Os dias da Ira escrita por magg


Capítulo 8
Colisão


Notas iniciais do capítulo

Fantasminhas queridos, custou, mas cá vai mais um capítulo. A boa filha à casa torna
^-^
Falando sério. Gostava mesmo muito de ter comentários vossos, porque vejo que a história é lida por bastante gente. Gostava de começar a publicar com regularidade, e agora de férias tenho essa disponibilidade.
Mas vamos entrar num acordo, queridos e queridas. Se eu tiver nem que seja mais um comentário, unzinho só, eu continuo a publicar esta saga. Caso contrário, percebo que não vale a pena, e voltarei a remeter a minha escrita ao silêncio e apenas à minha pessoa. A escolha é de vocês.
Mais uma vez, desculpem esta demora toda, mas estes meses foram muito enrolados.

Boas leituras *.*



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Lera, Lera…o que faço contigo? Para onde vamos agora?”

Pegou nela e abraçou-a com carinho. A menina passou docemente os braços pelo seu pescoço e dando-lhe pequeninos beijos de criança, deitou-lhe a cabeça no ombro.

– Não faz mal, Taliya…eu sei que a minha mamushka vai-nos ajudar...

Nataliya conseguiu, mesmo a medo, esboçar um sorriso fraco. Saberia ela, ao fechar aquela porta de café, estar a abrir ainda mais velhos fossos, só para unir novos caminhos?

Sim, era carinho. Talvez uma afeição ténue a brotar, insípida, no seu âmago, nos seus instintos protetores. Porque os sentimentos surgiam inexplicáveis, entre o medo e a coragem, a dúvida e o incerto, o longe e o nós. E tão longe estavam que lhe era impossível compreender, senão através dos sentidos, o que lhe era aquela menina. Aquela que se guiava no escuro pela mais profunda das felicidades. A única que sabia não sucumbir àquela guerra vírica, com um sorriso que aproximava descrenças, iluminava obscuridades. Era carinho, em toda a sua inquietude, controverso, vacilante. Eram os alicerces cimentados de gerações e a ruína, era o enfoque ameaçante de luz, trémulo, na degradação. Era carinho pela sua sina, pela força cruel com que a haviam jogado no mundo.

A voz do guarda dirigia-se novamente a si, bruta e invasiva, revelando que estavam à sua espera.Viu-o aproximar-se friamente, tremeu quando o seu braço insensível encontrou a menina, que tombou desamparada.

– Estava a ver que nunca mais chegavam…

Levantou o corpo leve da pequena pelo braço. Nataliya ergueu o rosto. Deparara-se com o olhar de desespero da menina à sua frente, capcioso, em dúvida tremente.

– Já estás a chorar? Mas ainda nem começamos a brincar… ora vamos lá ao pagamento…atrasaram-se muito.

– Mas já estamos aqui e é o que interessa. E ele, para onde é que o levam? De certeza que vai ficar bem?

Lera não entendia. Os olhos amendoados de Valentina, com a força interior da terra, fixaram-se no homem que gritava, naquela conversa indecifrável com a jovem mulher .

Aquele conflito escapava-lhe do seu íntimo inocente, e como tudo o que escapa, tudo o que escorre, fugidio pelos dedos, por entre o medo, no mergulho incerto da vida na dúvida, já pouco conseguia conter. Tudo lhe fazia cada vez menos sentido.

A mão da mãe encaminhando-a para um café. Os olhos de Ilya. Os seus braços desajeitados tateando-lhe, inseguros, os gostos, buscando-se lentamente reconfortantes, seguros, protetores e conhecidos dos seus. Até então, era a figura mais próxima que tivera de um pai. Um amor que nascera ali, nesse medo mastigado na guerra, tantas vezes esgravatado numa fuga para a vida que se revelava cada vez menos justa, desproporcional na sua sede de tudo, na ânsia de todos.

Os olhos assustados oscilavam entre Nataliya e os cantos da estação.

– Não te preocupes, pequena, parece que nasceste com sorte, vais para um bom lugar.

– O que se passa, Táliya? Para onde nos vão levar?

Sentiu-se levantar do chão, pelos braços do guarda. Os soluços infantis sairam-lhe, cada vez mais fortes, aflitos.

– Eu não posso ir contigo para esse lugar, Lera...

Escutava agora os gemidos brandos de Nataliya, que chorava também, num lamento que então não conseguia entender.

O som metálico do motor de um carro afastou-a das lágrimas que caiam, agora caladas, taciturnas e mudas, num orgulho infantil.

