Os dias da Ira escrita por magg


Capítulo 7
Passagem


Notas iniciais do capítulo

Cá vai mais um capítulo
Espero que gostem. Desculpem a demora. Mas muitos afazeres e sou só uma ^^



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1994
Vyborg

A tarde alongava-se no horizonte, num tom pardacento, numa lenta lassidão de Outono. O céu cinzento cobria toda a cidade, entranhando-se em cada póro dos rostos melancólicos e sombrios. Os pés molhados e os guarda chuvas alerta de uma chuva inesperada anunciavam para breve a chegada do Inverno. Nas árvores semi nuas bailavam ainda algumas folhas de aspecto amarelado, os troncos cobertos por um denso manto de musgo verde-escuro, aveludado e frio.

O homem carregava uma menina de aspecto frágil e franzino, que parecia estranhar o seu colo rude, mas que não se debatia. Os olhos vermelhos e inchados , mudos no rosto pálido, denunciavam-lhe o cansaço.
Quedara-se ali, no confortável exílio de silêncio que a guardava, e enquanto sentia o corpo todo estremecer agitado nos braços que a guiavam, violentos, impetuosos, fortes, deixava-se embalar, numa suave resignação, bálsamo doce para os seus sentidos.
E enquanto via, num perscrutar embaciado e baço, os pescadores passearem pela praia deserta, lançando as redes ao mar, reparou nas folhas que dançavam em reboliço, parecendo levitar. Gostava dessa leveza profunda e inexplicável que emanava de qualquer ser. Sorriu, numa conversa interna, de si, consigo mesma. Durou pouco aquele sopro de alma. Sentiu-se sacudir com mais força e finalmente a mão áspera do homem lançou-se à porta de uma pequena casa térrea de pescador. Foi quando sentiu emergir aquele tumulto revoltoso das entranhas e, na pequena boca rósea, os lábios mexeram, na quietude taciturna de uma prece. Os pés poisaram solo firme, mas o corpo não parecia serenar, por mais que tentasse dominar os espasmos que a tomavam.

