O Pássaro do Gelo escrita por MaNa


Capítulo 32
Capítulo 30


Notas iniciais do capítulo

Voltei!!! Eu disse que voltava. Haha.
E no mês do meu aniversário não poderia deixar de postar um capítulo, não acham? Obrigada pela paciência! Boa leitura.



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Capítulo 30

Camila não queria parar de ler. Não agora. Logo a noite chegaria e ela teria de ceder ao sono para acordar cedo no dia seguinte. Mas não agora.  Agora ela precisava aproveitar o tempo que ainda tinha. Virou a página para ler o próximo capítulo.

(...)

Mayta estava acordando, já passara uma semana desde que ela quase desistira de viver. Ícaro soube naquele momento que a garota não aguentaria mais um dia sequer de torturas, então foi até o “cientista”, informar o ocorrido e exigir um tempo de descanso para a moça. O debate não foi nenhum pouco fácil.

—Como assim exige que eu pare de tortura-la? Você deve estar maluco se pensa que pode exigir qualquer coisa!

—Você quer ela viva ou não?

Os dois teriam saído nos socos, se o velho não fosse um covarde e o chefe de Ícaro não tivesse intervindo e dito que a menina teria 15 dias de descanso. Desde então, Ícaro contava os minutos até a recuperação da garota. Já estava tudo planejado: assim que Mayta pudesse andar, ele a tiraria dali e a esconderia, já não se importava com suas próprias crenças, simplesmente não era mais capaz de aguentar vê-la sofrendo.

A noite acabara de cair quando ele notou que a fênix o observava arrumar uma bolsa com mantimentos.

—O que foi?- Perguntou curioso. Os dois conversaram bastante ao longo da semana, Mayta se esforçava em tentar voltar a realidade, apesar de ainda ter muitos lapsos. Em alguns momentos simplesmente parava de falar uma frase no meio e perdia o brilho dos olhos. Assumia um olhar distante, como se sua mente desligasse. O desespero sempre acometia Ícaro nesses instantes e ele firmava as duas mãos nas feições da mulher e a chamava, repetia seu nome e dizia para que se concentrasse em seu toque, tentando trazer sua atenção de volta. As vezes funcionava.

 As vezes não.

Cada vez mais o caçador tinha certeza de que precisava tirá-la daquele inferno, antes que a perdesse para sempre. Antes que ela se perdesse dentro de si mesma.

— O que está planejando, caçador? – Perguntou apoiando a mão na lateral da cabeça para levantar um pouco o corpo deitado.

Aquele pano sujo, que mal podia ser chamado de roupa, se acentuou as curvas do corpo da mulher. Mayta era magra, mas também não era esquelética, como sua mãe sempre fora. Seu corpo lembrava o de sua tia Almira e em nada parecia com o das mulheres da família de seu pai, todas voluptuosas. Não que isso afetasse em nada as autoestimas das fêmeas de seu povo: todas as fênix eram donas de si, ensinadas a se amarem e amarem suas curvas do jeito que nasceram.

Porém, desde que estava presa, a fênix do gelo emagrecera ainda mais. Não parecia desnutrida, mas definitivamente mais magra que o normal e bem mais pálida do que já era. O rapaz sabia que só não estava pior por causa das lágrimas que era forçada a consumir, que a mantinham com um pouco de força.

“Mesmo assim ela ainda está atraente”. Ícaro suspirou. Seus pensamentos voltaram até o dia em que banhara o pássaro. A curva da cintura dela quase o enlouquecera. Como podia ser tão bonita? As fênix eram, em geral, muito atraentes. Tanto que alguns homens nojentos se orgulhavam em dizer que as usavam não só para a cura, mas também para fins sexuais. O jovem caçador sempre achara aquilo repugnante. Homens que estupram, para Ícaro, não mereciam ser chamados de seres humanos.