O homem saiu, entre vénias reverentes dos presentes, hipnotizado com a sua presença, sentidos ausentes, impresente, caminhando certeiro até ela, longe da sua comum figura austera e formal, com ele apenas a mesma insana leviandade como companhia. Consigo saíram também do carro dois jovens acompanhantes, um rapaz e uma rapariga, de aparência adolescente.

Os olhos brilhavam e as pupilas dilatadas confirmavam o êxtase daquela improvável reunião. Havia lutado por ela os breves 5 anos da sua existência. A luta que descortinava o enredo de toda uma vida, naquele momento aparentando-lhe serem dias apenas, pareciam-lhe já escassas as horas de esforço, já esquecidas, fluídas então naqueles breves segundos de euforia, de uma aprazível satisfação. Encontrava-se, por fim, diante da luta mais absoluta, do suor do esforço concretizado, ali, nas lágrimas céleres e ilógicas da conquista.

Colocou-a no colo, mostrando-lhe o seu mais terno sorriso, aos demais velado.

– Meu bebé! Varri o mundo inteiro por ti, minha pequenina!

Apertava-a de encontro o abdómen predominante, parecendo embala-la. Lera sentiu-se agoniar com o cheiro a suor e debatia-se para que a largasse – És o meu maior sonho. Sabes o que é um sonho, pequena?

Lera olhou-o, incerta, sem perceber o alcance da inusitada questão. – Aquilo que vemos, quando estamos a dormir?

– Isso mesmo...ela mentiu-me, sabes? disse-me que estavas morta. Mas, infelizmente não podemos estar sempre a dormir. Desafortunadamente, para ti, pequenina.

Lembrar-se -ia apenas de Nataliya correr para si e do aconchego dos seus braços. Os gemidos de Natáliya transformaram-se em prantos.

Não soube precisar o momento em que na estação ecoou o som que ficaria para sempre gravado na sua memória. O cheiro da pólvora misturado com o sangue espirrou-lhe para a sua roupa e face e Lera gritava, horrorizada. Sentiu-se cair com o corpo dela, dobrado em si, a estremecer de agonia. Aquele fluído rubro continuava a inundá-la, invadindo-a, esfregava a mão de encontro a camisa. O sono pesava-lhe nos olhos e já não sentia dor, a lógica parecia perder-se nos meandros do medo.

Ouvia, cada mais longe, cada vez mais espalhado, uma novo ecoar férreo dos gritos de Nataliya pela estação.

O homem limpava o sangue respingado dos cabelos grisalhos e oleosos, em total desvario

Ouviu o guarda interrompê-lo para informar que era altura de fazerem-se à estrada, visto que a patrulha deveria estar para passar com os sentinelas…

Uma voz, doce e conhecida, ecoou-lhe na cabeça, como se a ouvisse por toda a estação. Levanta-te Valéria. Vais ser uma menina crescida e aprender a lutar…

Mamushka? Mamushka?

Está tudo bem, não vai acontecer nada,

Acordou estremunhada. Sentiu o corpo dorido com o peso do de Nataliya, em cima do seu. Arrastou um pouco o corpinho pequeno e desembaraçou-se dos braços de Natáliya.

– Acorda! Não disseste que não podíamos adormecer até ser “uma” hora? Acorda molengona! – Gritava a menina, à espera de resposta. Falava com ela em busca de conforto. Nada. Nataliya permanecia imóvel no chão, o rosto lívido de encontro o solo frio de pedra. A menina puxou pelo braço da mulher que caiu, pesado na sua perna e, com a mão que tinha livre, puxou o saco de onde retirou uma manta.

– Está muito frio, podes-te constipar. – Disse meigamente a Nataliya cobrindo-lhe o corpo, aproveitando para cobrir-se também. – Porquê que não me respondes? Desculpa ter-me zangado contigo…eu só queria o vestido… Tenho medo ´taliya…– Soluçava cada vez mais forte. O corpo ao lado ainda não dava acordo de si....

Tentou saltar a linha para chegar ao outro lado, mas era pequena demais para conseguir. Depois dirigiu-se à entrada tentando, em vão, abrir a porta sem forças para a destrancar.

Lera soluçava bem alto. Tremia de pânico e de frio. Olhava para o relógio sem saber como se orientar. Mantinha os olhos fixos na linha à espera de ver o comboio passar. Coçava os olhos insistentemente, para não se deixar vencer pelo sono. Estava presa na estação, sozinha e sem ter para onde ir, tendo como companhia um corpo apático no chão.

Está tudo bem, não vai acontecer nada, não chores, meu amor

Lera acenava com a cabeça, dizendo que sim, segura de que Valentina a via.

