caminhões de entrega.
"Diga."
"Mas você vai me responder? Ou vai fazer graça?"
Revirei os olhos para mim mesmo. Não sabia se era o cansaço, ou ela simplesmente tinha me vencido de verdade, mas acabei aceitando. "Vou responder," disse.
Ela sorriu, mas voltou a ficar séria e a mirar o chão antes de perguntar. "Por que você aceitou me trazer com você?"
"Domingo ou hoje?"
"Os dois."
Nem olhava para ela, nós dois estávamos mais ocupados ignorando que eu fazia questão de colocar meu braço em volta dela.
Respirei fundo. "Domingo, eu só queria poder ver você quebrando a cara."
Ela se afastou de mim para me encarar. "Como é que é?"
Eu ri. "Tá, não só para ver você quebrando a cara. Você insistiu tanto em ir comigo, que eu queria provar que não era boa ideia. Queria ver você perdida no meio de todo mundo, tentando ser tratada como princesa."
"Eu teria que ser completamente idiota para achar que alguém naquele lugar me trataria como princesa." Seu tom de inconformada me fez rir.
"Vai saber," disse. "Eu ainda não sabia que você era assim."
Nós chegamos ao portão e eu a soltei para abri-lo.
"Assim como?" Ela perguntou, depois de nós dois estarmos do lado de dentro e eu fechá-lo outra vez.
"Menos mimada do que o normal para a realeza," declarei.
Ela sorriu, satisfeita e orgulhosa de si mesma. "Mas e hoje? Por que você me levou hoje? Além do óbvio, eu precisar de uma distração."
Eu indiquei para ela me seguir até conseguir chegar em uma das entradas de criados e nós chegamos ao corredor. Ela olhava de lado para mim, esperando uma resposta, enquanto eu esperava que ela esquecesse aquele assunto.
"Hein?" Ela insistiu, sua voz ecoando por praticamente todo o caminho que qualquer criado já tinha feito naquele castelo. Ela a abaixou antes de continuar. "Por que me levou lá hoje?"
"Olhe para o pavio," falei, apressando um pouco o passo.
"Estou olhando," disse, apesar de mal o tirar do bolso.
"A resposta está aí, Lola."
Nós chegamos a uma porta que levava direto para o dormitório dos criados e que era o mais perto possível do meu quarto.
"Eu não sei o que isso significa," ela disse, parando do meu lado.
Eu a esperava entender logo, segurando a maçaneta, mas sem a abrir, já que não queria discutir aquilo na frente da porta dos dormitórios onde várias pessoas estavam dormindo.
"Sabe sim," eu disse, a mirando. "Agora, depois daqui, eu vou direto para o meu quarto. Você continua até o final do corredor, que vai acabar o mais perto da escadaria principal possível. Tudo bem?"
Ela deu de ombros. "Tudo."
"Só que, olha, não fale nada a partir daqui. Não quero acordar ninguém para perguntar se nós somos amigos."
"Que ideia ridícula!" Ela disse, rindo logo depois da referência que tinha feito a ela mesma.
Eu só sorri de lado, a observando voltar a se recuperar. Quando nossos olhos se encontraram, ela engoliu a seco e assentiu.
Eu abri a porta e nós dois passamos. Conforme fomos andando pelo corredor, ela tentava pisar o mais leve possível e eu simplesmente seguia meu caminho. O máximo que trocamos quando cheguei na porta do meu quarto foi um aceno de cabeça. E então eu a deixei continuar e entrei.
Na hora em que fechei a porta atrás de mim, Johnny me ouviu. Ele tinha estado deitado em cima da minha cama. Se levantou e se espreguiçou antes de vir se enroscar na minha perna. Eu mesmo me sentei na cama, deixando que até pulasse no meu colo. E foi quando eu vi um papel no meu criado-mudo com o nome da Lola escrito do lado de fora.
Era simples, uma pequena folhada dobrada. Eu a abri.
