Os dias atrasados serão cobrados... escrita por Beca


Capítulo 2
Sobre os dias que se foram e a canção da floresta


Notas iniciais do capítulo

Capítulo focado nos pensamentos e memórias de Shion. Espero que gostem.



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Dessa vez ele não abriu os olhos. Não os tentou secar também.

Shion nem se mexeu.

Se alguém o estivesse observando agora, não iria nem perceber que ele havia acordado.

Karan o estava observando, Shion sabia disso, sentia o olhar de preocupação da mãe pesar em seu rosto como uma máscara. Se de alguma forma demonstrasse que estava acordado, a mãe criaria coragem e perguntaria. E ele queria tudo menos ter que responder a essa pergunta.

Por fim, Karan saiu do quarto e desceu para a cozinha. Shion suspirou pesadamente e levou as mãos ao rosto. Ainda estava chorando, meu deus, que problemático.

Shion encarou o teto do seu quarto por alguns instantes, buscando lá no fundo algo que o motivasse a levantar. Seu amor pela sua mãe? Sua afeição por Inukashi e Rikiga? Agora que parou para pensar nisso, não havia muitas coisas que queria proteger em sua vida. Por que lutava, então?

Eu prometi a Safu, afinal.

Quando se deu conta, Shion ja estava na metade das escadas.


Como todas as noites nos últimos cinco anos, Shion sonhou com Nezumi.

Como todas as manhãs nos últimos cinco anos, Shion acordou chorando.

Como todos os dias nos últimos cinco anos, Karan viu os olhos vermelhos e inchados do filho e não perguntou nada, o recebeu com um sorriso e uma caneca de café. Shion se sentia egoísta pois sabia que a preocupava, mas ele realmente preferia não falar sobre isso.

Estava quase terminando de comer quando se lembrou.

“Mãe, cadê o Inukashi e o Rikiga?”

“Saíram mais cedo. Disseram que iam resolver algumas coisas importantes, para você ficar aqui e relaxar.”

Mas que droga. Relaxar era o que ele menos queria, se ficasse parado em casa sem fazer nada provavelmente ficaria louco. Precisava de alguma coisa para oucupar seus pensamentos.

“Mãe, talvez você precise de ajuda na padaria?” A nova padaria de Karan era uma das únicas do subúrbio, vivia sempre com uma boa clientela. Ela sorriu para o filho, Shion via com clareza a incerteza nos seus olhos.

“Shion, por que você não dá uma volta e organiza a cabeça?” Ela sugeriu, como quem não quer nada. “É seu dia de folga afinal.”

Shion sabia que a mãe queria que ele tivesse um tempo sozinho mas, era tão difícil assim fazer os outros perceberem que ele não queria ficar sozinho? Por que todo mundo insistia nisso? Ele não queria relaxar, infernos.

Ele não sabia o que ele queria.

Talvez eles estejam certos. Todos eles.

“Então estou indo, mãe.” Disse, tomando o último gole de café. Levantou-se da mesa redonda da pequena cozinha e deu um beijo na mãe . Saiu.

O dia estava frio, mas o sol brilhava à seu jeito, um tanto quanto modesto. O vento, úmido da tempestade do dia anterior, soprava tão delicado como um afago. Shion inspirou fundo. O mundo cheirava a chuva. Ele gostava desse cheiro, o lembrava de Nez – Não.

Pensar nele era um erro.

Mas por que?

Era um erro. Precisava manter o foco, pensar nele é uma promessa de dor, sofrimento e perda de objetivos.

Mas só hoje, apenas por hoje, eu quero me lembrar.


Shion questionou-se pela centésima vez como seria sua vida se não tivesse aberto a janela naquela noite tempestuosa. Onde estaria hoje? Vivo? Morto? Talvez Safu ainda estivesse viva, talvez ele correspondesse seus sentimentos e eles formassem uma família. A única certeza é que sua vida teria sido bem mais monótona. Teria continuado um alienado de NO.6, submetendo-se à utopia suja que ela era. Mas talvez, não teria sofrido o que sofreu. Não teria conhecido Nezumi.

Até parece que me arrependo. Pensou amargamente. Seus sentimentos o traíam, faria tudo de novo se pudesse.