Pouco faltava para as 01h00 quando foi de novo estremunhada. Um comboio cinzento parou na linha da estação de Kristiansand. A menina permaneceu sentada no chão ao lado de Nataliya enquanto a imagem do comboio se definia no seu olhar. Levantou-se e acenou, aflita, fazendo sinais. Um homem, alto e forte, saiu de uma carruagem correndo em direcção a ela.

– Estão aqui! – Gritava enquanto se dirigia a Nataliya, tomando-lhe o pulso.

– Consegue ouvir-me? Eu sou o Viko. E estes são o Marius e a Jiya. – Disse a Nataliya, apontando para um homem de cerca de trinta anos, de barba rara e cabelo cor de palha e uma mulher de tez negra de olhos tão escuros como o cabelo.

Lera fez um último esforço e correu para Jiya. Agarrou-se a ela com todas as forças que tinha, num impulso de sobrevivência. Jiya sentiu os seus bracinhos trémulos apertarem-lhe o pescoço e as suas pernas pequenas fincarem-se acirradas na sua cintura, sem mais a largarem.

– Está muito fraca, não sobrevive, perdeu muito sangue. E as sentinelas devem tê-la contaminado.

–xiu, calma. Nada de mal vai acontecer! – Jiya poisou a menina novamente no chão e Lera acercou-se de Nataliya, poisando-lhe levemente os lábios na testa.

– Tens que ficar boa, ´taliya. Estás a ver? Nada nos vai acontecer.

Jiya puxou-a docemente para si, mas foi prontamente interrompida por Viko.

– Vamos embora, Jiya. Não as podemos levar. Não há mais nada a fazer aqui.

Homens são mais do que simples Homens, ouvia dizer. Ali, nada havia de simples no ser-se humano. Não era sobrevivência, nem sequer o viver. O ser. Apenas. O que era Jiya. E tão difícil era-lhe definir o que era Jiya que perguntou-se muitas vezes se chegara a existir uma vida, antes de Jiya, ou se alguém se atreveria a ter uma vida, depois de Jiya

– Vamos levá-la connosco, ou então podes deixar-me aqui mesmo!

Jiya entrou com Lera para o comboio. Ao sentir-se afastada de Nataliya a menina voltava a debater-se num choro compulsivo. Esperou, embalando-a contra o peito, que o pequeno ser gritante acalmasse, explicando-lhe vezes sem conta porque não podiam levar Nataliya. Explicou-lhe que as patrulhas faziam rondas, que libertavam agentes tóxicos, as sentinelas, e que era essa a razão que os obrigava a deixarem-na para trás.

Aquela ocupação era-lhe tão desconhecida como foram até então as perífrases da morte. Ou aquele definhamento miúdo que tomava agora, insuspeito, incisivo, veloz, os seus contornos simples.

Retirou-lhe a roupa ensanguentada e limpou-lhe o sangue do rostinho miúdo e das mãos, procurando assim tirar-lhe parte do desespero. Depois sentou-a num dos assentos almofadados ao seu lado e, calmamente, deitou-lhe a cabeça no seu colo.

– Para onde vamos? Indagou a menina, em toda a sua curiosidade infantil.

– Para casa. – Respondeu-lhe Jiya.

Viko aproximou-se da mulher, deixou-se escorregar para o assento ao seu lado. Lera dormia já, exausta, mas finalmente tranquila.

– Sabes que não podemos manter uma criança connosco durante muito tempo, não sabes?

– Indagou, preocupado. – Isto foi uma cilada. Resta saber de quem. Apenas nós sabíamos que eles vinham para aqui… – Proferiu, em conjuração. E apesar de a termos salvo, perdemo-los, aos dois.

– Vamos ter que reunir o Conselho… – Anunciou Marius, num tom austero e ponderado.

O comboio fazia-se às linhas a alta velocidade, devorando o mato. Conquistara mais um pedaço da rua escura a que o domínio involuntário os atirara. No horizonte, o monte, o planalto adormeciam ali, no escuro e dentro de cada um deles. Como uma luz de esperança que brotava invisível, numa forma de consolo e segurança. Não era complicado seguir em frente em busca de salvação. Naquele caminho isolado ainda encontravam forças para lutar contra um fantasma real, que apenas os trilhos daquelas longas horas deixavam antever.

*****

Base de Abzu

Valentina percorria o Grande Auditório do Chanceler, caminhando certeira, de passos maquinais, como habituara todos os que a fitavam, semeados de dúvida. O fato grená impecavelmente engomado, de casaco abotoado e saia travada que lhe batia levemente nos joelhos, a cada passo acelerado que ensaiava.

