O Pássaro do Gelo escrita por MaNa


Capítulo 28
Capítulo 26


Notas iniciais do capítulo

Finalmente chegou! Espero que gostem... As férias acabaram e a vida está muito atarefada. Me perdoem pelas demoras passadas e futuras.

Divirtam-se



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Capítulo 26

Faltava apenas uma noite para que o açougueiro voltasse de viagem. Mayta estava muito melhor, comia tudo que Ícaro lhe trazia (o que incluía frutas frescas roubadas da cozinha) e bebia muita água.

Os dois estavam sentados: ele dentro da cela, mas encostado na grade de frente a prisioneira, e ela ainda acorrentada, porém de forma mais “frouxa”, Ícaro liberara as correntes o suficiente para que conseguisse mover os braços com mais facilidade. No entanto, apesar da bondade do rapaz, a erva ainda estava sendo colocada em todas as suas comidas impedindo Mayta de usar seus poderes e a deixando muito fraca.

—Você melhorou.

—Não entendo, por que parece se importar?

—Não me importo, mas não gosto de ver pessoas sofrendo.

Ela riu de um jeito pouco alegre.

—O que foi?

—Eu não sou uma pessoa, sabe?

—Parece com uma.

—Mas não sou. Sou um pássaro. Não sou humana, essa não é a minha verdadeira forma.

—Enfim admitiu! Então é um pássaro.

—...

—E? Ainda assim é diferente. Parece-me muito humana.

—As fênix costumavam ser fascinadas pela sua espécie. Nós gostávamos tanto que desenvolvemos a habilidade de parecermos como vocês, mas ainda não somos humanas. Somos espíritos livres.

— Você pode não ser uma de nós. Mas também não se parece com eles.

Silêncio.

—Mayta?

—...

—Por que você é diferente?

A garota virou o rosto, não queria olhar aquele homem nos olhos. Era fácil se perder, como percebera há poucas horas quando ainda estava deitada no colo do rapaz, nas orbitais negras.

Lua, como era fácil contar tudo a ele! Os dois já conversavam há um tempão. Falavam de amenidades, como o tempo e qual eram suas cores favoritas. Só queriam preencher o silêncio.

—Isso não importa.

—É a razão de ele lhe torturar e de você estar aqui. O que aconteceu?

—Se eu contar você dirá tudo a aquele açougueiro.

—Açougueiro?

—O velho.

—Ah... – "É, o apelido combina", Ícaro não pode deixar de pensar.- Eu não contarei.

—Por que não? É isso que vocês querem de mim. Por que não contaria?

Sim, por que ele não contaria? Não tinha ideia. O rapaz passou as mãos pelos cabelos curtos quase os bagunçando. Por que parecia se importar com ela? Aquilo estava bem errado.

—Tem razão. Não me conte.

Os dois ficaram em silêncio por um bom tempo.

A noite estava chegando ao fim quando o “cientista” voltou.

—Olá, mocinha. Vejo que está curada de... Tudo.- Encarou Ícaro com um ar de desprezo ao ver o ferimento no ombro cicatrizado.

—Ela pegou uma infecção. Ia morrer.- Falou o caçador dando de ombros.

O homem suspirou.

—Tudo bem. Ainda tenho meses com ela. Várias feridas serão provocadas até que decida ceder e virar o pássaro. Garota, francamente, você poderia facilitar meu trabalho, doeria menos.- Sorriu de um jeito sinistro.

Ícaro engoliu em seco e olhou para Mayta que observava os dois sem expressão alguma. Nada falou.

—Você é quem sabe, pássaro. Vou trocar de roupas. Ícaro coloque-a na sala do mesmo jeito que antes.

—Isso é mesmo necessário, senhor...?

—Ora, meu rapaz, está amolecendo? Logo você, que mata sem remorso nenhum?

—Eu caço e mato quando necessário. Sabe que não gosto das fênix. Mas torturá-la assim é...

—É o quê? Desumano?- O rapaz se calou e o velho aproximou-se de seu ouvido.- Escute aqui, fedelho, seu chefe me pagou bem para descobrir tudo que essa peste pode fazer. Não interfira ou...

