Os dias da Ira escrita por magg


Capítulo 9
Risco


Notas iniciais do capítulo

Cá segue mais um.
Boas leituras *.*



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Inspirou fundo por aquilo que lhe pareceram inalteráveis segundos perpétuos. Compôs a saia da farda, voltou a apertar o casaco, levou as mãos ao cabelo ruivo revolto e saiu disparada do quarto-cela percorrendo o corredor com toda a segurança, parando diante do guarda. O peito era agora um lugar estreito para o coração que se avolumava, cada vez mais agitado.

– Vim buscar o registo das entradas. – Falou, retirando-lhe a agenda que guardou debaixo do casaco. – Há um morto na cela. Recolham-no. Deviam ter mais cuidado na deteção! Podia ter contaminado os outros. Isto é, no mínimo, irresponsável! – Retorquiu, perante o olhar atónito do guarda que permaneceu sentado enquanto ela se afastava.

Subiu apressada as escadas de metal do nível inferior agarrada ao corrimão.

Entrou num gabinete e fechou a porta atrás de si. Abriu o casaco da farda, retirando o caderno que abriu na última folha, até que o olhar parou num código que passou para um computador. O perfil de Ilya surgiu quase instantaneamente no ecrã, apagou-o prontamente arrancando de seguida a folha da agenda.

É desta que dou cabo de mim...

Uma voz ao fundo chamou-a, imperativa. A mulher conduziu-se, calma e plácida, ao escritório do Governador de Abzu. Levou a mão à porta e, como sempre, bateu por duas vezes os nós dos dedos no metal espesso e frio, aguardando permissão para entrar.

– Trouxe os registos para assinar? – Indagava um rosto averiguador que a investigava de alto a baixo, num exercício que, curiosamente, lhe era cada vez mais costumeiro. Valentina estendeu-lhe a agenda, calmamente alerta, o raciocínio pulando ao máximo de velocidade a que conseguia atuar. Olhou para o relógio que marcava dezoito horas.

O Governador, sentando na secretária de vidro fosco, analisava distraidamente os dados da agenda.

– Estamos a perder muitos escravos, contaminados por sentinelas.

Valentina deixou-se poisar na cadeira em frente por breves instantes.

– Pensei que não se importasse com isso, Governador.

– É que já não sei que mais justificações hei-de dar, nos relatórios, nem sequer o que dizer, quanto daqui a pouco mais de um mês nos depararmos com eles, frente a frente.

O Governador parou o olhar no sítio da folha rasgada. Assinou a agenda e devolveu-a, com o seu comum ar desinteressado. Ela esboçou um sorriso, pedindo permissão para se levantar.

– Não me diga que já vai? Não imagina os tempos que passamos aqui sozinhos nesta Base, sem ninguém agradável com quem partilhar ideias. Não conseguirá conceber como é solitária a vida de Governador.

Valentina apertava, impercetivelmente, a agenda contra o casaco, olhando o relógio. O coração acelerado, ouvia apenas reverberações do Governador.

Dezoito e cinco

– Agora, se me permite, gostava de entregar os registos antes da mudança de turno.

Desceu até ao nível inferior, abrindo a porta, pulando as escadas a alta velocidade.

Dezoito e dez …o corpo de Ilya na cave…

Ainda nenhum guarda se encontrava no posto. Poisou novamente a agenda na secretária do guarda.

Já está. Nunca por cá passou …

Dezoito e quinze …

Dirigiu-se à enfermaria, onde se encontrava o corpo de Ilya Andreev estendido numa marquesa de inox, totalmente nu, apenas com a etiqueta no dedo grande do pé esquerdo com a sua identificação. Aproximou-se e tocou-lhe com o dedo indicador na pele rija. Trancou a porta por dentro, retirando de uma vitrina um pequeno frasco onde inseriu uma agulha que espetou friamente em Ilya. Encostou-se a uma parede de frente para a marquesa onde se encontrava o jovem e esperou. Poucos segundos depois, Ilya dava sinais de si com uma pequena tosse rouca. Abriu os olhos com dificuldade, enquanto procurava distinguir os contornos imprecisos que se desenhavam perto de si. Deparou-se com a figura da mulher, entre minúsculos pontos luminosos e indefinidos, inesperadamente plácida, diante de si.