A voz da mulher soou-lhe, da cozinha apertada, os olhos pretos, pequenos e arredondados, ao encontro dos seus, castanhos de terra, as ancas avantajadas movendo-se até ela em passos com sabor de eternidade.
– Coitadinha, está encharcada, meu pequeno pintainho.
Só quando os dedos reboludos poisaram no seu ombro pareceu serenar.
– Quem é, Roma? O que é que se passa aqui, porque trouxeste uma criança desconhecida contigo para casa?
Sem esperar a resposta, voltou-se novamente para o rosto que a admirava, em dúvida.
– Como te chamas? - Questionou-a, enquanto a menina apenas franzia o sobrolho, a cabeça abanava, insegura, dizia que não.
– Ela não percebe nada de russo, mulher...- Bradou, visivelmente irritado, o braço ondulante na direcção do pequeno corpo da mulher dos doces olhos negros. Mal sabia ele que o primeiro som que ouviria dos lábios rúbeos seria o do anúncio fatal de um final de tarde que mudaria irreversivelmente a sua vida, desejaria que nunca tivesse falado, que não falasse, sequer. Ou que as suas palavras fossem duras o suficiente para tortura-la, esquarteja-la, tal como ela deixara em ferida os seus dias por vir...
A pequena continuava a abanar a cabeça, negando aquelas estranhas reverberações que não compreendia.
– ...mesmo assim, vou dar-lhe um banho quente, está gelada. - Refutou, enquanto se dirigia ao grande fogão preto debruado a dourado da cozinha, colocando água para ferver.
–Olha, Roma, mesmo com tantos afazeres, vê se não te esqueces de chamar o canalizador...quando tiveres dinheiro - acrescentou num tom mais baixo.
O homem adentrou a exígua divisão de sorriso orgulhoso no rosto, retirando da mão um maço de notas, que poisou na pequena mesa da cozinha.
A mulher seguiu com atenção todos os movimentos dele, abrindo mais os olhos, a boca tremia de indignação.
– O que é isso, Roma Orloff? - cuspiu as palavras que lhe galgavam a garganta numa pressa galopante, o peito arfava revolto, naquela revelação.
– são rublos, mulher, o que mais poderia ser? - indagou, o tom jocoso imperava-lhe na voz.
– Eu ainda sei reconhecer a cor do dinheiro, homem! Mas, o que vem a ser isto? Desde quando recebes tanto dinheiro no baleeiro?
Outra vez o rosto dele cruzou o dela, desafiador. - Eu não disse que é dinheiro de trabalho..foi pagamento por trazê-la para cá. Parece que houve um golpe de estado lá em Belize, não tem ninguém ... -ouviu-a suspirar, vencida, enquanto se dirigia à menina, de panela com água na mão, encaminhando-a pelo estreito corredor.
– Vamos tomar um banho quentinho, depois vamos comer e fazer ó-ó, porque deves estar cansada. - Falou num tom melodioso, num afecto quase maternal. A cabeça da pequena parou os sinais negativos e a sua indignação pareceu acalmar, ritmada nas batidas do seu coração que começava a abrandar. Gravava todos os pormenores daquela casa, procurando alhear-se do medo que a consumia, crivado de dúvidas. As tábuas que rangiam a cada passo, as ripas de madeira escura que se alongavam por parte da parede até se encontrarem com uma tinta azul cor de céu. As molduras de caixilhos metálicos alinhadas geometricamente, exibindo paisagens antigas, imagens perdidas no tempo, como num filme, estimulando-lhe a imaginação fértil e infantil.
Ao fundo do apertado corredor, a casa de banho de azulejo branco, onde foi forçada a entrar. Trémulamente a mulher começou a retirar-lhe as roupas, uma a uma, com cuidado, quase em devoção. Poisou-lhe levemente a mão pequena e gorda no ombro, sorrindo-lhe, enquanto testava a temperatura da água com a mão livre. Tomou-a docemente nos braços, levantando-lhe o corpo leve até à banheira.
Sentiu o corpo aquecer, a pele de encontro ao calor reconfortante da água que lhe escorria na pele.
O corpo acalmou num suspiro profundo, enquanto sentia o frio amenizar.
