Rosa do Deserto escrita por Y Laetitya


Capítulo 6
Memórias de alguns soldados




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Estava sentada na cama de Rose e olhando a foto antiga de antes. Uma criança loira de bochechas rosadas sorria para a foto, ela abraçava uma mulher de cabelos ruivos e curtos e um homem já grisalho de pele avermelhada pelo sol, ao fundo, uma casa de madeira e dois brahmin, o chão de terra batida e seca ressaltava uma vida difícil, virando a foto pude notar algo escrito, não que eu lesse como alguém de verdade, mas palavras como “mãe” e “pai” podiam ser entendidas por uma fiend como eu. Eu poderia dar tudo o que tenho –mesmo não sendo muito, praticamente quase nada– para poder ter vivido no lugar desta Rose, mesmo sabendo que ela já estava morta.

Collins entrou na barraca e sentou-se em uma cama ao lado da minha.

–Vendo fotos antigas? Matando a saudade de quem?

Levantei o olhar e percebi que estava sorrindo enquanto olhava para a foto de desconhecidos.

–Meus pais. –Menti.

–Interessante. Perdi meus pais quando era pequeno.

–Conte mais.

Ele pareceu surpreso com o que eu disse e seus ombros caíram.

–Essa me pegou de surpresa... Bom, eles trabalhavam como mercadores, meu irmão disse que foram mortos por fiends.

–E como você veio parar na NCR?

–Depois da morte deles, eu e meu irmão começamos a andar por aí em troca de tampinhas, entrar para a NCR nos pareceu a melhor opção. Primeiro ele e depois eu. Mas penso que o desejo de vingança foi o que me encorajou, embora eu não consiga atirar contra estes drogados quando penso que estão muito chapados para saber o que estão fazendo.

–Mas esta é a verdade. Não sabemos... Não sabem o que estão fazendo. Você parece muito justo quando diz, mas já o vi atirar contra uma fiend.

–Apesar de tudo, este é o meu trabalho, assim como o seu. –Ele se levantou e cruzou os braços, meio incomodado com o que eu disse. –Mas e quanto a você? Eu contei sobre a minha história, agora é tua vez.

Pela primeira vez desde que coloquei o colar de identificação que não era meu, eu soube que não seria fácil fingir quem eu era. Eu deveria me apoderar de tudo daquela pessoa, inventar um passado, enterrar toda a sua real história junto com o cadáver de Rose, parar de me referir a este nome na terceira pessoa. Enterrar a minha verdadeira história junto com o cadáver de Rose, parar de me referir à Miss em primeira pessoa.

Olhei para Collins e depois para a foto, eu não podia fugir daquilo.

–Meu pai morreu também, quanto à minha mãe, bem, estava doente quando a deixei e vim para cá, agora não sei como está.

–Só? Não se sente... Mal?

–Sinto... Bem, quer dizer, meu pai cuidava de brahmins na nossa pequena propriedade, era o suficiente para sobrevivermos e sempre ter o que comer no jantar, minha mãe reparava equipamentos ou armaduras de viajantes que passavam pedindo ajuda e às vezes vendíamos picadinho de brahmin, o dinheiro dava para nos manter, mas era sempre muito complicado, como é para todos, imagino. –Ele pareceu se interessar e sentou-se ao meu lado na cama, olhando a foto.

–São eles? –Apontou.

–Sim.

–Quem tirou a foto? Um irmão, talvez?

–Um amigo do meu pai, mas não o conheci direito, na verdade, ele passava regularmente por lá para comprar os picadinhos e acabou ficando amigo. Só.

–Filha única então? –Ele sorriu, olhando para mim com olhos castanho claro. –Teve sorte em conviver com seus pais por mais tempo. Mas... Aqui você parecia ser loira...

Pigarreei meio sem jeito, o que ele queria insinuar com todas essas perguntas?

–A cor do meu cabelo foi ficando mais ruivo conforme o tempo foi passando, mamãe disse que com ela foi a mesma coisa.

–Entendi. –Suspirou. –Acho que essa foi a conversa mais longa que tivemos. Não sei porque, mas eu me lembrava de você loira, talvez fosse só a minha imaginação.

Estava prestes a falar alguma desculpa esfarrapada quando uma mulher vestindo nosso uniforme entrou na barraca e se jogou na cama ao lado da minha, reclamando. Ela parecia estar bêbada e disparava muitos palavrões sem se importar que tivesse alguém a ouvindo.

–Maldito Brown, aquele puto ignorante, ainda explodo aqueles miolos, se é que ele tem algum dentro daquele saco de merda que chamam de cabeça.

–Parece que é hora de sair daqui, ela não irá fazer nada com você contanto que a deixe em paz até que volte a ser ela mesma. –Collins disse, levantando-se e indo até a porta, despediu-se e saiu.

Abri o baú e guardei a foto, certifiquei-me de que ninguém olhava para mim e peguei um cigarro, ele estava junto das drogas dos pacotes que eu roubei, não sabia como aquele médico não havia revistado minhas roupas, mas foi um golpe de sorte imenso. Acendi e comecei a tragar. Perguntava-me se era permitido estas coisas aqui, talvez não, assim como as bebidas, mas a fiscalização não parecia se importar tanto com o que os soldados consumiam.