Naquela noite Nezumi decidiu seu destino. O menino magro, encharcado e sangrando, entrou no seu quarto e colocou tudo, seus ideiais, suas crenças e sua vida, de cabeça para baixo.

E havia seus olhos.

Aqueles olhos de uma cor que Shion nunca vira antes. Alguma coisa naqueles olhos o atraíram instantâneamente. Olhos tranquilos, sem nenhuma emoção.

E seu corpo era quente. Quando já estavam ambos na cama,Shion lembrava de ter colocados as mãos nas costas de Nezumi, por baixo da camisa xadrez que ele estava usando. Suas costas estavam pegajosas de suor, e tão quentes . Ele estava com febre, não estava?

“Você está muito quente também.” Foi o que Nezumi disse. Por algum motivo que até hoje Shion não sabe explicar, ele deixou suas mão onde estavam.

Shion se lembra de ficarem assim, seus braços envolvendo aquele criminoso desconhecido, aquele menino de cabelos pretos que havia acabado de conhecer, responsável por tudo que Shion passaria a partir dali. Nezumi não demorou a dormir. Naquela hora Shion simplesmente não sabia o que pensar.

Ele está realmente quente – Ele adormeceu logo em seguida, um corpo febril ao seu lado.

E pensar que chegaríamos a dividir uma cama de novo.

Outra memória, quatro anos depois.

Estavamos discutindo, naquela noite. Nezumi disse que sempre fui uma pessoa emocional, que sempre escolhia os sentimentos antes da razão. Ele provavelmente estava certo. Eu ficava tão agitado perto dele. Depois disso... Shion sorriu involuntáriamente com a memória. Um beijo de “boa noite”.

E agora, aqui estou eu, me empenhando ao máximo para conter meus sentimentos. O que ele pensaria disso? Seu idiota, é tudo sua culpa, me fazendo esperar tanto tempo.

E também havia sua última lembrança dele. O dia que ele partiu. Era uma lembrança triste.

Mas não de todo ruim, não mesmo. Nezumi confessou ter medo de Shion, ter medo de todas as coisas que ele era, das suas múltiplas partes. Shion o achou curioso, afinal todo ser humano é assim, todo mundo possui coisas enterradas bem lá no fundo que nem mesmo elas sabem o que são. Talvez o que faltou a Nezumi foi contato humano, ou talvez afeição. Talvez, quando se deparou com a estrutura complexa que era Shion, foi quando surgiu seu medo, seu medo de não compreender. Mas que bobo. Ele também era assim, apenas não se dava conta.

Sim, acho que Nezumi foi a única pessoa que me viu verdadeiramente, sem nenhuma defesa e nenhuma máscara. Um dia gostaria de poder vê-lo da mesma maneira.

E mesmo assim, Nezumi estava levando tanto tempo. Crescer demora tanto assim? Será que Nezumi tinha medo? Medo do que Shion se tornou, por isso ainda não havia voltado?

O que eu me tornei? Ora, não acredito ter mudado, ainda sou o mesmo de sempre, apenas estou mostrando algumas faces diferentes. Não posso ficar cego aos problemas da cidade. Nezumi me ensinou a não abaixar a cabeça, a encarar meus problemas...

Mas Shion também ficou assustado, havia faces dele mesmo que ele também desconhecia.

No reformatório, Nezumi estava muito ferido, ele teve, TEVE, que fazer uma escolha. Shion ficou muito, muito assustado, mas não acredita ter feito a escolha errada. Nezumi era mais importante, o mais importante. Se fosse por ele, Shion não mediria atitudes.

Mas isso foi uma decisão dele, era idiotice por parte de Nezumi achar que ele era de alguma forma culpado pelas ações de Shion. Nezumi foi precipitado, essa é a verdade, achou que conhecia Shion impecávelmente, por isso a queda foi tão grande.

E antes de partir... Um...voto? Foi disso que ele chamou aquilo? Sem perceber, Shion roçou o indicador nos lábios, quase podia sentir de novo: Aquela ardência que o fez pensar que seus lábios estavam pegando fogo; O cheiro de Nezumi. Nezumi. Por uma fração de tempo, uma singela fração de tempo, eles foram um só, e deram tudo de si um ao outro. Mas tão rapido como começou, o momento passou, soprado pelo vento e inundado pela luz do sol daquela tarde, cinco anos atrás. Assim como as nuvens, Nezumi havia sumido.