Já vestida com um pijama de flanela grande demais para o seu corpo esguio, mas acolhedor, estava sentada na mesa da cozinha, a mesma onde ainda se encontrava poisado o dinheiro que Roma Orloff ali havia depositado, com grande brio. Não evitou deixar os olhos poisarem ali, naquele molho de notas coloridas. Logo a sua atenção foi desviada pela voz aérea e infantil de um menino que entrava de rompante na pequena divisão, vendo a mulher poisar na mesa um prato com uma sopa de cor arroxeada.
– ...huuuum, borshch. Adoro, mãe!
A mulher que estendia a colher à menina dirigiu-se ao pequeno rapaz:
– Nada disso, meu menino, primeiro banho e só depois o jantar!
Os olhos verdes irisados do rapaz cruzaram-se pela primeira vez com os da menina, que afastava o prato com a comida roxa, numa expressão enjoada.
O rosto dele ficou ainda mais avermelhado, os olhos fecharam-se, numa linha e a gargalhada saiu, quebrando o clima pesado que se fazia sentir.
– Quem é ela? - questionou entre risos. - É tão feia!
A mãe lançou-lhe um olhar carrancudo,de desaprovação, e na mesma expressão fechada fez-lhe sinal para se dirigir para o banho, o que o rapaz acatou de imediato. Pelo corredor ouviam-se ainda os seus risos, abafados pelo som acelerado dos seus passos que ecoavam pesados pelo velho soalho.
A atenção da mulher voltou-se toda novamente para a pequena, enquanto Orloff as observava, perto do fogão, com um olhar tão indignado quanto curioso com aquela estranha conexão.
– Anda, tens que comer, pintaínho. - Gentilmente, tentava levar-lhe uma colher de comida à boca. Tentou e voltou a tentar, por mais que a pequena continuasse a abanar com a cabeça que não, no rosto ainda a mesma expressão de repugnância para com a sopa.
Nessa altura, já o menino tinha tomado o seu banho e acabado de comer a sua sopa preferida e, já saciado, voltava novamente a sua atenção para a novidade em forma de menina que invadira a sua cozinha.
– Huuuuum, deliciosa,é assim que se come. Vê! - dizia, fingindo encher a colher no seu prato de sopa agora vazio e levando-a à boca. A menina esboçou um leve sorriso, e finalmente o rapaz sentiu-se até um pouco culpado por espicaça-la.
– Como te chamas? - A voz do menino soava estranha à pequena, que manteve o olhar fixo nele, ainda a sorrir. - Ela não fala?
– Ilya, ela não fala russo, e acho que não está bem, parece-me que tem febre.
Desta vez foi a voz de Orloff que irrompeu, num som grave, cortante.
– Deixa-te dessas lamexices todas que ela amanhã já não está cá. Tenho que a levar bem cedo à ulitsa ushakova, nº 10. Só não vai hoje porque já está muito tarde! Por isso, deixa-te de coisas, Olga, não faças por te apegares...
A mulher fingiu não escutar as brutais palavras do marido e pegou na pequena, dirigindo-se ao quarto. - Ilya, vem! Vamos dormir. - Chamou o rapaz que a seguiu, encolhendo os ombros para o pai.
Deitou a pequena na cama, cobriu-a com carinho e beijou-lhe a testa quente, ouvindo-a tossir. Dirigiu-se à cozinha e trouxe com ela um pequeno frasco com um xarope que lhe deu a tomar, olhando para os pequenos travos que a menina dava na colher.
Voltou a cobri-la melhor, e sentou-se na borda da cama, embalando-a. Pela primeira vez deixava-se levar, e mesmo com os mesmos receios a perturbar-lhe a calma, sentiu os olhos começarem a pesar. Diante deles, a janela iluminava a divisão, num brilho fraco de um céu azul profundo e estrelado.
« Estrelinha do céu, que estás a brilhar, dá-me por Deus a paz para nanar...estrelinha, estrelinha, que estás lá no alto, faz-me dormir, sem mais sobressalto» cantou, até sentir a respiração pesada da menina.
Foi nessa altura que Ilya ocupou o lugar da mãe, tomando a mão adormecida da pequena. Também ele, pela primeira vez, adormecera ali, no chão, a cabeça, pesada demais para sustentá-la, de encontro a borda da cama, a mão assente na dela, guardando-lhe o primeiro sono.