– É adrenalina. Não te mexas. Estiveste em paragem cardíaca. – escutava as longínquas reverberações que lhe chegavam em sons confusos, a silhueta feminina caminhava da parede até ele, ajudando-o a sentar-se muito devagar.

– Temos pouco tempo. Vais ter que conseguir caminhar. – Dizia-lhe enquanto buscava umas roupas para o vestir. Saíram os dois, Ilya cambaleante agarrado ao ombro de Valentina, percorrendo o corredor da Base. No exterior, a noite já caíra bem negra. Com o recolher obrigatório, o caminho encontrava-se vazio. Deitou-o no banco traseiro do seu carro e conduziu-o por um carreiro de terra, para fora dos limites das minas da Base. Passaram por uma cancela que se abriu automaticamente. Ao fundo distinguiam-se várias casas iguais. Valentina parou o carro em frente a uma delas e retirou Ilya com cuidado. Ilya entrou diretamente para uma sala fria e desconfortável, apenas com um maple de cabedal castanho, uma mesa de centro e uma estante com livros velhos ao lado de um candeeiro de pé, sendo encaminhado para o único quarto da casa, deitando-o na cama de madeira escura.

Ilya sussurrava qualquer coisa que pelo trejeito sisudo das suas feições anteviu como sendo pouco agradável, contudo, esse ímpeto rapidamente o abandonou e acabou por deixar-se cair para o lado, enquanto a língua entorpecida se esforçava por balbuciar incoerências e ironias desconexas, envoltas em impropérios, que dirigia à presença salvadora, imperturbável, que não pôde evitar um breve esgar sorridente, antes de vê-lo adormecer.

Esse, Ilya já não o viu. Ou as portas não se teriam fechado atrás de si, tal como em todos os outros dias. Nem os seus passos, continuamente maquinais, ditariam tão certos o rumo das minas da Base, a que se dirigiu, no eco dileto de um vazio determinado rumo à estrada.

Podia dizer que sonhara com nebulosas imagens sub-consciênciais. Mas a verdade é que o efeito da adrenalina ou os largos meses que passara em fuga, antes desta inesperada reclusão, provocaram-lhe mais efeitos nefastos que dominavam o seu corpo do que a ira da traição. Qualquer imagem que pudesse involuntariamente ter-lhe assomado à mente, desfizera-se em cinzas, muito antes de acordar. De todas as formas, o corpo cansado sempre arranjava modo de domar-lhe o espírito em guerra. Era a robustez da matéria, a debater-se inteligente, compassiva, contra ânimos aflitos.

Uma melodia baixa ressoava, distante, numa outra divisão da casa, o que começava a enerva-lo até ao mais fundo dos seus sentidos, por sorte e até então semi-adormecidos. Levantou-se e sentiu que o corpo ainda lhe doía, macerado. Quando levou as mãos ao pequeno aparelho branco que entoava os sons, esquecido na estante, reparou nos sapatos de homem, sentado confortavelmente no sofá de cabedal. Os olhos subiram ao fato pied-de-poulle, azul tinta, até ao sorriso gentil que o cumprimentava, chamando-o pelo nome.

Pelos modos gentis nos gestos polidos e pelo olhar avaliador que o perscrutava, fortuitamente superior, só uma pessoa poderia ser aquele que se encontrava ali.

– Boa tarde,Ilya. Sou o Governador da Base de Abzu.

E assustou-se com a aquela presença. Porque estaria ali, o que quereria e como o conhecia?

Como se adivinhasse os receios do outro, o invasor serenou-o, naquilo que lhe soou mais um desafio, quase uma provocação.

– Calma, Ilya, não vim aqui para fazer-lhe mal. Vim apenas fazer-lhe uma proposta.

Levou a mão ao peito, contorcendo-se um pouco, sentou-se e preparou-se para escutar.

– Vejo que se está a recuperar bem, apesar de tudo. Gostava de poder ajudá-lo.

Por momentos, foi o olhar acutilante de Ilya que despojou as esperanças do outro.

– Não preciso de ajuda. Apenas de sair daqui e de ir ter com a minha filha e com a minha mulher. Não sei nada delas e isso agonia-me.

O homem não pôde evitar uma leve comparação, naquilo que lhe pareceu tão Valentina.

– Entendo-o. Mas acho que bem sabe que não pode sair daqui. – Levou a mão esquerda à testa e, como se esquecesse algo na improvável conversa que acabara de iniciar, voltou-se novamente à figura presente.