Mas, fora a beleza de seu povo, Mayta tinha algo de singular em seu rosto. Algo que fazia a atenção de Ícaro estar sempre voltada para ele. “São os olhos”, pensou, “Olhos mais bonitos que qualquer outros que eu já tenha visto”.  E foram esses mesmos olhos que o fizeram se distrair por um tempo antes de responder ao pássaro.

— Estou preparando as coisas para sairmos daqui. Você já consegue andar?

Mayta ficou paralisada. Ele ia mesmo fazer isso? Ele realmente a libertaria?

—Tem certeza? Você se meterá em encrenca.- Falou séria. Ícaro sorriu.

— Não posso vê-la morrer aos poucos. Vou acabar enlouquecendo junto com você. Prefiro que partamos, já tenho tudo preparado.

Mayta não se mexeu.

—E aquele de quem gosta como um pai?

—O que tem ele?

—Vai simplesmente deixa-lo, roubando a mercadoria em que ele esteve insistindo tanto em investir?

Ícaro a encarou.

—Você não é mais apenas uma mercadoria. -  declarou.

— Não sou? E sou o quê? – Riu- Até semana passada você ainda se referia a mim como apenas um “pássaro”. Algo sem valor.

—Você é diferente dos de sua espécie. Você... mesmo se fosse como eles, ninguém merece passar pelo que você está passando. Nenhuma criatura merece isso.

Mayta apenas o observava, o que deixou o rapaz bastante desconfortável. Ele queria que ela parasse de exigir explicações, mas aqueles olhos, aqueles verdes azulados olhos, pareciam querer arrancar os segredos de seu coração.

—Não o reconheço mais.

—O quê?- Ela perguntou curiosa.

— Meu chefe. Ele era bom comigo. Hoje, no entanto, faz coisas com as quais não quero compactuar.

— Como o quê?

Lembranças de uma noite em que Mayta conseguira dormir vieram a mente do rapaz.

(...)

 O quase pai prestes a entrar na prisão do pássaro. Cinto afrouxado, cheiro de álcool.

— O que faz aqui a essa hora?- Perguntara o rapaz, pois sempre era ele quem passava as noites observando Mayta.

—Vim dar um jeito naquela garota. Ela vai querer virar um pássaro depois do que vou fazer com ela.

—O que pretende?

Para exemplificar bem o que pensava, o homem, que um dia fora sua referência, afrouxou ainda mais o cinto.

—Mostrar a ela que mulheres foram feitas apenas para servir e ensiná-la como se deve comportar quando um homem exige algo. Mostrar exatamente qual é a posição dela nesse mundo.

Uma ânsia de vômito começou a tomar Ícaro que se colocou em frente à entrada da cela. Seus pais morreram quando ele ainda era criança, mas o caçador lembrava muito bem de sua mãe consolando uma amiga que fora violentada pelo marido. Lembrava ainda mais as palavras que lhe dissera naquele dia.

“Nunca, Ícaro escute bem, nunca encoste em uma mulher sem que ela lhe dê permissão para isso. Não importa espécie, cor ou posição. Você estará fazendo algo muito pior do que matar.”

Ele levou aquilo para a vida.    Sua mãe fora uma mulher bem mais evoluída que a sua época, ele recordava. Em um mundo no qual todas elas viviam com medo, a mãe do rapaz fora capaz de lutar por autonomia.

E foram as palavras de sua mãe que o levou a segurar o braço do homem que o criou e o ameaçar.

— Se você encostar na mulher que dorme ai dentro, eu farei questão de garantir que não encostará em nenhuma outra durante o resto de sua existência miserável.

O chefe ainda chegou a reclamar dizendo que ele o criara, que ele era o patrão. Mas estava fraco e bêbado demais para conseguir reagir de forma efetiva contra o aprendiz que o levou de volta para a casa e o deixou jogado em uma cadeira, com repulsa do que via.

(...)

—Ele está começando a violentar mulheres.

Mayta arregalou os olhos curiosa.

—Como assim? Quer dizer que ele as mata?

Ícaro a olhou surpreso.

—Você não sabe o que é estupro, Mayta?

Ela pareceu pensativa por um minuto.