*****


Base de Abzu

Novembro 2012

Estatificou no patamar, os olhos errantes orbitavam entre a porta e o corpo baixo e anafado que a seguia, mesmo atrás.
A mulher conduziu-se, calma e plácida, ao escritório do Governador de Abzu. Levou a mão à porta, batendo por duas vezes os nós dos dedos no metal espesso e frio, aguardando permissão para entrar. A voz soou-lhe, do interior, distante e fria.
Deu passagem ao chanceler, que entrou arrogante na divisão, movimentando com dificuldade o corpo gordo, os cabelos cinzentos e oleosos ondulavam, agitados, na sua eterna ira, sempre inquietante. Ao ver o responsável daquele interposto, gesticulou exageradamente e sorriu, com um estranho brilho no olhar, expressão de uma felicidade quase ostensiva.
Estendeu firmemente o braço gordo ao outro, que se levantou da secrétária ao fundo da divisão, dirigindo-se ao seu superior, que ainda mantinha o braço estendido, em alienação.
Quando finalmente o homem se aproximou e as suas mãos se cruzaram, o chanceler voltou-se de novo para a jovem mulher que ainda esperava, na entrada do escritório.
– Observadora, quero apresentar-lhe o nosso mais novo Governador de Abzu...
Os olhos da jovem fitaram desinteressados a figura à sua frente. O corpo alto e bem constituído, os abdominais bem definidos, os seus cabelos castanhos-claros, o rosto adornado nuns belos olhos bondosos cor de mel, jovem demais para ser Governador, pensou. Até que foi interrompida das suas ideias errantes quando ouviu a sua saudação, a mão suspensa no ar, tomou a dela.
– Observadora, que honra. Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer tudo o que fez pela Aliança. Se não fosse a sua preciosa colaboração, nunca conseguiríamos decifrar aqueles seres quando encetaram contacto connosco. Já deu muito a esta causa.
Sorriu-lhe agradecida, erguendo o rosto para fita-lo novamente.
– Não dei nada a esta causa, a causa é que vai semeando os seus discípulos…Parabéns, pelo cargo! Sei que fez por merecer. – Respondeu-lhe, em elogio.
Sem demonstrar quaisquer sinais de dúvida, voltou-se novamente para o Chanceler que pareceu sair do seu transe.
– Pois é, meus caros, Governadores vêm e vão...um brinde ao recomeço desta Base!
– pronunciou as palavras, quase em tom de discurso solene, dirigindo-se ao armário de canto que continha as bebidas, retirou três copos, serviu-os, ergueu o seu que bebeu, prontamente, numa solidão entusiasmada. Os rostos dos outros dois ocupantes da sala fitavam-se num silêncio penetrante.
Até que os pensamentos delirantes do homem gordo foram interrompidos pelo carrinho de chá que trazia o jantar.
Os três dirigiram-se à mesa colocada propositadamente para o evento, o chanceler divertia-se levando os dedos gordos aos acepipes, alternando entre os doces e os salgados, enquanto beberivava, despreocupado. Foi de novo afastado dos seus afazeres pelo pigarrear nervoso do Governador.
– ...o caso foi muito grave, excelências. Os escravos rebelaram-se, e mataram todos os Guardas, é ainda tudo o que consegui apurar. O dossier que me apresentaram é dramático. Parece que os escravos também morreram todos carbonizados. Encontraram os corpos, algures em Yekaterinburg. Um deles era de um miúdo, ainda criança, vitimado pela inanição. Pobrezinho, deve ter custado a morrer.
O Governador olhou fixamente para a Observadora, vendo a consternação espelhada nela, que olhava o prato, incapaz de comer.
– Mas isso já foi resolvido. Foram muitas vidas. E, no que me foi permitido aprender nesta jornada, vidas pagam-se com vidas. Mas, tenho a certeza que, consigo, não ouviremos mais falar em sublevações, Governador. De si, suspendo a minha desconfiança. - Declarou o homem, limpando os dedos ao guardanapo estendido no peito. Depois, num súbito e breve momento de lucidez, depositou os olhos inquiridores no outro, falando-lhe, pausadamente. - ...provisoriamente. - Acrescentou. Cada letra aludida, sibilava, acutilante.
E, tal como as palavras haviam caído perceptíveis e densas na atmosfera carregada, voltaram para o interior daquela mente de contornos conturbados e obscuros. Bebia e comia com o mesmo enlevo com que havia entrado naquele compartimento, e quando se aperceberam, as horas tinham passado apressadas, mesmo naquele clima cerrado.
O corpo anafado repousava, agora adormecido e abandonado, de encontro o veludo macio do sofá, alheio às outras duas presenças do escritório.
O ar ficou ainda mais rarefeito e, na ausência de palavras, ela deixou os olhos percorrerem os ínfimos detalhes da sala, enquanto ele procurava gravar cada pormenor do seu corpo, analisava cada particularidade do seu rosto, das suas expressões veladas.
Viu a esbelta figura feminina levantar-se com uma graça airosa e leve, anunciando que era altura de retirar-se.
Quando esta se curvou para despedir-se do homem à sua frente, sentiu-o perdido nos seus contornos rigorosos e elegantes, e ofereceu-lhe o seu sorriso mais refinado. Só então o ouviu proferir as palavras.
– Boa noite, Valentina, durma bem.
E ela tremeu ao ouvir aquele nome articulado com toda a minúcia, em tom galante.

Tinha começado.

Apercebera-se desde o momento em que entrara naquela sala, desde que lhe notara o clandestino trejeito resistente para com o Chanceler, desde que se apercebera daqueles olhos curiosos a destrinçar-lhe cada directriz do seu corpo, desde que ouvira o anúncio do massacre de yekaterinburg pelas suas próprias ideias, esmiuçado pela voz calma e grave das suas palavras.

Estava feito. O jogo tinha começado.

O corpo direccionado para a porta girou de novo no seu eixo para adentrar a àrea do outro, os olhos abertos fitando-o, altivos.
– Não temos nome, Governador. - A frase maquinal e ensaiada expelida num silvo apenas para colidir com a calma contrastante que lhe fazia frente.
– Eu tenho.

As pupilas dilatavam mais e mais, o peito cada vez mais ofegante, mas não cedia. Não ali.

– Ouvi-o falar muito de si. Acabei por lhe ficar muito...afeiçoado. No fundo, sinto que já a conhecia.

Queria apenas concentrar-se na porta e sair. Haveria muitas outras, um número incalculável de passagens, contudo sabia ser aquela a única porta segura para abrir. Mesmo assim, mais uma vez a vida ficaria encarregada de mostrar-lhe que não fora talhada para ceder às suas vontades.