– Mas é claro que não sabe, que descabido da minha parte, acabou de chegar aqui. Devia dar-lhe um tempo, para ambientar-se.

Remexeu-se ansioso no sofá, e Ilya começou a perceber naquele ser algumas brechas de fragilidade.

– Sabe, gostava de poder dizer-lhe que entrava aqui, nesta Base, por um erro do acaso, que se escondia por uns tempos, tudo passava e desaparecia, para junto de quem ama. Mas, a verdade, é que não posso. Aqui, estamos longe disso tudo. Muito longe de uma vida…de um final feliz.

– Acho estranho ouvir alguém no seu cargo falar assim. Devia orgulhar-se da sua obra. Disto tudo que construiu.

– Pois lamento só vir a desapontá-lo um pouco mais quando lhe disser que nada disto é meu, nem nada do que vê neste lugar fui eu que construí. Talvez haja mais coisas que nos unam, do que nos separem, porque também eu fui obrigado a estar aqui.

Cargos não nos definem, e nem todos somos as nossas funções.

Não queria simpatizar com aquele ser. Cheirava-lhe a local abrupto, horas agrestes, queimando-lhe o peito, deixando nada mais que o travo decomposto da fé morta galgando-lhe à boca.

Não sorria. A sua vida era já demasiado restrita para dar espaço à ironia e uma prática demasiado recorrente de mentiras em que as visíveis cicatrizes mais internas não se comparavam àquele velado travo a queimado que o tomava, em tom de fúria.

Manteve-se sentando, distante e absorto, por mais alguns minutos e, tal como a sua mente se mantinha ausente de qualquer pensamento, também a sua companhia se conservava presente, sem qualquer reação percetível.

Não podia compreendê-lo. Não queria explicar as palavras feitas e mastigadas, a superioridade obscena de quem dizia abominar o artifício que o sustentava, como uma prova plena e irrefutável da honra que precisava de firmar, reanimada, num lance pudoroso de amor próprio.

E de novo aquele fel do julgamento precipitado na revolta, pelo descrédito da luta que agora o quebrava em exaustão. Todo aquele tumulto conturbado a zumbir-lhe nos ouvidos transtornados. Aquele homem que permanecia, virtuoso, paciente, nos sofás gastos.

– Sabe, Ilya, não devia sentir ódio de mim. Sou apenas um homem, votado a esta incompreendida solidão. Tal como ela, sei que também os meus modos são incompreensíveis. Mesmo assim, confio o suficiente no seu discernimento para pedir-lhe, mais uma vez, a sua ajuda. Esta causa não precisa mais de mim do que de si. Há escravos a morrer, às dezenas, diariamente, e temo que este número venha a aumentar. E, depois destes, outros mais virão, e depois outros, e outros, até sermos nós esses outros, e assim constantemente, até não persistirem mais outros, se nada se fizer. Uma mão humana vinha-me mesmo a calhar, no meio destes gaios e curas manipulados. Para além disso, sei que não seria uma mão humana qualquer. Vi o seu perfil, que me interessou imenso para esta Base. Sei que tem dois diplomas, formação em medicina e biologia molecular. – Falou, de chofre, numa austeridade passiva que quase não o deixou respirar .

Parou abruptamente e interessou-lhe a reação. Pela primeira vez os olhos de Ilya estavam sem aquela tonalidade agressiva e oponente, apenas fixos nele, numa expressão que revelava uma quietude, morna, a assomar. Haveria outros tipos de ânsia semelhantes ao seu desespero, novos cansaços que nasciam, a cada acordar, só para se verem cerceados, em constantes disputas.

– Não tem que me responder agora. Também sei que não irá a lugar algum. Dou-lhe tempo para pensar. – Levantou-se ligeiro, percorrendo a curta distância até a porta.

Ilya levantou a cabeça, percorrendo todo o pequeno espaço, procurando que o tempo lhe trouxesse a coragem, apesar das palavras que saíram não terem sido as mais certas. Era inútil manter em si aquela hostilidade repelente. Afinal, não poderia recolher-se em contínuos jogos de espelhos.

– Obrigado por me manter aqui, pela comida... – Falou, apontando para a mesinha de centro, onde se encontravam alguns alimentos, a que só então prestara atenção.