O sol estava se pondo bem devagar e mais um dia havia se passado, meu ferimento estava curando rápido e quase não doía, em alguns dias eu deveria começar a fazer as atividades que qualquer soldado deveria fazer ali, não gostava de pensar nisso, aliás, minha vida inteira foi feita de vagabundagem, nunca obedecendo ordens quando não se tratavam de vícios, e de agora em diante, eu deveria começar a me acostumar com a ideia de explodir cabeças de quem antes eu via todo dia, trabalhar em grupo e dar a vida em nome deste país sem esperança, fingir ser patriota. Afastei alguns pensamentos da minha mente e continuei a tragar cada vez mais forte o meu cigarro, fui até a porta e saí, os raios laranja agora esquentavam minha pele ao mesmo tempo que a brisa de fim de tarde a deixava fria, alguns soldados caminhavam pelo acampamento em direção do refeitório ou até suas próprias tendas, os vigias começavam a assumir seus postos e tudo estava relativamente calmo demais, às vezes podia ouvir tiros ao longe e pensava em quem estava perdendo a vida, os fiends ou os soldados? Se eu me sentia uma traidora? Não. Nunca gostei de viver ali, nunca gostei de quem eu era obrigada a conviver, os meios, e na verdade já traí muitos outros sendo uma deles, não fazia diferença ser da NCR agora, tirar suas vidas seria mais um favor do que uma traição. Talvez eu estava começando a sentir falta de uma foda, mas isso não me fazia sentir vontade de voltar para lá. Nem um pouco. Eu poderia arranjar um companheiro de foda ali dentro do acampamento, se quisesse. Em três dias que estou aqui, comi mais que em uma semana inteira lá, eles estavam me conquistando pelo estômago, e a única coisa que realmente me preocupava era a abstinência de drogas que eu costumava usar e ficar chapada, mas talvez seja algo que eu possa lidar sem muitos problemas, mas já estava bolando um plano para usá-las sem ninguém encher meu saco e parecia muito eficiente.

Caminhei até um muro mais isolado, o sol estava quase sumindo atrás das imensas paredes que separavam os fiends de mim, então tratei de procurar um lugar em que seus raios ainda estavam batendo e sentei-me no chão, escorando as costas nos tijolos grossos e estendendo uma perna enquanto dobrava a outra, meu cigarro acabou, então acendi outro, satisfeita.

Um soldado caminhava em minha direção e acenou, ao se aproximar mais, pude ver que não o conhecia.

–Olá, sou Ethan Joseph. –Ethan era um soldado bem alto e de pele negra.

–Sou Rose Campbell.

–Não recomendaria que usasse isto. –Apontou para meu cigarro. –Mas quem sou eu para dizer estas coisas? Apenas fique na linha enquanto o major estiver por perto. –Sorriu.

–Agradeço pelo aviso, Ethan.

–Novata, não é? –Assenti com a cabeça. –Certo... Posso? –Ele apontou para meu lado e concordei.

Ele sentou-se ao meu lado e esticou as pernas também, pedindo um cigarro.

–Olha, foi bem... “Ousado” o que você fez com o major Brown...

–Perdi as contas de quantas pessoas já me disseram isso.

–Ele é um merdinha, mas para o seu bem, não tente fazer estas coisas sempre, ok? Ele guarda rancor desse tipo de gente que gosta de desafiá-lo, claro que não é a única que já fez isso, mas não queira saber os rumores que correm pelo McCarran com o que ele fez com quem achou que era melhor que ele. Você teve sorte de ter sido apenas um soco no estômago.

–Então ele age como uma putinha com todos?

Ele apenas riu e não disse mais nenhuma palavra, apenas tragou seu cigarro e quando acabou fez um aceno rápido, voltando para onde veio.

Agora já estava escuro e algumas estrelas já estavam no alto daquela imensa escuridão do céu, o acampamento tinha apenas meia dúzia de soldados andando aleatoriamente por entre as barracas ou jantando solitários no refeitório, então, este é o McCarran –era isso que estava escrito na frente e que não consegui ler– apaguei meu terceiro cigarro no chão e senti uma vontade súbita de usar jet. Resolvi não me fazer esperar e comecei a andar de volta à minha barraca. No caminho, uma soldada de cabelos loiros me parou para conversar.

–Rose...? –Ela perguntou, meio constrangida.

–Ela mesma. E sim, fui eu que desrespeitou aquele merda do major. –Estendi a mão aberta para poupar outra indagação da parte dela. –E você, quem é?

–Eu sou... Er... –Ela parecia meio constrangida e começou a se encolher, perguntei-me o que uma pessoa de personalidade tão fraca estava fazendo naquele lugar, para matar viciados que não deveria ser. –Margaret. Bem, obrigada pelo que fez com ele, foi muito... Corajoso.

Olhei um pouco curiosa para ela, não sabendo o que dizer, apenas acenei com a cabeça e sorri, ela pareceu sorrir timidamente de volta para mim e continuei a andar.


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