Ao seu lado caminhava uma rapariga, ainda de aspeto púbere, e um rapaz de cabelo oleoso e dentes amarelados que a seguiam, curiosos.

No fundo do Auditório, o Chanceler encontrava-se sentado na sua secretária, estrategicamente colocada num púlpito que se elevava. O Homem, estendeu o braço pequeno para saudar a Observadora, de sorriso cínico nos lábios.

– Minha querida Observadora! Já vi que me trouxe os novos lacaios do Congresso! Sempre eficiente. Para a substituir, realmente dois destes não chegam. – Falou-lhe, fixando os dois jovens com uns olhos fumegantes e avaliadores.

– Obrigada, caro Chanceler, mas não tenciono ser substituída tão cedo das minhas funções. – Valentina retribuiu-lhe o sorriso seco e esfíngico, os dois jovens olhavam a figura, amedrontados.

Pesquisavam aquela divisão fria e metálica, percorrendo todos os seus recantos, absorvendo cada detalhe.

O Chanceler desceu da superioridade da sua secretária, suspirando, desinteressado. Caminhou em passos pequenos e pesados até aos jovens, que tinham diante de si a figura pequena e gorda do indivíduo, tão diferente do que aparentava, na sua tribuna.

– Ora bem, vamos lá começar. O tempo estreita-se por entre os nossos dedos! – Falou-lhes, sempre com o mesmo esgar sorridente entre dentes.

Levou a mão pequena e reboluda ao bolso de onde retirou um comando. Estendeu o braço, gordo e curto, coberto pelas mangas do fato cinzento que lhe batiam nos pulsos enfunados e, da parede de metal abriu-se uma porta que deixava antever um corredor, estreito e escuro.

Valentina precipitou-se primeiro, seguida pelos dois jovens, escoltados pelo Chanceler.

Percorriam o corredor debilmente iluminado por umas pequenas lâmpadas incrustadas no tecto de cimento, pintado de branco.

No fundo do corredor, Valentina acercou-se de uma porta preta, de ferro espesso. Colou o polegar num refesto côncavo e a porta abriu-se, automaticamente. Estavam numa sala ampla, de paredes revestidas de um granito cinzento. Na parede do fundo da sala, liam-se umas letras salientes, esculpidas por todo o cumprimento da parede, formando a palavra “FORÇA”, cinzelada na pedra, em letras garrafais e vistosas, em alto-relevo.

Os jovens entreolharam-se, em interrogação, perplexos com a divisão. O Chanceler encaminhou-os para uma cadeira de cabedal almofadada e mandou-os sentar.

Ao lado, sobre uma pequena mesinha de apoio, vislumbrava-se um aparelho retangular de madeira, com uns finos fios elétricos de cujas extremidades pendiam uns discos metálicos.

O Chanceler aproximou-se do pequeno aparelho, olhando para o ar espavorido dos jovens, que seguiam todos os seus gestos.

– Como se chamam? – Indagou, de olhar irónico nos olhos.

– Verena Bertolli – Respondeu a jovem, antecipando-se ao rapaz que se manteve fixo nela, silenciado na indecisão.

– … e tu? – Averiguava o Chanceler, exultante.

– Tindel…Gale. – Balbuciou o jovem, perplexo com a questão.

O chanceler mantinha o sorriso irritante nos lábios grossos, repleto de satisfação. Falou pausadamente e suave, quase entre sussurros, como se contivesse toda a sua indignação.

– Muito bem, Virena, Tindel. Apresento-vos o “espectro”. –Ironizou, pegando nos fios do pequeno aparelho e aproximando-os das têmporas dos jovens.

A jovem, de olhar perdido e inseguro, ferrou os lábios de medo e cravou a interrogação que lhe aguilhoava a mente nos olhos da Observadora.

– Não precisam ter medo, entreguem-se ao Chanceler e tudo correrá pelo melhor.

A rapariga pareceu abrandar. O jovem continuava hirto de aflição e calava no silêncio o medo que o atormentava, enquanto os discos frios permaneciam colados na sua cabeça.

– Ora vamos ver o que temos aqui… – Falava, agora verdadeiramente bem disposto, o Chanceler, enquanto ligava o aparelho a um projetor que acendeu, lançando uma luz branca na parede de pedra cinzenta.