– E desculpe-me, menti-lhe, mais cedo. O rapaz sobreviveu. Eu próprio me encarreguei disso. Já agora, o meu nome é Daniel, Bruun.
O rosto que se encontrava voltado para a porta voltou a encarar o dele. Aquele olhar de aversão apertou-se no rosto oval da mulher, os olhos comprimidos cravaram-se numa fúria irrefreável.
– Como se atreve? Atiçar-me assim, diante do Chanceler?

Havia portas feitas para se manterem fechadas, rotas que deviam perdurar incólumes.

Voltaram-se ambos para o corpo recostado no sofá que se estirava, tediosamente, verificando que dormia entre sonoros roncos guturais.
Sem aviso prévio o Governador tomou-lhe o pulso, arrastando-a para fora da divisão.

– Quando me obrigaram a escolher escravos para a Base, não sabia até onde seria capaz de levar a tarefa. Homens que escolhem outros semelhantes, quem somos nós para isso? Recrutar escravos, outros seres humanos que são forçados a seguir-nos esgotados e a pé, sem sequer terem tempo para parar e descansar. E ainda são forçados a abater os mais fracos ou doentes. Porque têm ordens de não deixar ninguém para trás. Cada pessoa que tinha que matar, fazia-me morrer cada vez mais por dentro. Sentia-me sujo. Não consegui! Arranjei maneiras de salvar, a patrulhar as fronteiras, em busca de fugitivos para ajudar. Porque não consigo, não consigo mais viver desta maneira.


Havia passos não andados, planicies impercorriveis, indomáveis, de perímetros virginais, rotas incontornáveis, incorfomes nas suas linhas abissais

– Por favor, Valentina. Deixe-me ajudar. Eu também não concordo com esta ocupação. Esta humilhação, todo este sofrimento. Eu também tenho…tive…mulher e filhos. E acredito que todos os sacrifícios valem quando temos uma vida para proteger. Somos todos obrigados a fazer o mesmo, mas nem todos gostamos do que nos dão a executar…
O corpo dele permanecia próximo da porta entreaberta, a mão direita recostada na maçaneta da porta.
A Observadora aproximou-se mais, o rosto incrivelmente perto do dele, o braço esquerdo esticado, fechou a porta.
Lia-lhe os pensamentos, sentia-lhe a verdade que lhe saia em palavras, do coração.
– Eu já lhe disse que não sei a que se refere, Governador. Eu estou muito bem, obrigada, e não creio que necessite de ajuda. – Respondia-lhe, sem ponta de fraqueza. - Mas já que quer tanto ajudar-me, comece por se ajudar, por não ter medo. A vida está cravejada de morte. Mas é a vida que a acompanha. Está errado em ter medo da morte. É a vida que tem que temer, quando se cansar de fazer-lhe companhia.
Tinha 3 anos quando me deparei pela primeira vez com as escoltas da vida, na primeira vez em que a vi fugir da morte. Quando acordei e vi a minha mãe rezar, entre soluços.
E foi a primeira vez que falei com eles, também. Ela achava que eu falava com os «angeles».
E quer que lhe diga? É sempre a morte, é sempre ela que chora quando a vida se afasta.
E se pensa que isto é tudo aquilo contra o que tem que lutar, está enganado.
Esta ocupação foi de longe o melhor que lhe podia ter acontecido enquanto tem a vida como aliada. Porque permite-lhe manter consigo o sonhozinho medíocre de lutar contra ela. Não resista à mudança, Governador, é um desperdício de recursos. Porque quando tudo isto terminar vai desejar manter esta forma cínica e cómoda de luta, enquanto usufrui de tudo isto, de todo este luxo que diz obstinadamente abominar com essa...aversão determinada.
Sim. Não conseguia esconder. Era aflitivo vê-la perdida, tão longe da passagem que lhe concedia, suplicante, chamando-a pelo nome. Repetir-lhe-ia quantas vezes fossem precisas, se isso significasse o seu resgate.
Eram tão pantanosos e arredios os terrenos que lhes perdia o piso, que se sufocava a voz.
Valentina...
– Isto parece-me uma batalha perdida. Muito bem, Observadora, faça o que tiver a fazer. Eu prometo que não me entreponho nos sonhos da Observadora do Congresso. Não sou niguém! Acho que tenho muito medo para desafiar a preferida do Chanceler. – Falou-lhe o Governador, de sorriso brando nos lábios. O tom sedutor havia decididamente voltado.
O rosto dela tocou finalmente o dele, a respiração entrecortada de encontro o seu pescoço,
– Não tenha medo, o nosso tempo está praticamente a terminar. - A voz calma, construída, saiu-lhe baixa, enfática, colada ao seu ouvido, devolvendo-lhe a provocação. - ...cuidado, Daniel. Isto não é yekaterinburg e já não está num teste...Governadores vêm e vão, somos descartáveis e estamos infinitamente sós, por mais que tente, que procure, estaremos indefinidamente desamparados, não há vitória, não há glória, não há honra- Apenas isto...o tempo e o vazio tumoral dos dias.