Olhando-o de esguelha pelo ombro, o Governador pareceu ainda mais espantado do que ele. – Já aí estavam, quando cheguei. Ela não largou a beira dessa cama, durante a sua recuperação. Mas não lhe diga que eu sei. Limito-me apenas a trazer para esta Base aqueles que acho dignos no seu trabalho.

A porta bateu, deixando Ilya apenas com os fantasmas que remoía, a sós, no silêncio. Teria muito em que pensar, contudo, olhava para aquilo que tinha como casa, livros, estante, mesa, cama e apenas uma imagem lhe preenchia o pensamento.

Desde quando a vida lhe sabia tanto a ela? Não sabia. Sabia apenas que teria que voltar a domar o seu curso, se quisesse continuar.

*****

Estação de Kristiansand

Noruega

Lembrava-se com exatidão do pai, quando lhe falava de perigo. Daquela linha de transe em a se acometia diariamente, desde que começara aquela guerra, sem estar certa das derivações dos lances que jogava.

Estava ainda deitada no chão gelado da madrugada, coberta por uma mantinha de criança.

Lera…”

Sorriria na lembrança, se não doesse tanto. E tanto morderia a ideia, se as dores não se vertessem tão brandas pelo corpo.

Do seu lado esquerdo figurava uma pequena barraquinha de janelas brancas e paredes de tinta azul, encimada por uma placa com o nome da localidade. Sim, ainda estava ali. E estaria sempre naquele lugar, caso não se levantasse e arranjasse forças para seguir.

Seria a vida apenas aquilo? Um exercício contínuo e exigente de sobrevivência? Estariam todos tão imensamente sós, voltados dramaticamente ao risco? Se era a isso que a reduziram, talvez não quisesse mais voltar à estrada. Ao contrário dos demais conhecidos de jornada, não se considerava uma pessoa obstinada, que lutasse por todos os objetivos de forma intransigente. Para ela, a desistência das causas no momento oportuno era uma outra forma de inteligência que a vida se tinha encarregue de ensinar.

E seria tão fácil desistir de tudo ali, naqueles momentos em que a fome, a sede, o cansaço e aquela solidão a tragavam num vácuo sombriamente real.

Mas depois, havia Ilya e aquela sua forma aparvalhada e infantil de a fazer rir. Havia aqueles olhos esverdeados que lhe sorriam e nunca se esqueciam dela, e aqueles lábios que não queria morrer sem provar.

Não. A vida não poderia inacabar de forma tão crua. Apesar de saber que quase sempre findava das maneiras mais simples e grosseiras.

E então percebeu. Não poderia lembrar-se de tudo. A vida não lhe passaria, benévola, à frente, como num filme. Mas tinha as palavras. Todas aquelas que não disse. Como soldados torturantes e tortuosos a que se agarrava, sobrepostas aos factos, e os factos que nunca se tornavam mais do que ideias, convicções demasiado abstratas e incompletas.

Disseram-lhe que, talvez, um dia, fosse capaz de perceber melhor o tempo. Era-lhe irrelevante. Ali, onde o estranho se decompunha em carateres estrangeiros e o azul se dispersava nas linhas férreas da carris, era sempre cedo demais, para regressar.

*****

Vyborg

(meses antes)

Outubro de 2012

Entrava despreocupada numa pequena cave. Ilya procurava desesperadamente dar banho a uma menina de cerca de três anos que corria nua pela divisão feita casa, gargalhando enquanto este a perseguia. Até que este dá um passo ligeiramente maior, tomando-a nos braços.

– Apanhei-te! – Rejubilou para a menina, que dobrou o riso quando sentiu o corpo leve levitar no ar. – Já para o banho, ordens do capitão!

Depois de ter as roupas e a zona encharcados e uma pequena finalmente sossegada no sofá, atenta às animações que passavam na televisão, encostou-se à cabine de duche, só aí se deparando com a presença dela.

– Estou exausto e ainda não sei o que vou fazer para o jantar. É mais difícil, sem o velho por aqui…– Desta vez o olhar comprimiu-se, num trejeito triste.

– Eu posso ajudar. – Prontificou-se ela, indo rapidamente até à cozinha improvisada, procurando alimentos para confecionar, na divisão quase vazia de comida.

– É assim que queres criar uma criança, com comida enlatada?

