Rosa do Deserto escrita por Y Laetitya


Capítulo 4
Rose Campbell




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Abutres estão voando em círculos na região da estrada.

O dia está insuportavelmente quente.

Os comuns sons de tiros ecoam entre as vielas.

Depois de muitos dias seguidos de pura loucura, eu estou de volta, morrendo de fome, mas também me sentindo revigorada de certa forma. Em dias como esse ando por todas as ruas procurando algo para fazer.

Na verdade eu poderia conversar com muitas pessoas sem problemas, mas na maioria das vezes elas estão chapadas demais para considera-las boas companhias, às vezes permito-me trocar algumas palavras com elas, porque ambos estamos na mesma merda e nenhum de nós escolheu isso.

Estava fora da área de James, em outro lugar, onde as pessoas estão mais no fundo do poço do que onde geralmente fico, sinceramente, admito que vou para lá para ver o quão eu poderia estar pior. Mas todos nós somos filhos de ninguém, de estupros combinados com drogas. Na minha adolescência eu aparecia por aqui para procurar meus possíveis pais, mas provavelmente já foram mortos há muito tempo. Falo isto para mim mesma. Andei alguns quarteirões e avistei outro amigo de longa data, Juan, para a minha sorte, ele parecia inquieto e incomodado com alguma coisa.

–Ainda bem que você apareceu, Miss Tr...

–Não se atreva a terminar este maldito nome, seu merdinha.

Ele desvia o olhar, parece procurar por alguém, ou evitar. Já tinha um plano. Ficaria olhando para a cara dele enquanto bateria de leve com meu rifle na perna, uma hora ou outra ele iria implorar por ajuda, eu faria uma cara de duvida e então por causa de seu desespero e urgência eu receberia muito mais do que precisaria para cumprir qualquer serviço sujo. Começo com meu teatrinho, ele parece inquieto.

–É a NCR. –Bingo! –Eu estou ouvindo esses tiros e, cara, eu tenho certeza que são para chegar até mim, estou a manhã toda mudando de lugar nessa porra e esse maldito barulho de tiros me seguindo!

–A NCR, é? Mas você não é lá grande coisa.

–Eu terminaria de te foder se eu não precisasse da tua ajuda, sua vadia. –Ele aponta para o meu ferimento na barriga. –Não pense que estou com medo, claro que não estou, posso cuidar de mil desses merdinhas sozinhos, mas eu nem deveria estar aqui, se você quer saber... Sim, eu foderia com todos eles, mas não tenho tempo para isso! –Continua olhando para os lados.

–Sei, sei, então o que vai fazer? –Pergunto.

–Eu tinha que entregar algumas drogas na vault 3, mas o prazo já está acabando e com a NCR na minha cola vai ser um pé no saco. Eles parecem não te conhecer tanto quanto nós, então seria mais fácil para todos se você fizesse este trabalho no meu lugar.

–E o que eu ganho fazendo isso?

–Você pode ficar com algumas tampinhas. –Ele dá de ombros.

Os tiros continuam incessantes e se aproximando gradativamente.

–Vá se foder, eu não vou livrar seu cu por meras tampinhas. Eu posso ficar aqui o dia inteiro negociando uma quantia boa para ambos os lados, já você... –Aponto com o queixo para a direção dos tiros. –Não parece ter muito tempo para isto, não?

–Não é à toa que te chamam de Miss Trash, tudo bem, olha isso, duzentas tampinhas está bom? Você pode ficar com um destes pacotes também, o combinado era entregar cinco, de qualquer forma. –Ele me entrega seis pacotes de drogas mais as tampinhas.

–Gracias, Juan!

–Puta maldita. –Ele murmura, olha para os lados e põe-se a correr.

¨

É claro que eu não dou a mínima para essa tal de vault 3 ou para o Juan, não acredito como aquele otário me deu todas essas tampinhas mais os pacotes acreditando que eu iria entregar para qualquer um só porque ele precisava! Foi como ganhar em um cassino! Agora tudo o que eu preciso é me manter fora da vista dele e de seus viciados, o que não será um grande sacrifício, já que eu planejava há anos fugir deste lugar, tudo o que precisava era de algumas tampinhas, e este babaca me ajudou a concretizar esse desejo.

As crianças corriam, os tiros as furavam, uma pequena parcela conseguiu se refugiar nas ruínas das casas que desabaram há muito tempo, eram as piores, aquelas que não tinham mais esperança, que não tinham mais amor ou remorso, aquelas que tinham medo e desconfiavam de tudo, aquelas que já tinham perdido sua inocência. Depois de algumas horas sem sinal dos mesmos soldados, uma criança sai de trás de seu abrigo, olha para os lados e corre até as que jaziam no chão, todas sujas de terra e sangue, ele as revista e pega seus pertences sorrindo sem nenhum sentimento de culpa. Mas não foi isso que me fez ter nojo de Juan, foram as próximas cenas. Ele saca uma faca e começa a cortar seus membros para devorá-los.

¨

O sol começava a se pôr, deixando o horizonte incrivelmente amarelo, a temperatura começava a abaixar e tornar-se mais agradável, eu continuava com muita fome, mas agora tinha pacotes para virar varias noites. Esperava manter distância de Juan e seus amiguinhos, andei tanto que minhas pernas doíam mais que o normal, atravessei a cidade chutando uma pedra e agora estava chegando no seu limite, na periferia da periferia, onde nunca se encontra ninguém, bom para mim e meu sossego. O sol continuava caindo, fazendo as ruínas mais deterioradas projetarem uma sombra peculiar no chão de terra batida. Mas algo parecia diferente, aproximei-me com cautela, espera, não eram ruínas, eram um soldado morto.

Era uma mulher e havia levado um tiro na barriga, sangrando até a morte, provavelmente, nenhum de seus companheiros estava por perto para ajuda-la. Tinha um colar de identificação: Rose Hope Campbell. O corpo estava frio mas não havia entrado em processo de decomposição, talvez acontecera há algumas dezenas de horas. Começo a revista-la mais detalhadamente, aquele uniforme tinha diversos bolsos, chegava a me deixar com raiva. Poucos estavam cheios, possuía apenas algumas tampinhas, não mais que eu, uma granada e um pouco de munição –muito pouco mesmo–, sua arma estava em bom estado, porém, descarregada, carregava consigo apenas uma lata de sopa, que fiz questão de comer por ela.

Quando você vê alguém que atravessou a fronteira da morte, é normal sua cabeça começar a pensar sobre diversas possibilidades e especular como este havia chegado ao ponto que se encontrava, isso se você estiver sã, ou perto disto. Um soldado trás sentimentos fortes, ainda mais uma mulher. Iria enterrá-la, queria que fosse assim comigo. Foi quando veio-me à cabeça um pingo rápido de loucura.

Comecei a despi-la, seu número talvez fosse um pouco maior que o meu, ou eu que estava magra demais. Na NCR eu poderia viver com dignidade, viver por Rose Campbell.


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