—Ou o quê?- Ícaro virou-se fitando o homem nos olhos. Ele parecia furioso, mas de um jeito... Calmo.

“Perigoso”, foi o adjetivo que veio a mente de Mayta que ainda assistia a cena intrigada.

—Não tenho medo de você, senhor, sabe bem que sei me defender. Mas temo que leve esse pássaro a morte e eu não passei horas preciosas a caçando para você destruir tudo agora.

O velho riu mais uma vez.

—Não se preocupe. Morrer ela não vai. Tomarei precauções...

—Acho bom. Meu chefe odiaria perdê-la assim.

—... Mas se ela não facilitar... A integridade física é mais difícil de manter. - Dito isso o açougueiro saiu, com um ar de desprezo, deixando os dois a sós.

Silêncio.

—Você deveria se transformar de uma vez e terminar logo com isso. – Ele não a fitava diretamente. Mayta já estava de pé, dessa vez, procurando os olhos negros.

—Você realmente não se importa comigo, não é?- Inquiriu.

—Eu não a conheço. Não me importo com pássaros. Já matei muitos e cacei vários de vocês.

Um frio terrível percorreu a barriga da menina.

—Sim, inclusive sou sua nova mercadoria. Que idiota eu fui.- Riu sarcástica, desistindo de encontrar os olhos do rapaz que agora a estavam observando com intensidade, mas sem que ela percebesse, pois focava em um ponto qualquer na parede.

—Idiota?

—...

—Idiota?- Tentou de novo em um tom mais alto.

—Eu achei que poderíamos ser amigos. Que você pudesse me ajudar. Mas me enganei.

Silêncio.

—Você vai ser torturada e viver em sofrimento. Deveria ceder e se transformar de uma vez.

—Sim vou sofrer.

—Então?

—Mas está enganado. Não vou “viver” em sofrimento.

—O quê?

Finalmente os olhos se encontraram.

—Eu simplesmente não vou viver. Escolho morrer.

Ícaro suspirou.

—Sabe que não deixarão.

—Um coração parado não é o único jeito de morrer.

OoOoO

Um mês se passou, todos os dias Mayta recebia um pouco da erva e era levada ao quarto, por Ícaro que, com o tempo, não aguentou mais escutar os gritos de agonia que saiam daquele aposento. Passou a ir caminhar por uma trilha da floresta, praticar arco e flecha, qualquer coisa que o distraísse.

O rapaz a observava nas noites de lua cheia. Como ela tremia, presa as correntes, como se lutasse com o próprio corpo contra a transformação espontânea. Parecia exaustivo. Seus olhos perdiam o foco, começava a suar frio e tinha convulsões. Ele até tentava ajudar, mas ela sempre gritava para que se afastasse. Então Ícaro apenas assistia, horrorizado, a dor da garota.

Um dia estava sentando com seu chefe e o seguinte diálogo aconteceu:

—Ele vai matá-la. Ela não quer viver e não vai se transformar.

—Hã?

—Seu pássaro. Todas as noites fico naquela cela com ela, de guarda, a observando. A cada dia está mais fraca, não ganha peso, sempre com alguma ferida aberta e grita enquanto dorme, gritos horríveis de pura dor. Mas mais assustador do que quando consegue dormir é seu tempo acordada: ela está enlouquecendo. Começa frases e não termina nenhuma, seus pensamentos parecem se perder em algum tipo de nada infinito. Seus olhos... Perderam o brilho. Ela vai morrer, estou dizendo.

—Desde quando ficou tão poético?

—O que?

—“Nada infinito”- Gargalhou.

Ícaro ajeitou-se na cadeira, em frente à lareira, incomodado com a reação do chefe que era o mais próximo de família que tinha. O mais velho se sentou na poltrona em frente a sua. Os dois estavam hospedados na casa do velho.

—Foi à única coisa que reparou em tudo que eu disse?

—Não se preocupe, meu rapaz. Ela não vai morrer e teremos nosso dinheiro. O velho vai garantir isso.

—Não estou tão certo...

—Esqueça isso, Ícaro.

Mas o jovem não conseguia. Não depois daquele episódio.

