My Master Camus escrita por Love


Capítulo 4
Absolute zero


Notas iniciais do capítulo

Não tenho certeza se em algum lugar já falaram do passado do Camus. Não tenho certeza de nada c:



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Camus reconhecia aquele cenário. Inúmeras vezes havia se encontrado neste corpo que já não era mais seu, mas o pertencera em um passado distante. Encarava o piso de linóleo branco do que tinha certeza ser uma cozinha, não só pela presença de um fogão e uma geladeira captados através sua visão periférica, mas por já ter transitado por ela diariamente quando criança.

Uma criança. Então estava preso naquele pesadelo que mais era uma recapitulação do evento marcante que ocorrera em sua infância.

O fato de já saber como se desenrolava aquele sonho não impediu que as mesmas ações de sempre fossem tomadas. Olhou em volta, identificando silhuetas de móveis e eletrodomésticos fracamente iluminados pela luz central do cômodo, que piscava já quase sem a capacidade de emitir brilho.

Tal ambiente seria algo reconfortante e traria boas lembranças se tudo ao seu redor não estivesse congelado.

Com pernas trêmulas, contornou a grande mesa redonda do aposento à procura de alguma forma de vida naquele ambiente frio, já sabendo que encontraria algo pior. Era estranho, apesar de ter total consciência de que aquilo não era real, falhava em reger influência sobre seus atos e tudo seguia um script minuciosamente detalhado sobre algo que ainda o atormentava mesmo depois de tanto tempo. Às vezes, fora daquele mundo ilusório, custava em adormecer, não por medo, mas por não querer ser invadido pelas sensações desconfortáveis decorrentes de um acontecimento que já havia superado, porém não esquecido.

Deparou-se novamente com aquele corpo pálido e imóvel recostado de qualquer forma em uma das bancadas e gritou. Ele havia feito aquilo, era tudo culpa sua. A mulher que jazia morta à sua frente costumava possuir cabelos tão avermelhados quanto os seus, mas agora seu brilho era ofuscado pelas inúmeras partículas de gelo que cobriam toda sua compleição física. O rosto dela - outrora enérgico, expressivo - estava fixo numa beleza encantadoramente medonha, que apenas o próprio frio era capaz de definir.

Fracassou em manter-se de pé e gemeu com o impacto dos joelhos com a superfície do chão gélido. Engatinhou com certa dificuldade em direção à figura feminina à sua frente, escorregando aqui e ali por conta da falta de atrito do assoalho. Os detalhes da cena que lhe era transmitida por seus olhos mostravam-se impecáveis, como se seu subconsciente houvesse tirado uma foto da ocorrência no intento de torturá-lo, silenciosamente dizendo-lhe para não olvidar-se daquilo, que não conseguiria escapar.

A lâmpada finalmente atingiu seu limite após oscilar de intensidade tantas vezes e a luz produzida pela mesma se extinguiu. No entanto, o gelo que recobria o recinto por inteiro refletiu o brilho da lua, o qual entrava pela única janela do local. Camus parou a uma certa distância daquela que deveria ser sua mãe, que mais se assemelhava a uma estátua no momento. Estendeu o próprio braço para que pudesse roçar os minúsculos dedos carinhosamente em sua face, à procura de algum vestígio de calor, algum sinal de vida; qualquer resposta equivalente a um eu estou bem.

Não encontrou nada.

Entrava em um estado de transe enquanto vasculhava a própria memória à procura de como tudo havia chegado àquele estado. Jurava conseguir sentir o próprio cérebro trabalhando, como se milhões de engrenagens existissem dentro dele, girando para acelerar o processamento de informações e fazendo a velocidade com que laboravam subir progressivamente. Imagens pouco nítidas porém reconhecíveis de sua vida antes daquela tragédia formavam-se rapidamente.

Nascera com aquilo, mas havia se manifestado pela primeira vez há pouco tempo, o poder rapidamente ganhando proporções às quais um menino de quatro anos não conseguia controlar. Achava sua dádiva algo extraordinário no início. Era resistente ao frio, conseguia gelar sua própria bebida e, às vezes, mostrava o que aprendia a fazer sozinho à sua progenitora, o que causava deleite para a mesma. Lembrava-se do olhar apreensivo que seu pai lhe lançava toda vez que usufruía de seu dom, dos forçados sorrisos que este adotava quando sua mulher lhe reafirmava que aquilo era uma bênção dos deuses, algo especial que não deveria ser ignorado ou restringido.

