Rosa do Deserto escrita por Y Laetitya


Capítulo 2
A aposta




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Há coisas na vida que eu não faço questão de guardar, outras que não pensaria duas vezes em esquecer, mas minha única bagagem, que não deixa me perder no tempo nem esquecer-me de quem sou é meu aniversário. A data. Já não me lembro desde quando a guardo comigo, nem como nunca esqueço, mas sei o tempo que estou no mundo, talvez isso que delimita a minha fronteira da sanidade com o resto dos fiends. Escolhi este dado porque só o perderei caso toda a minha memória se esvaísse, e se isso acontecesse, seria um favor à mim mesma.

Uma tarde do dia 23 de maio, estava um dia quente e seco, como sempre costuma ser, o sol castigava as ruínas da cidade que pareciam dançar com o calor, eu andava no que costumava ser uma rua chutando uma lata enferrujada, imaginando como seria antes da Grande Guerra, com carros brilhantes e de várias cores, pessoas nas calçadas, algumas apressadas entrando em estabelecimentos com placas neon na faixada, outras sentadas esperando condução e lendo um jornal, um barulho de conversa e de musica, todos muito felizes e sorridentes, casais em uma cafeteria comendo bolo e fazendo piadas uns com os outros. Sentei-me em uma cadeira suja que conseguiu sobreviver ao tempo sem muitos estragos, a vitrine dessa mesma cafeteria estava quebrada e a faixada muito deteriorada, a xícara de café feita de neons não brilhava mais –agora todo aquele lugar estava em ruínas e irreconhecível, sem o seu glamour da época–, era difícil aceitar que a periferia dessa cidade era devorada por demônios sedentos e descontrolados.

Era o dia do meu aniversário e eu não planejava ficar naquela monotonia o dia inteiro, já não era totalmente sã e precisava de drogas.

Levantei-me e olhei para os trapos que estavam as minhas roupas, com sorte no fim do dia eu estaria tão chapada que poderia tentar assaltar uma caravana para conseguir comida e uma roupa nova, levar alguns tiros e nem sentir dor, talvez eu morresse como muitos dos fiends e nem percebesse, seria um bom presente de aniversário para uma pessoa mundana como eu. Virei a esquina à minha frente e caminhei para o traficante mais perto, um velho conhecido meu.

¨

James era um pouco mais velho que eu e estava no dia do massacre que os soldados da NCR promoveram contra as crianças esfomeadas que correram em direção a eles. Assim como eu, ele fugiu e largou-as para morrerem sozinhas. Era um vagabundo desde pequeno que almejava ter tampinhas acima de qualquer outra coisa, traficava desde entorpecentes até pessoas, mas para minha sorte, sempre foi muito covarde, e por causa disso devia-me vários favores, eu livrava-o de certos incômodos e ele me fornecia o que geralmente precisava: drogas e até uma foda rápida. Acabamos ficando, digamos, próximos.

–Olha se não é a Miss Little Trash! –Sorriu, malicioso.

–Cale a boca, você sabe porquê eu vim.

–Sempre. Pelo menos quando está limpa. –Ele diz, dando-me um pacote. –Você sabe que isso não será de graça, docinho.

–Nunca é. –Apenas peguei o pacote de sua mão e o guardei dentro da minha jaqueta em farrapos. –Do que precisa?

–Você sabe, nunca estou envolvido só com as drogas, docinho –Pegou um cigarro, colocou-o na boca e o acendeu. –Quer um também? –Jogou a caixa e o isqueiro para mim e continuou com seu discurso –Acontece que há pessoas que pagam uma boa quantidade de tampinhas por uma criança de rostinho bonito ou com órgãos em bom estado... Diga o que quiser deles, mas costumam movimentar bastante a economia por aqui.

–Não tenho o dia todo, vá em frente.

–Vai com calma docinho, assim vai acabar com o cigarro antes de mim. Ultimamente eu ando muito ocupado e não estou conseguindo dar conta de achar esse tipo de criança, me entende? Se você fizer este trabalho em meu lugar, vai poder pagar muito mais pacotes como esse que está aí com você. O que me diz?

–Pode ser.

–Leve isto com você, céus, é a única que anda desarmada por essas bandas. –James me entrega um rifle a laser e algumas munições. –Sabe usar?

–Vá a merda, é claro que sim.

–Sempre tão delicada... –Ele sorriu maliciosamente e fez um sinal para eu ir embora.

¨

Deveria procurar as crianças antes de começar a comemorar meu aniversário ou preocupar-me somente amanhã? James não citou nenhum numero, nem preço. Eu não estava nem um pouco com vontade de ir foder com a vida de pobres inocentes, não agora, hoje eu queria apenas ir mentalmente para a strip jogar com meus amigos sem nomes, pagar uma rodada de bebidas fortes para todos e depois ir com eles para a cama. Mentalmente.

Andei até a minha loja favorita e subi as escadas que dariam para o antigo setor de administração deles, lá eu encontraria um colchão, uma parede destruída e nenhum teto, deixando uma “boa” vista para um monte de ruínas e areia. No meio das escadarias, meu estômago roncou e tentei calcular por um segundo quantos dias eu estava sem comer algo de verdade, não me lembrava mas também não me importava. Um barulho de tiro veio do andar de cima e me tirou dos pensamentos, agachei-me e saquei meu novo rifle –merda, não sabia como exatamente aquilo funcionava–, a verdade era que eu odiava armas, não tanto quanto odiava dos fiends, mas armas me lembravam do massacre dos soldados da NCR contra as crianças. Mais tiros fizeram meu coração pular e bater freneticamente, minhas mãos suavam e tremiam, mas meus pés estavam firmes e prontos para esgueirarem até a fonte do barulho. Andei pé ante pé, com o dedo no gatilho, era um soldado, o que ele estava fazendo sozinho alí? Meus olhos passearam pelo corpo agachado e encolhido num canto daquele cômodo atrás de entulhos, ele olhava por um buraco na parede frequentemente, e, em um mínimo sinal de perigo, atirava. Era o mesmo garoto de cabelos limpos que passara por mim no dia que alguns soldados explodiram as cabeças de estupradores.

–Não se mexa. –Apontei o rifle para ele –O que faz aqui?

–Não se aproxime ou eu atiro em sua cabeça!

–Vá em frente, eu nunca tenho nada a perder. –Continuei ameaçando com o rifle. –Aliás, aposto que você não tem nenhuma bala.

Ele aperta o gatilho e minha barriga fica molhada e quente, o som da arma disparando chegou ao meu ouvido só depois de todas as sensações possíveis, minhas pernas perdem a força.

–Maldito filho de uma puta. –Disparo contra ele também, mas não fico acordada para saber se eu o acertei.


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