Todas as noites ele ficava de guarda e conversava com Mayta. Naquele mês os dois, apesar de terem tentando não se falar, não obtiveram sucesso em manter a boca fechada. Ela o fascinava. Ícaro já sabia de quase tudo sobre os gostos da menina e várias das suas memórias da infância. Conhecia Vougan, Elvira, sabia que ela idolatrava a mãe e amava o pai. Descobriu que seu chefe matara a rainha das fênix. Escutava histórias sobre Aryana.

Em uma noite Mayta o olhara com tanta intensidade que o rapaz pensara que ela estava lendo sua alma.

—Por que nos odeia?

E, por alguma motivo estranho, ele contou. Contou como seus pais foram mortos por duas fênix que conseguiram fugir da casa de algum nobre e os assassinaram, sem pensar duas vezes, para ficar em um lugar escondidos por dois dias. Dois dias que o garotinho se manteve quieto dentro de um armário enquanto as duas aves permaneciam em sua casa.

Quando finalmente foram embora, Ícaro foi socorrido por um vizinho que era caçador. Ele lhe ensinou tudo. Foi como um pai para o rapaz.

—Eu jurei, jurei jamais perdoar a sua espécie. Vocês são monstros. - Não sabia qual a razão de estar contando aquilo para a prisioneira, fazia tantos anos que não contava a ninguém...

Silêncio.

—Então você nunca será meu amigo.

—Sim...

Ela suspirou.

—Sua raça forçou a minha ao exílio. Destruiu quase todos os seres mágicos nessa terra e nos caçou. Os pássaros que mataram seus pais deviam odiar os humanos com toda a fé que tinham. Além disso, vocês foram os causadores de minha maldição... Fizeram com que ela os odiassem e com isso me condenaram a ser odiada também.Vocês são os monstros.

—"Maldição", "ela", do que está falando?

Maytra riu.

—Você já sabe demais. Não vou lhe contar tudo sobre mim, principalmente essa parte. Você dirá ao velho.

Ícaro refletiu.

—Não direi. Dou minha palavra.

—...

—E eu nunca quebro minhas promessas.

—Como posso confiar?

—Não pode.

— E então?

—Eu já menti para você? Tudo que penso a seu respeito e sobre o seu povo eu lhe disse.

Silêncio.

—Ícaro... Eu não quero que eles saibam. Eu prefiro ser torturada, morta, a entregar as lendas de meu povo e minhas habilidades. Se lhe contar, se você souber e disser a eles... Eu estarei acabada. De todas as formas possíveis, entende? Será o fim. Eu tenho de proteger os meus, eu tenho de ter algo meu. Algo em que me segurar. E você já disse que não se importa comigo. Por que lhe entregar as únicas coisas que ainda são minhas?

Um longo silêncio se seguiu. Os dois se encararam perdidos em pensamentos. Afinal, por que ela confiaria nele? Por que ele queria tanto entendê-la e não contaria seus segredos?

—Porque você têm de falar. - Foi a resposta do rapaz.- Confie em mim.

Mayta começou a chorar, ajoelhou-se no chão em desespero, ela precisava confiar em alguém... Ela precisava de um pouco de esperança na humanidade, ela precisava...

O rapaz também ajoelhou a abraçando em seguida.

O que ele estava fazendo? Ícaro não conseguia parar de pensar que devia estar ficando maluco.

Quando ela se acalmou, encostou a cabeça no ombro dele, fechando os olhos, e começou a narrar a lenda da fênix negra. Contou a história de sua amiga Sofia, falou sobre todas as humilhações e dores pelas quais passou na vida. Contou tudo.

E Ícaro percebeu que não conseguia entender como uma mulher tão frágil poderia ser tão forte. A segurou com mais força.

Naquela noite ele se permitiu esquecer que odiava a espécie dela e apenas a abraçou como desejou ter sido abraçado no dia em que seus pais morreram.

Afinal, como diabos depois disso ele poderia simplesmente "esquecer"? O rapaz se ajeitou na cadeira novamente, percebeu que seu chefe adormecera, olhou para o teto e não conseguiu evitar o pensamento que veio a seguir.

“Eu me importo”.


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Notas finais do capítulo

E então? O que acharam?



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