Mais uma vez a jovem fez sinal de se retirar. Desta não a deteria. Viu-a travar, uma última vez
– quanto ao rapaz, devia tê-lo morto. Vai desejar tê-lo deixado morrer, muitas vezes, no seu íntimo. - Outra vez os sons baravalhavam-se, caústicos, incisivos.
– Agora é melhor ir para dentro, há alguém no sofá que está prestes a acordar...
E os olhos demoravam-se pelas linhas sinuosas do corpo que, indolente, se afastava. Sorriu e fez tenções de entrar.


*****

Sul da Noruega
Kristiansand

Faltavam poucas horas para o dia raiar. O tempo estagnara numa cálida madrugada. No horizonte distinguiam-se já os primeiros pormenores de claridade. Pequenas margaridas amarelas nasciam na frontaria de uma casa de madeira avermelhada que se avistava do outro lado do ancoradouro.
Ilya Andreev tentava, em vão, vestir uma menina de aproximadamente 5 anos.
Lera brincava no chão, sentada numa carpete vermelha, com umas loiças no chão. Foi quando a mulher loira, de grandes olhos verdes apareceu e lhe vestiu umas calças caqui e uma camisa bege que lhe ficava grande e larga, dando umas dobras na manga, soltando-lhe os cabelos ruivos do colarinho.

– Porquê que não posso levar o vestido? Não gosto nada desta roupa…pareço um saco de batatas! – Protestava Lera, amuada, de beicinho, numa birra de criança. Saiu disparada para a frontaria da cabana pedindo ao pai para a ajudar a subir para a carrinha. Já sentada, olhou para a jovem mulher e deitou-lhe a língua de fora, numa careta.

– ´Tás a ver? Cheguei primeiro que tu, molengona! – Retorquiu-lhe, provocando o riso em Ilya e Nataliya que baixou a cabeça, momentaneamente divertida. – Tem um génio forte esta pequena… – Respondeu, risonha.
– É melhor despacharmo-nos. Temos que nos fazer à estrada! Não tarda o dia nasce e podemos ser avistados. – Dizia assustado à jovem mulher, estendendo-lhe a mão com um sorriso, que a rapariga retribuiu docemente, segurando-a.


– Andamos como indigentes há um ano e meio. Estou farta Ilya, farta e cansada! Se a tivesses deixado com o velho não estávamos tão atrasados…mas não! Tinhas que trazer contigo a filha da Valentyna!
– É minha filha! Querias que a deixasse em Vyborg entregue à própria sorte? Pega nas tuas coisas e vamos embora…estás a perder tempo. – Falava Ilya calmamente. olhava a menina, compenetrado.

Nataliya subiu também para a carrinha e sentou-se, apoiando a cabeça na janela. Ao lado Lera não a encarava, ainda zangada.
Nataliya encostou a cabeça contra o vidro da carrinha e fechou os olhos, acabando por adormecer.
Pelo espelho retrovisor Ilya olhou para a filha que analisava todos os gestos do pai, os detalhes do caminho, de forma curiosa, assustada.
– Ainda estás zangada comigo? – Perguntou-lhe, trocista, de sorriso nos lábios.
– Estou com muita fome, não consigo estar zangada. Não vais dar-me de comer? – Interrogou a menina, aninhando-se no assento. Ilya baixou-se para abrir o saco aos seus pés, passando-lhe umas bolachas, que a menina trincou prontamente. – Preferia Mánnik*. [* Nota: Pudim russo feito de sêmola e fruta servido como sobremesa.] – Respondeu-lhe Lera, que mesmo assim, comia esfomeada. Quando os olhos começaram a pesar nos olhos castanhos, amolecendo-lhe o corpinho pequeno, aninhou-se no banco traseiro.
– baba, cantas para mim? pediu, entre bocejos.
O primeiro impulso do jovem foi que aquela criança presente e por quem fazia tantos sacrifícios não era sua. Mas foi interrompido pelos olhos da menina que o focavam, em aguda atenção, à espera. Por mais parecida que fosse com ela, com a agoirenta, sentia por ela um afecto puro e sincero. Estaria a aprender a amá-la? Mesmo representando ela tudo o que representava? Calou a sua voz mais íntima e procurou cantar, de forma desajeitada, a única música que se lembrava
«estrelinha que estás lá no alto, faz-me dormir, sem mais sobressalto...»