Não recordava como havia feito isto que estava agora ao seu redor, e isso, de certo modo, o aliviava. Talvez a pouca sanidade restante a si escorreria por entre as brechas que lhe foram infligidas por tal episódio, então se encontraria totalmente rodeado de escuridão, sozinho, e pela primeira vez sentiria o frio do qual os outros humanos tanto reclamavam.

Escutou passos vindos da porta aberta e virou-se automaticamente para receber o indivíduo que agora estava paralisado no meio desta. Enxergava mal o rosto do sujeito, sua visão embaçada pelas lágrimas que apenas agora haviam resolvido presentear-lhe com seus consolos. Só poderia ser uma pessoa de qualquer forma, então não fez muito caso do assunto e rapidamente perdeu o interesse no adulto.

Sua dor era bem mais importante.

O que aconteceu depois era como um borrão em sua memória. Tinha breves lembranças de gritos lançados em sua direção; um homem desesperado sacudindo um corpo anormalmente azulado; dias passados em total entorpecimento trancafiado em seu quarto; menções de um santuário; uma viagem seguida pela chegada a um local desconhecido; abandono. Essa sucessão de acontecimentos que passava rapidamente como um filme diante de seus olhos permitiu que conseguisse tomar controle da situação e cessasse aquela insuportável rotação de recordações. Os sons morreram, as cores vagarosamente se esvaíram, linhas que conferiam limite a formas se apagaram. Qualquer sensação não era mais captada por seu corpo ou por sua mente.

Tudo que havia sobrado era o vazio.

//

Abriu as pálpebras calmamente, dando de cara com o teto de madeira enegrecida. Sua respiração levemente descompassada denunciava o efeito de tais alucinações em si, estas talvez nunca se cansariam de atormentá-lo. Sentou-se na beirada da cama, abaixando a cabeça por conta de uma enxaqueca que começava a se manifestar. Levou as mãos às têmporas numa tentativa de amenizá-la, mas não obteve sucesso. Decidiu levantar-se e ir até o reservatório tomar algum remédio.

Camus transitou pela pequena moradia sem prestar muita atenção onde pisava, apesar de não enxergar muita coisa por conta da mesclagem de tons entre as paredes e os móveis, que tornava tudo escuro. Chegando ao banheiro, cerrou a porta do mesmo tomando cuidado para não fazer muito ruído, e em seguida passou a encarar o próprio reflexo pouco iluminado no espelho, apoiando as mãos nas extremidades da pia abaixo.

Às vezes, quando olhava no fundo dos próprios olhos, como fazia no momento, o ruivo punha-se decepcionado consigo mesmo. Alegava que sentimentos atrapalhavam, que tinha conseguido se livrar dos mesmos depois de muitos anos tentando, e havia tempos nos quais ele realmente achava que obtivera sucesso. Não comovia-se facilmente, o que o tornava uma pessoa muito estável; não se estressava quando era colocado sob pressão, sendo capaz de analisar situações na base da lógica ao invés da emoção. Mas havia sempre aquela faísca no fundo de sua alma, algo que ele tentava suprimir para que não virasse uma chama que se alastraria e destruiria todas as defesas formadas em torno de si. Ocasionalmente, isso mostrava-se difícil de controlar e, em todas essas vezes, Camus temia que as barreiras erguidas desmoronariam irreparavelmente, o que o tornaria, em sua opinião, um inválido e incapaz de permanecer na função de cavaleiro de Atena.

Apesar de severo, o aquariano aceitava tal conduta do próprio aprendiz (de certo modo respeitava a escolha do mesmo de prezar as próprias emoções) enquanto aquilo não afetasse muito seu potencial de julgamento. Acreditava que, um dia, Hyoga ainda seria obrigado a fazer uma escolha na qual seus sentimentos o cegariam. Jurava que, se tivesse a oportunidade de estar por perto no momento, e o garoto falhasse em tomar a decisão correta, não hesitaria em utilizar medidas drásticas para que ele deixasse de lado a própria imaturidade.