Ilya voltou o olhar para a menina, certificando-se que a sua atenção se focava totalmente nbs bonecos feitos de massinha que passavam na tela.

–...nós temos que sair daqui em breve, Nataliya. Já viste que as rondas estão cada vez piores, o Sasha já foi, o meu pai desapareceu…sei que não posso viver eternamente na cave de um café! Vem comigo, não me ia perdoar se alguma coisa te acontecesse.

Começou a reler mentalmente os dados.

– Saímos pela Finlândia, estamos a 30km de Lappeenranta, por estrada chegamos lá em pouco tempo. – Parou, como se o esforço fosse grande demais para continuar. – Ela indicou-me umas rotas, antes de ir embora.

O silêncio seguinte foi o sinal de que devia intervir.

– Dizem que pela Finlândia é impossível passar, Ilya. Tenho aqui uns caminhos que me disseram ser seguros, por Finnmark. Sabes que o Misha tem muitos contactos na Noruega.

– A Valentina disse-me que ninguém sobrevive na Noruega...e eu não conheço ninguém por lá. Sabes que não gosto de confiar nos outros.

Ela chegou-se mais a ele, a mão poisada no ombro pareceu serená-lo. – Eu vou contigo para qualquer lado, de olhos fechados. – Sussurrou, sorrindo. – Mas já é tempo de confiares em mim. Eu não sou os outros, Ilya. E...– Fez uma pequena pausa, para quebrar a atmosfera densa – ...por isso mesmo vou fazer-nos o jantar. – Anunciou, enquanto empurrava um Ilya, fingindo-se demasiado indignado, em direção ao sofá.

Tagarelava docemente trivialidades, remexendo na despensa, até que encontrou qualquer coisa que conseguiria levar ao fogão. Faria sopa, uma espécie de prato principal e ainda uma sobremesa, com a fruta que trouxera, comunicava, orgulhosa.

Sentou-se devagar no sofá, para não acordar a pequena, que adormecera. Ilya, olhou-a, um tanto acabrunhado.

– Olha para ti, toda suja de comida e eu nem te dei uma ajuda. – Falou-lhe, sonolento, pedindo-lhe desculpa, por aquele deslize do cansaço, tirando-lhe um bocado de uma espécie de molho do rosto.

Desfez-se da pequena, que dormia pesado nos seus braços deitando-a com cuidado no colchão almofadado que fazia as vezes de sofá.

Natalya seguia cada passo.

– Não sei como é que ela teve a coragem de abandonar um ser assim, tão desprotegido. Nunca percebi como é que se pode ser tão cruel. Tu tens sido incansável. Um verdadeiro pai para ela.

O afeto com que falava embateu na ligeira rispidez incontrolada com que lhe entregou a resposta.

– Até parece que não sabes como é o teu pai, quando quer alguma coisa, vai atrás dela, até ao fim do mundo. O melhor é mesmo fugir, de preferência para bem longe dos confins do planeta. – Ria baixo, enquanto levantava os braços para o baixo teto, antes de perder-se no prato de comida que servia. – Também, desde que a tirei da barriga, desde que a tive pela primeira vez nos meus braços, quando a deitei no meu peito, senti que era minha. Acho que isso é que é ser pai, muito mais do que quaisquer possíveis laços de sangue.

– O olhar concentrado na comida, ergueu-se para ela, como que pedindo desculpa, pelo que ia falar – Além disso, tu também abandonaste alguém…

O seu argumento inatacável foi prontamente interrompido pelo timbre nervoso e acanhado dela, que balbuciava contradições.

– Isso não tem nada a ver! O meu caso não tem nada a ver com o dela. Eu tive que o fazer. Eu fui embora com ele, fiquei do lado dele, saí quando ele saiu e tomei as dores dele, e mesmo assim, ela sempre foi a preferida, aquela agoirenta. Mesmo quando ela decidiu ficar com o Leo e com todo aquele conforto...

Sem perceber o tom de voz aumentara e a pequena agitara-se, ameaçando acordar, o que lhe mereceu um novo esgar desaprovador dele e o seu baixar derrotado de ombros.

– Ok, já percebi que não vale a pena. Faz-me só o favor de nos deixares ir pela Noruega...

Aí, o olhar dele pareceu-lhe abrandar. O que só fez aumentar a sua quota culpa.