– “In spiritus, veritas”. Revelem-me a vossa mente, e dar-me-ão nada mais que a fiel verdade… – proferiu, enquanto os olhos se lançaram cobiçosos para a parede, onde a grande névoa branca projectada começava a ser substituída por umas imagens aleatórias e desordenadas com memórias vivas e reais da vida dos jovens que passavam como num filme, disseminadas e incertas, saídas do fundo que eram os seus espíritos soltos. Virena sentada num colo meigo e aconchegado de mãe numa casa, recanto familiar, a transpirar de bem-estar

– O hipocampo e uma pequena dose de endorfinas tudo divulgam. São maravilhosas estas estradas da memória. Quando saírem daqui vão estar verdadeiramente renascidos.

Vamos apagar dos vossos pequenos armazéns, tudo aquilo que não nos interessa, vamos reconstruir todas as vossas sinapses, fazendo-as comunicar numa intenção diferente, mais eficaz.

Olhava para as imagens que apareciam projectadas na parede. Uma caminhada de triciclo por umas ruas cálidas e verdejantes, a primeira queda amparada num amparo suave e verdadeiro

Valentina olhava-os, impávida, de olhos castanhos frios e distantes. Falando, pausadamente.

– Vão ressuscitar, para um mundo onde viverão liberados do peso de tudo o que guardavam e que vos consome. Todas as mágoas, todas as ligações, tudo o que pensavam conhecer, será apenas um registo apagado da vossa antiga memória. Isso é FORÇA.

Os rostos dos jovens perderam o ar assustado enquanto relaxavam, serenando num limbo vago, aconchegado nas cinzas vazias da reminiscência.

O sorriso retemperador, aberto e constante de Tindel, um livro, amigos, ternura, os olhos direcionados para as nuvens, contar as estrelas, os sonhos

Quando na parede não restava nada mais que uma reluzente luz branca, vaga e vazia, o Chanceler desligou o “Espectro” e retirou os jovens das cadeiras, voltando a questionar.

– Como se chamam?

Os jovens entreolharam-se, sem saber o que responder, enquanto gaguejavam, de mente diluída. Valentina olhou-os, sorridente, e estendeu-lhes dois copos de vidro transparente, com um líquido viscoso. Os jovens beberam o conteúdo que se lhes colava na garganta, de trago amargo e aveludado.

– … o corpo liberta-se da vossa identidade e descarrega os vossos medos… – Proferiu, enquanto atiçou um ferro nas chamas vivas que dançavam numa redoma no centro da sala. Valentina poisou-lhes os ferros em brasa nos pulsos e os jovens não evitaram um brado de dor. Lentamente, uns códigos apareceram, letra a letra número a número, nos pulsos, numa queimadura em carne viva, que latejava, numa dor pungente e penetrante.

A Observadora aproximou-se deles, encaminhou os jovens, visivelmente debilitados, para as galerias de repouso, entregando-lhes uma farda castanha, que eles receberam, amparando-a nos braços, como a um tesouro.

– A vossa farda é a vossa força! Façam por merecê-la! – Falou-lhes, no seu tom superior e severo, com sotaque de leste. Os jovens acenaram, respeitosamente, encaminhando-se cada um para o seu quarto. A mesma imagem branca e vazia ainda se mostrava na tela. Arrumava os discos que caiam dos fios do pequeno aparelho. Inspirou fundo tencionando dirigir-se a casa. Os passos do Chanceler ouviam-se, arrastando a carne gorda e pesada, encaminhando-se até ela, apressado. A voz do Chanceler ditava-lhe outro destino.

– Ainda não. Eu quero ver...

Suspirou. Não sabe se tremeu, mas tudo em si estremecia.

O homem aproximou-se dela, os dedos gordos seguravam os fios do “Espectro”, oferecendo-os, para que os colocasse, dirigindo o seu olhar para a tela

a imagem de um homem de meia idade, alto, o cabelo negro contrastante com uns enigmáticos olhos cinzentos.

A mão da pequena mulher guiava-lhe o caminho, à sua frente, Roma gesticulou-lhes, impaciente, para que entrassem.

O outro analisava-a, num silêncio calculado. O corpo alto e magro aproximou-se dela, poisando-lhe a mão grande no ombro.

Sou o Leo … Dornov. Sinto muito pela tua família.

Por favor, não me odeies. Sabes o amor que é preciso ter para te trazer até aqui? Não te comprei, resgatei-te. Mas virás só quando quiseres. Não te obrigo.

Voltou a atenção para o deck arejado onde um corpo masculino se estirava, em alongamentos, ao vê-la, sorriu-lhe, cordeal, cumprimentando-a com um alegre aceno.

O homem alto que agora se encontrava ao seu lado apresentou-o como Sander Kinry.