"Lola,
Aconteceu uma coisa grave no castelo essa noite. Mais precisamente, um atentado. Não sei quando você vai ler isso, nem se vai precisar de tanta precaução. Mas, depois de tudo que vi, prefiro ter certeza de que você vai estar bem. E já que toda a família real illéana resolveu se esconder, acho que você deveria fazer o mesmo. Mas por conta própria. Então, se possível, fique no quarto de Marc e não conte para ninguém que você está aí. Eu vou te buscar quando tudo se acalmar, provavelmente de manhã. Só espero que seja logo.
Sua amiga,
Clarissa."
Não parei para pensar duas vezes, já me levantei e abri a porta do quarto com tudo, pronto para disparar atrás da Lola antes que ela encontrasse com alguém.
Mas, para minha surpresa, ela estava bem ali, na frente do meu quarto. Quase dei com tudo nela, mas brequei antes de uma trombada irreversível.
"O que você tá fazendo aqui?" Perguntei com um cochicho, a puxando para dentro do quarto e fechando a porta atrás dela.
"Vim te devolver sua blusa," ela disse, só então me fazendo perceber que já não a vestia, mas carregava em seu braço e segurava minha toca. "Por que esse pânico? Achou que eu ia roubá-la?"
Respirei fundo. "Não," bufei. "Por isso," entreguei o bilhete para ela, que o leu rapidamente.
"Um atendado?" Ela perguntou, incrédula. "Atentado a quê?" Dei de ombros, sem saber responder. "A quem? O que aconteceu?"
"Você sabe que eu estava com você, não é?" Perguntei. "Que eu sei absolutamente tudo que você sabe?"
Ela foi até a minha cama e se jogou, voltando os olhos pro bilhete rapidamente outra vez. "Então eu vou ter que ficar aqui? Até amanhã?"
Não demorou para Johnny ir se esfregar nela, fazendo-a sorrir.
"Não tem problema, eu tenho uma ótima poltrona aonde você pode passar a noite," falei, indo até ela e apontando como um vendedor. Lola só me olhou como se eu fosse maluco. "Tá, vai. Mas se você vai ter que ficar aqui, o mínimo que precisa fazer é tirar essa roupa."
"Como é?"
"A não ser que você queira dormir de roupa molhada para acordar resfriada e ser obrigada a passar gripe pros seus selecionados."
Ela levantou os braços no ar, derrubando minha blusa no chão. "Está bem," disse, se levantando e andando até mim, mas passando direto para o armário.
Ótimo. Meu armário artisticamente bagunçado.
"O que eu posso pegar aqui?" Perguntou.
"Eu disse que você precisava tirar essa roupa, não que precisava colocar outra," mesmo antes de terminar de falar, eu já sorria amarelo para ela e Lola já revirava os olhos e minhas roupas.
"Que tal isso daqui?" Ela levantou no ar uma camiseta branca qualquer, cheia de furos e que devia ter pelo menos algumas décadas de vida. Na sua outra mão, ela segurava uma bermuda que eu mesmo não usava há anos.
"Como quiser," falei.
Era o suficiente para ela. Ela foi até o banheiro, trancando a porta e me deixando para trás. Eu corri para trocar de calça eu mesmo mas, quando tirava a blusa, ela saiu de lá.
"Só eu que estou morrendo de frio?" Perguntou, mirando minha cama como se fosse sua. Ela entrou embaixo do edredon e se ajeitou com Johnny. Até fingiu não estar deitando completamente, mas estava na cara de que tinha toda a intenção do mundo de dormir.
Quase perguntei se ela não via nenhuma diferença entre meu quarto e aquele no qual ela tinha passado todas as noites desde que tinha chegado. Pelo que eu via, parecia que não. Já abraçava meu edredom como se fosse seu. Sorte sua que eu estava mais preocupado com o que eu mesmo vestiria.
Não, ela não era a única que estava com frio. Em qualquer outra noite, eu teria dormido sem camisa. Mas minha pele estava gelada da blusa molhada que eu tinha acabado de tirar e até preferi um moletom. Tinha a impressão de que ela não me deixaria ficar com o cobertor e precisava me garantir. Joguei tudo que tinha tirado na pilha que ela mesma tinha feito do lado da porta do banheiro e fui até a cama.
Ao invés de me deitar do lado dela, sentei longe.