Suspirou ao pensar no aluno e pegou logo o comprimido no armário atrás do espelho. Era um assunto delicado, somente agravava sua dor de cabeça. Serviu-se da água da pia mesmo e tragou o remédio em um só gole. Retirou-se do lavabo prestes a retornar ao próprio quarto, mas deteve-se ao avistar a porta do dormitório da criança, suas pernas levando-o até la inconscientemente. Mirou o relógio pendurado em uma das paredes e, com certa dificuldade para enxergar, identificou que os ponteiros indicavam as quatro da manhã. O menino com certeza ainda estava adormecido, porém isso não o impediu de adentrar em silêncio o aposento sem motivo aparente, com uma necessidade que meramente se manifestava em sua consciência.

Hyoga encontrava-se encolhido em posição fetal no meio da cama, descoberto e aparentava estar com frio. Camus automaticamente foi de encontro ao menor e recobriu-o com o cobertor que estava abandonado no chão. Refletiu um momento sobre a ação, talvez o impulso que o houvesse feito ir constatar se o loiro estava bem fosse uma intuição, ou o "sexto sentido" como os demais cavaleiros de ouro costumavam nomeá-la. Talvez fosse um instinto natural, algo inevitável, nascido por conta da afeição sentida pelo garoto e que se manifestava em forma de zelo caso qualquer distúrbio ocorresse com este, mesmo sem o francês estar vendo (até algo mínimo como o que ocorria à sua frente). Quiçá acordara especialmente por causa desta perturbação e não houvesse percebido até tal momento, mas aí ele já estaria indo longe demais em seus devaneios.

O tempo passou desapercebido até que o pequeno se remexeu por entre as cobertas, visivelmente mais confortável do que antes, e começou a roncar. O ruivo não pôde evitar um sorriso que se formou em seus lábios. Estava prestes a afagar levemente a cabeça do pupilo, mas se deteve.

Não podia fazer isso.

Não podia alimentar falsas esperanças para si mesmo e para a criança que dormia pacificamente naquele leito. O tempo para aquele tipo de relação era inexistente. Hyoga deveria tornar-se o cavaleiro da constelação de cisne e Camus retornaria ao Santuário quando isso acontecesse. Nesse momento, aquele vínculo existente entre os dois se romperia, cada um seguiria seu caminho, faria suas próprias escolhas. Se estimulasse a formação daquele elo, poderia perder o controle da situação, dos próprios sentimentos e acabaria machucando não só a si mesmo como ao rapazinho.

Afinal, o que o mais velho sabia do amor?

Tudo que conseguia imaginar era a decepção, e aquilo doía mais do que qualquer ferida física à qual já havia sido submetido. Fora por conta da decepção que se tornara aquela pessoa da qual não conseguia se orgulhar muito, mas que não largaria de ser. Era uma instância adotada para a própria proteção e pelo cargo ao qual o destino o havia largado. Camus não deveria só dominar o gelo, mas sim sê-lo. Sua existência seria como as calotas polares da Sibéria, frias e inexoráveis em sua forma mais pura.

O que ele não levava em consideração era que qualquer aumento de temperatura, a exposição à luz, poderiam fazer com que esse gelo derretesse. A água líquida, uma substância tão maleável - retem a capacidade de assumir qualquer forma dependendo do recipiente na qual seja posta - é a representação perfeita de um indivíduo regido por emoções, uma pessoa que reaja de maneiras diversas dependendo da situação a que seja exposta.

E apesar de Camus desejar que seu aprendiz fosse como ele, tão imutável sentimentalmente, passava desapercebido por si mesmo que era por amor. Não queria que o menor fosse tomado em momento algum pelo desencanto proveniente de ações inaceitáveis daqueles que prezava mais do que tudo, pois sabia que aquilo beirava o insuportável por experiência própria.

Provavelmente era esse conflito interno entre amor e indiferença que o impedia de chegar ao zero absoluto, porque o gelo no qual se envolvera havia começado a derreter já fazia algum tempo. Só lhe restava superar a dificuldade de aceitar o fato, pois já havia chegado a um ponto que não parecia oferecer-lhe mais voltas.


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Notas finais do capítulo

E isso explica porque o Camus sentiu "pena" do Hyoga no cap passado.
Obrigada a quem comentou até agora. Acho que tenho ideias pra mais uns 3 capítulos por enquanto, e no próximo vai aparecer o Milo pra felicidade de quem gosta dele. Quero agradecer também a quem estiver ~realmente~ lendo e gostaria de pedir review??? Sério, seria muito legal se quem estiver lendo comentasse qUaLqUeR coisa mesmo, eu fico bem mais motivada. C:
xau.



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