Era magro, de estatura baixa, aparentando ter cerca de 40 anos. Ao seu lado duas meninas, saudavam-na também. Uma delas, de tez pálida e cabelos claros sorriu-lhe, entretanto, a outra menina cor de canela e olhos negros brilhantes procurava copiar a estranha posição em que o homem se encontrava

Fechou os olhos por uns momentos, enquanto a dúvida pulsava, sobressaltando-lhe todos os contornos, embutida em todos os seus poros. Vida ou salvação?

Quando os abriu, viu desenharem-se na tela os contornos de um canapé avermelhado, com uma crioula de cabelos de ébano, estendidos em grandes mechas pelos ombros estreitos. O vestido branco de chita, debruado a renda guipour no pescoço e nos punhos surgia alvo, na aura que envolvia o seu corpo delgado e pequeno de uma pálida luz. A mulher abriu os seus enormes olhos castanhos amendoados, iguais aos de Valentina, e falava, ternamente.

Não será uma perda de tempo. Depois de entenderes esta lição, poderás saber como perceber melhor o tempo...

A mulher, sentada no velho cadeirão, afagava-lhe os cabelos de fogo, passando-lhe docemente os dedos longos e finos pelas madeixas desalinhadas da filha.

Era demais para os seus sentidos. Desta vez os olhos de terra inundaram-se de lágrimas, enquanto Valentina perscrutava a figura angelical da mãe. O canapé vermelho diminuía lentamente, como um suspiro, diluindo-se numa luz fraca e desbotada da tela. A voz do seu superior manifestou ainda não estar plenamente satisfeito, pedindo-lhe mais.

Desceu as escadas devagar, circunspecta. Pela casa reinava ainda o silêncio da madrugada. Pela porta do escritório podia antever os primeiros raios de sol despontarem no inicio de manhã.

Bom dia, falou assim a voz, dando-lhe o mote para adentrar a divisão. Desta vez, ela poisava-lhe a mão no ombro, levemente doirado pelos raios da manhã. Estava cabisbaixo, envergando o sua farda do exército com um ar especialmente depressivo

Desculpa-nos aquela estúpida discussão…

Ela interrompeu-o, apertando-lhe ligeiramente o ombro. - Não faz mal, onde está o Sander?

Foram todos. Mais cedo ou mais tarde, todos fogem de mim... Parece que ele sempre conseguiu ser melhor pai do que eu.

Levantou o rosto sombrio para ela, deixando antever um olhar encovado de noites não dormidas

O Sasha? Levaste-o à escola? Não me sinto muito bem, hoje. Só me restam vocês os dois, Valentina...e ela, que gestas no ventre. Mas tem que ser feito! As palavras escalavam-lhe a garganta cobertas num estranho tom de voz demarcadamente melancólico

Sentiu as forças abandonarem-na e caiu no chão, dobrada sobre os joelhos.

O Homem fincou-lhe os dedos reboludos no ombro, na exata posição exibida na tela, apertando-o com força.

– ...mostra-me o resto!

O som do tiro saiu, previsível da arma poisada na secretária de século. Saiu em gritos do escritório, deparando-se com o menino que das escadas, olhava excecionalmente tranquilo, o corpo tombado no chão que tinha ainda no rosto o mesmo ar reflexivo que sempre o acompanhara, foi o que o ângulo da porta entreaberta deixava antever

Agarrou-lhe a mãozinha pequena e saiu com ele daquela casa, aquela a que voltaria, anos mais tarde...

Quando voltou a encara-lo a figura gorda estava ainda mais curvada, de olhos esbugalhados e lacrimejantes.

– Eu sempre soube que eras uma assassina. Sem escrúpulos, mentirosa...

Posso ausentar-me? – Indagou a Observadora, visivelmente extenuada, procurando levantar-se do chão.

A voz aviltada do Chanceler continuou, incisiva, demarcando a questão dela como irrelevante.

– Ela está viva. Bem sei. Sabes bem que nada escapa ao faro do Chanceler. Mentiste-me. Mas toda a ação trará a sua paga, a bom tempo.

Contudo, a ela, as emotivas advertências pareciam não intimidar.

– Posso ausentar-me, por favor, meu senhor, estou exausta.

Ele sentou-se com ela no chão, deixando escapar uma das suas gargalhadas dementes.

– Muito bem. É neste tipo de jogo que queres entrar. Diz-me, Valentina, o que achas que devo fazer com ela?

– Ela é sua propriedade, meu senhor, faça com ela o que melhor lhe aprouver.