– Vou pensar. Agora, vamos comer, que isto tem um aspeto delicioso.

E então era aquele jeito infantil, e o suspiro de quem está demasiado perdido para guerrear, que sempre a faziam derreter, naquele exato segundo, deliciosamente liquefeito, em que a palavra se anuncia, irrevelada.

– Desculpa, fui muito bruto contigo. Sabes que não queria ter tocado naquele assunto. – E quando as mãos finalmente se encontraram, uma na outra, já se esquecia se razões, meios ou propósitos ditavam aquele jogo, ou que estradas tomariam na jornada.

Quando Ilya deixou de lhe responder, a imagem do sofá enterneceu-a. E acreditou que era aquilo que buscava para ela. Adormecer todos os dias com aquele fundo na memória, pai adormecido abandonado no sofá, e a menina que suspirava serena, de encontro o seu peito, uma mecha de cabelo vermelho colada à testa suada.

Queria suster a crença.

Com ele seria sempre aquela tríade de alma que lhe saía do peito, por um segundo ansiosamente descompassado; horas de cadência apaixonante e secreta em batidas receadas; a travessia que se visionava inquietantemente pequena para albergar toda uma vida, por mais que se delongasse a caminhada.

Pudesse todo o inalterável credo forjar os fios adstritos a uma vida…

O telefone vibrou e também ela tremeu, quando digitou a resposta: “Iremos pela Noruega, miúda incluída no pagamento. Quero recomeçar a minha vida...”

*****

Fez um esforço para sentar-se e reparou que o corpo estava coberto por um líquido viscoso e frio que se lhe colava à pele. Tudo lhe doía e à boca assomou-lhe um gosto metálico e acre. Retirou do casaco um comunicador e despendeu os últimos fôlegos para marcar uns números, que sabia decor.

Sem se aperceber, pouco tempo depois aparecia uma silhueta feminina, alta e magra, de andar aéreo e vertical. Ao aproximar-se mais, Nataliya pôde perceber pelos traços leves e despreocupados que era ainda bastante jovem. Com pequenos gestos delicados de braços, chamava um rapaz, que se aproximava, numa passada titubeante e curvada, pacientemente demorada.

Tudo no corpo e mente a remoía e o mundo parecia-lhe denso demais sequer para mexer-se.

– Mas que boa notícia esta. Encontrá-la em tão bom estado. O chefe alegrou-se em saber. Deve gostar muito de si. – A rapariga continuava a sua introdução, alheia aos trejeitos pesados e doloridos da outra interlocutora. – Ajudem-me aqui, por favor, senhores. Decerto que não conseguirei carrega-la sozinha e de forma conveniente. É demasiado encorpada para mim. – Falou, em tom formal, aos guardas que a escoltavam, naquilo que suou mais a um pedido do que a uma ordem.

Relaxou quando sentiu o corpo de encontro a maca e o trepidar calmante do carro que se afastava da estação. Admirou-se de, logo após o exame pela equipa médica que aí se encontrava, sentir as dores todas abrandarem, até desaparecerem, deixando-lhe apenas um corpo débil e lasso e a consciência que a poderia remoer, mas agora, o mundo concedia-lhe todo o tempo para sarar essas outras feridas tão imanentemente íntimas .

A jovem exuberante dirigiu-se novamente a ela, de olhos extraordinariamente abertos e alienados, os compridos cabelos pretos cuidadosamente alisados e brilhantes, batendo-lhe soltos nos ombros esquálidos, dando-lhe um ar de boneca sem vida. Falava-lhe entre risinhos finos e afetados.

– A harmonia universal sempre funcionou. – Interrompeu-se, freneticamente. – É verdade, creio que, todavia, ainda não nos apresentamos devidamente. Somos os promitentes observadores. – Informou, categoricamente.

– Ainda somos lacaios do Congresso. – Atalhou, mais prudente, o jovem rapaz, abruptamente interrompido pela sua colega.

– Eu tenho certeza, sono sicura! Decerto chegaremos a observadores! a repreensão saiu-lhe demasiado branda, num tom grave, mas frustrado.

Agora, daremos inicio ao seu tratamento que, pelo que vejo, será breve. Temos os melhores cure ao nosso serviço e ao seu dispor.