—Eu acho que já ouvi essa palavra... tem algo a ver com relações sexuais, não é?

Ícaro estava incrédulo.

—Sim, mas não é algo bom. -  Respirou fundo- É quando o ato sexual é forçado.

Mayta ainda parecia curiosa.

—Forçado?

—Sim, quando é feito contra a vontade machuca muito e é capaz de destruir o espirito de uma pessoa.

Ela fechou os olhos. Sim, finalmente lembrara onde escutara essa palavra e seu corpo automaticamente se contraiu assustado com a lembrança.

(...)

 Uma fênix conseguira fugir e voltar para a Vila. Mayta ainda tinha 10 anos, mas vira as curandeiras de seu povo se reunir em torno da mulher. Ela chorava copiosamente. Não era para o pássaro do gelo estar alí. Sabia disso, porém tinha se escondido atrás da porta mesmo assim. Queria entender o que estava acontecendo, e entendeu quando a fênix ferida contara seu relato: a forma como homens a destruíram.

Mayta teve muito medo na época. As fênix não estavam acostumadas aquele tipo de coisa, nenhum homem de sua espécie se atreveria a encostar em um fio de cabelo de uma mulher sem sua permissão. Eles eram ensinados desde pequeno sobre respeitar os limites do próximo. Claro que existiam os que enganavam ou não aceitavam o diferente de si. Nem todos eram boas pessoas de caráter ou boa índole. Mas se uma fênix tentasse forçar uma fêmea seria condenado imediatamente. Estupro não era algo que praticavam em sua sociedade matriarcal.

Mais tarde, enquanto toda a Vila dormia, Mayta visitara a mulher que também estava adormecida, e deixou as suas lágrimas cair na boca da recém-chegada. A expressão de quem estava sendo perturbada por um pesadelo desaparecera das feições da moça que pareceu serenar.

No dia seguinte a fênix estava outra pessoa. Se sentia bem, apesar de ainda ter calafrios com o que passara, mas ao menos tinha forças para lutar de novo, para seguir em frente. Fora a própria Mayta, nenhuma outra fênix jamais soube o porquê da recuperação milagrosa da mulher.

(...)

— Eu entendo. - De repente o fitou amedrontada. - Você faria isso a alguém, caçador?

—Nunca. – Respondeu prontamente- É exatamente por esse tipo de coisa que já não quero minha vida ligada a dele.

Mayta acenou concordando.

Silêncio.

De repente outra memória invadiu sua mente e algumas coisas começaram a fazer sentido.

—A-acho que o carniceiro tentou fazer isso comigo... violentar.

—O quê?!- Ícaro a encarou incrédulo.

A medida que Mayta contava a lembrança voltava.

(...)

Ela estava presa, como sempre, em uma sessão das torturas que o velho a obrigava a passar.  Já não possuía unhas, todas foram arrancadas, e sua pele estava cheia de arranhados e perfurações.

—E então, desiste, minha cara?

Mayta cuspiu nele.

O homem limpou o rosto e sorriu divertido.

—Acho que podemos tentar outras coisas hoje. - Aproximou-se da fênix, puxando seus cabelos e lambendo sua face. -Mesmo machucada você ainda é muito bonita, sabia?- ela o fitou com repulsa- Talvez eu possa domar a fera se eu quebrar seu espirito.

Ele começou a deslizar as mãos pelos seios da mulher. Mayta fechou os olhos, sentia nojo da situação, mas não daria o braço a torcer.

—O que vai fazer, cretino?

Ele sorriu.

—Acho que vou usá-la.

Tocou em sua virilha. Mayta segurou um grito de nojo.

Ele teria continuado se o chefe de Ícaro não tivesse entrado naquele momento.

—O que pensa que está fazendo?

O carniceiro sorriu se afastando dela.

—Estava apenas explorando novas possibilidades com a nossa convidada!

O caçador empertigou-se.

—Não se atreva a tocar nela! É minha mercadoria, somente eu ou o futuro dono dela temos direitos sobre seu corpo.