Sem que ela compreendesse, talvez porque o entendesse bem demais, ele pegou-lhe nas mãos, beijando-as em seguida, notando-lhe a cravada expressão de repugnância.

– Sander, por favor. Estou exausta, e ainda tenho uma Base a visitar.

Por fim, foi liberada a abandoná-lo e percorreu em passos largos o auditório.

Dirigiu-se a casa, voando em direção ao quarto. Os pequenos dígitos vermelhos do relógio giravam, numa dança imperativa, soando imperiosa e crucial, ditando-lhe o propósito.17h00. Sentou-se aos pés da cama. A dúvida de sempre pulsava ainda

Vida ou salvação?

mamá, eu não consigo! tenho tantas saudades, estou tão cansada. Queria estar contigo…– A voz saia-lhe fraca e embargada. Valentina soluçava, de novo criança, nos braços doces do amparo de mãe.

Não chores minha garça, o Universo encarregar-se-á de nos voltar a reunir…a seu tempo

Exatamente meia hora depois apresentava-se com o mesmo ar esmerado e primoroso, curiosamente sozinha. O Governador assomou-lhe à entrada no nível inferior da Base de Abzu, sendo informado que não teriam a companhia do Chanceler, que se encontrava indisposto.

A fadiga fazia-se sentir ainda, em dores difusas. E por mais que se esforçasse para não dar a perceber, aquela proximidade forçada entre ambos não estava a ajudar. Percebia, os olhos do mais recente Governador revisitarem-na, percorrerem, num escrutínio diligente do seu corpo, todos as provas possíveis de um embaraçoso cansaço, até poisarem nuns olhos vermelhos fatigados, que pela primeira vez, não o desafiavam. O silêncio foi quebrado pelo sorriso indulgente do Governador.

– Estou muito feliz que tenha aceitado esta visita pela minha Base. Com a revolta dos escravos nos Montes Urais têm chegado poucos trabalhadores, e os poucos que resistiram à viagem encontram-se de quarentena, na área de isolamento.

Passaram a designada área de deteção. Um guarda trazia algemado um jovem, que se movimentava com dificuldade. Fechou a porta da cela e dirigia-se ao seu posto, na entrada, gatafunhando algo num caderno, no canto superior direito. Depois sorriu para si, orgulhoso do seu trabalho. Fechou a agenda, passando-lhe a mão pela capa de pele preta, como a um tesouro, apercebendo-se então das duas extraordinárias visitas. A Observadora, cujos passos maquinais haviam cedido à cadência do choque e o Governador, que mirava, de olhar terno e enlevado, a garganta feminina engolir em seco, numa espécie de nó, enquanto os dedos se fechavam, recolhidos à mão.

– Vamos, cara. Esta visita é maçadora demais, para um só dia. – Falou, retirando-a do abalo daquela breve colisão.

Ela mantinha-se absorta, num silêncio afincado. E quando deu por si, estava já noutro nível, noutra divisão, no escritório do Governador, que lhe oferecia gentilmente um copo de água.

O seu íntimo impelia-o a examinar todas as mínimas nuances de personalidade, como um vício. E da dela, gostava. Gostava de jogar-se peregrino pelos seus ímpetos mecânicos e ultra coreografados, de percorrer, já automaticamente, de fazer-se mecenas dos seus deslizes voluntários.

Era um jogo que valia a pena jogar

Por isso, e mais uma vez, vezes demais quanto estava com ela, sorriu. Lembrou-se então das palavras que poderiam arrancar-lhe aquele tumor íntimo e salva-la do estupor.

– Observadora, a nossa visita guiada estava a ser tão agradável que me esqueci da agenda de registos para assinar. Cara, se me fizer o favor.

A mulher levantava-lhe o olhar pela primeira vez, desde que chegara aquele compartimento e prontificou-se de imediato a ajudar.

Era um jogo que valeria a pena pagar o preço

*****

Haveria de voltar. Um dia. Quando a terra não tivesse fronteiras. Porque ela o tinha previsto e confiava nas suas palavras. Valentina, Valentina, eterno glacial, indiferente e distante, indefinidamente fora dos seus limites, tão sem alcance…chamo-te como se disso dependesse a minha vida…. Se me ouves, porque não chegas?

– Chegamos, levanta-te! – Ilya fora interrompido dos seus pensamentos saindo do carro puxado pelos dois guardas. Tinha chegado à Base. Caminhou certeiro com os guardas enquanto estes desbravavam caminho até ao nível inferior. Ilya teve que semicerrar os olhos para se habituar à escuridão do nível subterrâneo em que entrava. Um dos homens que guardava a entrada sorriu aos outros e olhou enojado para Ilya que até então não se apercebera do aparato que causava a sua condição física.