A viatura continuava o itinerário, os seus ocupantes alheios a Nataliya, que ainda gemia baixo, entorpecida. Mais do que os planos que não conseguia escutar, angustiava-a o incerto em que jogavam os seus dias. Perturbava-a saber-se nada mais do que uma peça, parte de uma engrenagem maior, que não entendia. A traição revelava-se, então, tão semelhante a ela, descartável, inútil, agora que se via débil e gasta. E questionava-se se teria valido a pena…

*****

Não lhe interessava saber que horas eram, nem sequer se era tarde. Olhou-se ao espelho e tocou as marcas negras do rosto, vendo refletida a sua expressão de dor.

Não sabia onde estava, que casa era aquela, nem sequer tinha a certeza para onde iria. Mas de uma coisa estava certo. De tudo o que lhe acontecera até então, a visita do Governador talvez tivesse sido o seu maior golpe de sorte, mesmo não acreditando nesse tipo de acaso.

Caminhou os míseros passos que o separavam do quarto e sentou-se na cama, notando que uma ou outra costela ainda lhe doía. Tentava antever todo o tipo de implicações que a sua futura escolha lhe traria. A mente agora muito mais tranquila e sagaz. Foi quando ouviu aquela porta abrir-se e o som da maldita melodia clássica que voltava a tocar. Arranjou uma melhor posição na cama e, então, viu-a. A imagem clássica, farda vermelho grená que, impecavelmente vestida, deambulava pela sala, poisando um pequeno saco castanho com comida na mesinha de centro. Ilya mexeu, fazendo-se notar.

Sentiu-a então tremer, antes de girar, devagar, no seu eixo. Até que os seus olhos finalmente o encontraram, enternecidos, sem pressas.

–...Desculpa. A esta hora, pensei que já estivesses a dormir.

Ilya permanecia sisudo, encostado à cabeceira da cama, sem fitar Valentiyna.

– Pensei que vivesses melhor, com esse cargo.

A mulher voltou-se novamente para a sala, focando a sua atenção na disposição dos objetos de adorno, até que lhe respondeu, num tom leve e jocoso, pouco afetado pelo repto instigador.

O olhar acolhedor tinha mudado a cor.

– Ah! Esta casa não é minha. Pensavas que te levava para minha casa? És muito ingénuo...

Ilya recostou-se melhor na cama e cruzou os braços, encarando-a, os olhos fumegantes com uma expressão indecifrável entre a aversão e a tristeza.

– Realmente, sou muito ingénuo, sim. E burro. Eu perdi estes anos da minha vida, por ti. E agora estou há quase dois a tentar fazer sobreviver uma criança, que nem sequer é minha. Por ti! Porque a abandonaste! Como é que pudeste fazer-me aquilo?

A fúria fê-lo levantar-se de um ímpeto e, quando deu por si, estava encostado à parede, contorcendo-se de dores.

– Vá lá, Ilya. Foram só uns choquezinhos. Achas que era capaz de te matar? Há quantos anos me conheces? – Indagava, procurando uma resposta no jovem que levantou o rosto para ela.

– Há vinte anos que me pergunto se alguma vez te conheci. És capaz dos maiores absurdos pela tua causa. Mesmo assim sabia que vinhas, porque precisava de ti.

Os olhos de Valentina voltaram a brilhar. Voltou-se para Ilya, que desta vez conseguiu perceber a sua expressão enternecida.

– Quero que te mentalizes que não intervirei sempre providencialmente no teu caminho. Há-de chegar o dia em que não poderei estar lá.

– Perguntei-te muitas vezes porque não seguias o meu caminho. Por isso, até hoje, nunca saí daqui. Mas tem que acabar, Valya, Valentiyna.

– Esse é o teu mal. Mantiveste-te sempre aí...

Um passo lento, exato.

–…ficaste sempre na posição mais confortável. Dizes, 'eu estou aqui', mas estás aí, à espera,

A mão na costela fraturada e o mesmo impulso que o guiava, a porto certo...

– … quando devias estar comigo e não aí.

Só mais um passo, e depois outro

e já não estava ali,

os olhos paravam naquela boca

nas linhas dos lábios que lhe dirigiam palavras que não ouvia

Sem dúvidas ou interrogações, Ilya puxou Valentina e fixou-lhe os lábios nos dela.