Horas depois o carro parou na berma de uma estrada alcatroada, ladeada de arvoredo. A noite tinha já caído no horizonte. Nataliya foi acordada bruscamente por Ilya que a mandou descer da carrinha, poisando o saco com mantimentos no chão. .
Ilya Andreev carregava ao colo a menina adormecida embrulhada numa manta castanha já gasta. Nataliya saiu curvada da carrinha os olhos verdes inchados de sono em direção a uma estação de comboios vazia.

– São 22 horas. Por volta da 1:00 hora, passará um comboio, que temos forçosamente que apanhar. Perguntamos pelo Viko.

Um homem entroncado de braços musculados olhava-os arrogante, interrompendo abruptamente a conversa do jovem casal.

– Têm que me pagar por estes quatro dias extra. - Dizia ameaçador.

– Não tenho mais dinheiro… dei-vos tudo o que tinha. – Ilya fora apanhado desprevenido e a falsa fé. O homem permanecia de pé perante a figura do jovem que se debatia interiormente.

– Estou a ficar bastante “apoquintado”. - Explicou-se num russo pouco exacto. - Vocês não sabem reconhecer o trabalho arriscado de quem quer ajudar. Na vossa posição, é assim, já deviam saber pelos meses que andam fugitivos nos caminhos. Se não há dinheiro, ficamos por aqui. – Ripostava o homem ganancioso, vincado nos jovens e na pequena que acordara do sono e olhava aquela cena admirada e em dúvida.

A mulher lançou um olhar cúmplice ao marido e levou as mãos ao bolso das calças de ganga coçadas, retirando um maço de rublos que estendeu prontamente ao homem.

– Esse dinheiro não me serve de nada… sendo assim, não “rista” outra “solição” a não ser chamar os meus colegas da Guarda. – Atirou as notas para o chão em desdém fitando-a seriamente. Pegou de seguida num comunicador e falou apressado com uma voz que ouvia, apenas.

– Tenho aqui dois desertores…com uma cria. – Olhava com desdém para Ilya. Os olhos ateavam-se de contentamento.

– Se me deixarem trabalhar, eu posso pagar-vos mais tarde. – Respondeu Ilya numa última tentativa de escapar. A mulher olhava-o zonza de pânico abanando a cabeça em desespero.

– Vais trabalhar sim, seu miserável. Mas para a Base. – Respondeu-lhe o homem, largando uma sonora gargalhada.

Naquele instante três guardas saíram como flechas do porto. Ilya poisou a filha no chão num total estado de choque. Um dos guardas foi ao seu encontro atirando-o violentamente para o chão, apertando-lhe a cara contra o solo com o pé, pontapeando-o. A menina desatou a chorar sendo prontamente acolhida pela jovem que a apertou contra si, afagando-lhe os cabelos avermelhados.

– Pensavam que o nosso passatempo era ajudar secundários a fugir por pura compaixão? Tão útil ser-se crédulo! Vamos leva-los para a Base. – O guarda levantava o jovem ferido do chão encaminhando-o para um carro que se encontrava numa ruazinha acima da estação.

– Caem todos na mesma cilada. Que bela pescaria esta! – Achincalhava o homem enquanto via Ilya afastar-se com dois dos guardas e entrar no carro, lançando um olhar aflito à mulher e à filha.

– Não te preocupes…eu encontro-vos! Prometo-te. Nada de mal vai acontecer! – Gritou ainda, antes de entrar no carro que o levava a parte incerta. Nataliya baixou-se, de lágrimas nos olhos, segurando a pequena contra o peito que doía, apertado.
– Lera, Lera…o que faço contigo? Para onde vamos agora?


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Notas finais do capítulo

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