– Estás num estado lastimoso. Trata desses ferimentos, lava-te que ainda tens muito a fazer. Tens sorte. Normalmente vocês chegam aos bandos. A tua viagem foi mais calma… – Disse-lhe, encaminhando-o para uma pequena divisão parecida com uma cela, poisando no chão um saco cama e uma tigela metálica com água.

Ilya chegara ao incerto. Se aquele era o caminho que escolhera, já não podia dizer. Contudo, enquanto as fronteiras do seu ser abrangessem aquela ninharia de dor, seguiria para onde o remetessem.

Ilya sentou-se no chão, ao lado do saco cama. O ar ali era tão denso e húmido que se tornava quase difícil respirar. Gotas de suor escorriam pelo seu tronco nu. Pegou na tigela de água onde flutuava um inseto já morto. Rasgou um bocado de pano da camisola azul já rota e enfiou-o no recipiente, passando o retalho pelo rosto magoado.

– Não pode passar, não pode. Isto é uma área restrita! – Gritava aflito o guarda.

– Seu idiota! Eu sou a Observadora do Congresso! Certamente que não quer que reporte a sua conduta inadmissível ao Governadou ou ao Chanceler…– Disse uma voz segura de si, com sotaque de leste.

O Guarda calou-se cabisbaixo e deixou-a passar, contrariado, seguindo-a pelo corredor.

Ilya sorriu e poisou de imediato o bocado de tecido molhado na tigela de água, encaminhando-se para a porta. Já nada lhe doía. Seguia os passos no corredor que se aproximavam de si e o coração batia cada vez mais forte e compassado.

– Não preciso de sombras, guarda. Vá para o seu posto e não se coloque em mais situações de risco, que esta já basta! – Falava-lhe, arrogante e severa, a mulher.

O Guarda saiu para a sua secretária, deixando o caminho livre para ela passar. Valentyna Dornova respirou fundo e deixou-o perdê-la de vista até continuar caminho. Depois, seguiu para o quarto onde Ilya se encontrava. Dirigiu-se a ele devagar, quase como se precisasse de tempo para se recompor. Quando lá chegou, entrou serenamente no quarto onde o jovem já a esperava de olhos a brilhar.

– Ilya Andreev…será que me podes explicar o que estás aqui a fazer? – Disse-lhe a Observadora, inclinando-se para Ilya, falando no tom mais baixo que os sentidos do homem conseguissem perceber.

– Valya! Eu sabia que ias chegar! – Ilya sorria-lhe, sincero, do fundo da sua alma.

– Eu disse-te para evitares a Noruega. O que te deu, para te arriscares assim? – Interpelou ela severa.

Num impulso, Ilya puxou Valentina para si, mantendo-a colada contra o seu peito, a sentir a sua respiração ofegante ir ao seu encontro. – Vim ver-te! Todos estes anos sem ti… Já estava a dar em louco.

– És um verdadeiro inconsciente! Como te atreves? – Gritava-lhe num tom quase inaudível, Valentina, evidentemente fora de si, fixando-o nos olhos. – Larga-me ou chamo o Guarda…

– Chama…tanto me faz! Seria o paraíso morrer perto de ti! – Espicaçava-a o jovem ainda de sorriso no rosto, mantendo o corpo de Valentina preso ao seu.

– Não me tentes Ilya… – Valentina desviou os olhos do homem, fechando-os de seguida, como se um pesar penetrante se cravasse nela, desistindo de tentar soltar-se. Levou a mão ao bolso do casaco grená da farda e apontando-lhe uma arma, proferiu em toda a sua corrosão:

– Então, que assim seja. Ainda bem que me facilitas as coisas. Se é o que queres, escolhe Andreev, diz-me onde acertar…

Ilya olhou-a assustado, de olhos escancaradamente abertos e enterrados nela, sem expressão.

Valentina disparou à queima-roupa mantendo os olhos cerrados. Ilya soltou um pequeno gemido, fino e fraco. Agarrou-se à parede, tateando com as mãos o cimento frio. Valentina afastou-se, olhando friamente o jovem entorpecido.

– Como foste capaz? – Questionou-a incrédulo, antes de cair no solo num estrondo surdo contra ao chão.


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Notas finais do capítulo

Já sabem, apenas mais um comentário, e novo capítulo sairá ainda esta semana. Caso contrário, pensarei seriamente em abandonar a publicação desta história.

Beijo nos vossos corações!



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