Ela estremeceu. E então, eram línguas que deslizavam digladiadoras, dentes sôfregos que mordiam desejos, dedos que percorriam todos os quentes recantos conhecidos um do outro, um atear calcinante de saliva arrepiante no pescoço...

E de novo aquela melodia tocada no aparelho esquecido da estante

Olhos que recolhiam, sufocados, mareados...

Parou. A mão esticada afastando-se dos refúgios que, avidamente revisitava. A mulher ainda se mantinha estanque, de olhos fechados.

– Para! Acabou, Valentiyna. Tenho que seguir, sem ti! Não posso continuar a arriscar a minha vida, tenho que pensar nela, não em ti.

O amor não roubava corações. Escravizava os dias, mudava os anseios, baralhava as rotas.

As palavras desfeitas em silêncio.

Atou os cabelos ruivos, em permanente desalinho. As lágrimas corriam-lhe interiormente e provisórias, nada mais que excertos dos caminhos percorridos. A alma de terra endurecida, fechada num núcleo da vida em permanente crepitar.

– Nunca pensei o contrário, Ilya. Até que enfim que o consegues ver.

A porta abria-se, mais uma vez ela saía, sem estranhar o caminho que a vida o mandava seguir. Outras formas e outras rotas fariam dele um novo ser. O para sempre um encoberto lugar incerto. Talvez de vez.

Nessa madrugada Ilya dispensou para sempre a necessidade da presença de Valentyna. Irmãos, amigos, marido e mulher, amantes, cúmplices, e companheiros, a vida passara por eles sempre demasiado breve, sempre sem tempo, numa conspiração das horas.

Na mesa de centro da sala por entre as garrafas de água pouco mineralizada, e umas parcas frutas, o pacote aberto mostrava um dos croutons já roídos, e não pode deixar de sorrir na certeza confortável de que certos hábitos (re)conhecidos não mudariam.

E, sem perceber, a sua decisão tinha chegado, mais cedo do que pensaria.

Na mesma mesa, apenas um bilhete escrito à pressa:

Obrigado por me dares vida. Se o teu dom existe, então saberás que isto estava para acontecer. Amo-te, mas não vou ser eu a prender a sofreguidão da tua vida. Dou-te um novo sopro e sigo o meu rumo.”

*****

Nos dias que se seguiram reaprender cada movimento, caminhar, tornou-se um exercício penoso em que as lágrimas se confundiam com a dor e a revolta. Essa reconstrução de si surgia como um indício de que nunca se deveria declinar partes constantes no caráter de qualquer ser.

E os dias tornaram-se semanas de aprendizagem e convívio com a sua nova sina. Em que tentava conhecer-se, na sua aparência . Mas cicatrizes muito maiores a abalavam.

Tinha mentido a si mesma. Não era precisa, amada, necessária. A pessoa que mais a devia querer, cobardemente, fugia, cobardemente, não se via, cobardemente silenciava-se, dia-pós-dia.

E de todas as guerras, essa era a luta que tinha que travar, a sós, com ela, sem mais ninguém a quem prestar contas.

Aquela diáfana sonoridade italiana invadia-lhe o espaço, no seu comum jeito presumido e infantil. Ouvia as reverberações, que seguiam a ordem de assuntos comuns, que parecia bem mais branda e doce naquele tom formal.

– è giunta l'ora! il cancelliere, mi ha chiesto... – clareou a voz, voltando a traduzir – …Sinhora Nataliya, o Chancelieri pediu-me que lhe transmitisse que é sua intenção que rume a Belize.

Lembrava-se das primeiras informações sobre a ocupação que passavam censuradas na tela da tv. Depois foram as pragas. Os primeiros vírus que ceifaram milhares de vidas numa arreigada teimosia. Tinha acreditado ser uma mulher de sorte, porque sobrevivia. Mais uma das vestes com que se mentia. Contudo, não negaria aquele pouco de boa ventura. O ver naquele vácuo que a sugava, a oportunidade de resgate.

E, por mais que sentisse as forças manipuladoras que a levavam para lugar nenhum e para longe de si e do centro da sua história, nem tão tormentosos seriam os céus por onde seguia, como os mares de onde, antes, ela partira...


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Notas finais do capítulo

Comentários, vá lá, gente. Se tiver, um novo capítulo sairá, muuuuitooo em breve.

Será que mereço? Aceito até para dizer mal, sou à prova de bala.
Beijo no coração



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