"Por que você me levou hoje, Marc Hynes?" Ela perguntou outra vez, quando eu já achava que o assunto tinha terminado. Até fechou os olhos, esperando minha resposta, mas sem parar de acariciar Johnny.
"Porque," comecei, parando quando me levantei outra vez da cama e fui até a janela fechar a cortina. Normalmente, deixaria aberta, usando o sol da manhã para me acordar. Mas Lola não tinha que trabalhar às seis no dia seguinte. "Eu sabia que não lhe passaria batido. Sabia que você aproveitaria. Dá pra ver que você tem potencial para a coisa. Para ser mais do que o que seu berço te obriga a ser, quero dizer."
Quando me virei para olhá-la e ver sua reação, ela dormia profundamente, sua mão descansando em cima de Johnny. Ri para mim mesmo, apesar de poder entender perfeitamente bem. Eu também estava exausto e tentando não pensar em ter que dormir naquela poltrona. Até estava considerando ir procurar um quarto vago.
Mas ela não estava ali de graça. Ela estava se escondendo. E era impossível não sentir a mínima reponsabilidade. Não tinha a menor ideia do que o tal atentado podia ser, mas era comigo que ela tinha estado. E tinha virado quase uma questão de honra eu conseguir deixá-la a salvo, enquanto os guardas lutavam para conseguir fazer o mesmo com a família real illéana.
Fui até a poltrona e me sentei, tentando esticar as pernas o máximo possível e me ajeitar com uma almofada, já que Lola tinha até feito questão de tomar meu travesseiro sem nem me pedir. Tinha sido incrivelmente fácil para ela se sentir em casa. Enquanto isso, eu me sentia quebrado. Não só pela bebida e tudo que tinha feito naquela noite. Mas pela droga de posição que eu estava!
Me levantei com tudo, na raiva, depois de tentar várias outras que só pioravam. Droga. Era minha cama! Ela tinha se apoderado da minha cama! E eu era obrigado a ficar com a poltrona desconfortável? Não era eu quem estava me escondendo!
Fui até ela, com toda a intenção de acordá-la. Mas parei com minha mão no ar.
Ela dormia bem demais, abraçada ao travesseiro como se precisasse dele para sobreviver, uma mão segurando Johnny possessivamente. Ela realmente parecia precisar daquele sono. Eu não teria coragem de acordá-la para mandá-la dormir no lugar que eu tinha acabado de considerar inabitável.
Poderia me deitar do lado dela, pensei de repente. Lola não tinha deixado sobrar muito espaço, mas era bem melhor do que a poltrona. E eu ainda conseguiria roubar um pouco do edredom. Além de quê, não podia esquecer, era minha cama. Se ela ficasse desconfortável e preferisse dormir longe de mim, a escolha era dela. Mas me expulsar da minha própria cama? Não, definitivamente não.
Me deitei, tentando ocupar o mínimo de espaço possível e apoiando a cabeça na almofada. Não era muito melhor, preferia meu travesseiro. Mas o alívio que senti quando finalmente parei de me mover e meu corpo percebeu que receberia algum descanso foi suficiente para eu parar até de debater aquele assunto na minha cabeça. Antes que pudesse até tentar pensar em quanto tempo eu tinha para dormir antes de ter trabalhar na manhã seguinte, já sentia uma escuridão profunda me envolvendo.
E adormeci.


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Notas finais do capítulo

Só para vocês saberem, minhas crises vem e vão. Por enquanto, estou melhor. Prometi para mim mesma que nunca vou abandonar a fic, por pior que tudo fique haha. Mas seguinte, às vezes eu posso precisar me afastar (como aconteceu essa semana). De break em break que eu der, vou me sentindo melhor!

O próximo capítulo, por mais louca que eu esteja para escrevê-lo, pode demorar. Minha mãe está com dengue (pois é, mais uma na sociedade) e minha cachorra acabou de ser castrada, então a gente precisa ficar constantemente de olho nela. E, como meu único trabalho é escrever, eu acabo sendo a escolhida para cuidar dela (o que nem é ruim, ela é o amor da minha vida