—Talvez eu a compre de você. - deu uma piscadela em direção a Mayta- Você gostaria, minha cara? De passar o resto dos seus dias me servindo?

Mayta quase vomitou o pouco de comida que tinha no estômago.

—Se você a comprar poderá fazer o que quiser. Mas por hora ela ainda é minha.

O cientista resmungou e saiu chamando Ícaro, que estava no jardim, para que fosse leva-la de volta a cela.

Mayta agradeceu a lua por não ter passado pelo que estava prestes a passar.

(...)

— Eu não sabia bem o que ele ia fazer, eu apenas senti nojo daquelas mãos.

Ícaro fechou o punho. Estava com muita raiva.

—Mais do que nunca precisamos sair daqui.

Mayta sentiu um arrepio.

—Sim.

Ele se aproximou.

—Ninguém nunca mais encostará em você a força Mayta. Eu prometo.

Ela sorriu de um jeito estranho, macabro.

—Não precisa se preocupar. Se eu sair daqui viva, garanto a você, nunca mais deixarei que encostem em mim sem permissão.

Ícaro teve a estranha impressão de que os olhos da mulher ficaram meio brancos, quase neve. Ela estava certa do que dizia. De repente a expressão determinada de Mayta suavizou e ela o encarou.

Aquele rapaz tinha passado por muitas coisas, estava estampado nas orbitais negras. O passado dele o atormentava.  No entanto, por mais que ela soubesse que ele havia matado e caçado muitos de sua espécie, sentia que Ícaro não era uma má pessoa. Ele sempre enxergara seu povo como animais que matavam. Como monstros.  Por que não mataria bichos que lhe pareciam ameaças?

—Você ainda acha que sou um monstro?

—Não. - Respondeu prontamente

—Você acha que meu povo é um povo ruim?

Silêncio.

Ícaro pareceu abatido. Seus lábios ficaram pálidos.

—Eu espero, honestamente, que você seja uma exceção.

—Por que diz isso?

—Por que se eles forem como você... se não forem apenas animais assassinos como sempre pensei que fossem, então...

Então ele teria matado inocentes. E a culpa o assombraria por toda a eternidade. Fechou os olhos. Aguentaria aquela dor? Seria capaz?

De repente uma ternura intrigante tomou conta da princesa. Levantou-se e seguiu até onde o rapaz estava, encostando suas mãos no rosto do caçador, o envolvendo.

—Você não é uma pessoa ruim, Ícaro. Mas errou muito nessa vida e agora vai ter de carregar o peso de seus erros.

Ele deixou que ela lhe acariciasse. O que estava fazendo? Abriu os olhos.

Agora os dois estavam perigosamente próximos.  Eles podiam enxergar toda a dor e sofrimento que ambos traziam consigo, tudo que seus espíritos carregavam com tanto pesar. E, somente quando pareciam ter visto tudo que os olhos permitiam, encontraram o perdão um do outro. Mayta o perdoava pelo que fizera a ela e a todos de sua espécie e Ícaro perdoava a espécie dela por ter tirado sua família de si. O perdão próprio, no entanto, demoraria muito mais tempo para chegar ao rapaz. Talvez nunca chegasse.

Ela se aproximou ainda mais.

Os lábios da princesa das fênix procuraram os do caçador de pássaros. Suas línguas dançaram juntas por um longo momento.

Ícaro a enlaçou pela cintura e deixou que suas bocas e mãos explorassem ternamente cada centímetro de Mayta tendo cuidado para não machucar o corpo já judiado. Ele estava entregue:  deixou-se envolver pelos cabelos negros, aceitou que ela o deitasse no chão e permitiu que Mayta tentasse curar a alma ferida dele, enquanto se esforçava em mostrar a ela que não estava mais sozinha. Nunca mais estaria.

As roupas foram postas de lado.

E, em um local onde apenas o sofrimento fora presenciado, duas espécies fizeram amor.


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Notas finais do capítulo

E aí? O que acharam?

Bjs



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