Antes que se desse conta, havia saído da cidade e chegado à orla da floresta. Enormes caducifólias esticavam-se até o céu, os troncos eram grossos e áperos, coloridos com em vários tons de marrom. Os galhos estavam nús, característicos da estação. Shion entrou na Floresta, quase como enfeitiçado pelas árvores, pelo cheiro inebriante da terra. Não tinha certeza de como chegara ali, porém sabia que devia ter avançado demais para o norte. Nunca havia visto a floresta tão de perto antes. Ele se sentia oprimido. As árvores eram velhas e pareciam gozar dele, murmurando palavras vazias.

Shion seguiu uma trilha natural que havia encontrado para que não corresse perigo de se perder. Como já estava ali, não queria perder a viagem.

Andou por um tempo, provavelmente meia hora, até chegar em uma clareira (Não que fizesse muita diferença, ja que todas as árvores haviam caducado há alguns dias). O lugar lhe trouxe um conforto estranho. Era como se ali, junto das árvores, do solo e dos pequenos moradores da floresta, ele fosse único. Separado do mundo e de todos. Sem problemas, sem preocupações, só vazio.

O grito saiu do âmago de seu abdôme, do fundo da sua alma. Um urro instintivo de liberdade. Um som que a maioria dos humanos não sabe ser capaz de fazer. Depois silêncio.

Shion se deitou no chão, as palmas viradas para cima como se entregasse tudo, seus pensamentos, suas dores e sua vida. Não havia nada, ele não era nada. Ele era tudo.

A terra acariciou seu corpo com uma brisa gentil. As árvores já não zombavam mais dele. O silêncio era tão profundo que Shion conseguia ouvir as batidas do próprio coração. Mas havia algo mais. Um som leve e compassado que batia junto do orgão em seu peito. Não, não era um som, uma sensação, um sentimento. Algo que ninguém vê ou ouve, mas sabe-se que está lá. Uma pulsação. A pulsação da floresta. E mais ao fundo, lá na mais íntima parte do silêncio, que de tão íntimo chega a ser obsceno, havia uma canção.

Kaze wa tamashi wo sarai

Hitto wa kokoro wo ubau

Daichi yo, ame kaze yo, ten yo, hikari yo

Koko ni subete wo todomette

Koko ni subete wo kodome

Koko de ikkite

Tamashi yo, kokoro yo, ai yo, omoi yo

Koko ni kaeri koko ni todomatte

kaze wa tamashii o sarai, hito wa kokoro o ubau

sore de mo, koko ni todomari

utaitsuzukeru

douka

watashi no uta o todokete

douka

watashi no uta o uketotte

Shion, conhecia essa música. Se esforçou para lembrar, mas isso era tão difícil.

Elyurias –

Mas o que quer que viesse depois disso é desconhecido. Shion foi sutilmente carregado pela música da floresta e perdeu completamente sua unidade, as pulsações se tornaram uma só.

Pela primeira vez em cinco anos, não sonhou com Nezumi. Sonhou com uma cultura antiga; Com um povo marcado por histórias; Uma floresta infinita e atemporal; Uma vespa enorme e colorida; E então...

Safu...

“Shion”

“Sua promessa, não se esqueça dela Shion... ”

“Não se esqueça.”

“E também, cuid – “

“SAFU” Shion gritou, esticando as mãos, desesperado, precisava alcançá-la.

Mas suas mão agarraram nada menos que o céu noturno.

Shion se levantou de súbito, já escurecera e as estrela radiavam o ceu com sua luz. Uma lua fina e discreta decorava a noite. Mamãe vai me matar quando eu chegar em casa. Karan ia.

Procurou a trilha, o nervosismo já espreitando sua mente. Estava tão escuro...

Se eu tivesse trazido uma lanterna... Mas que droga Shion, por que você levaria uma lanterna para um passeio as oito da manhã? Ao pensar nisso, se deu conta de que estava faminto.

Uma vez que achou a trilha, seguí-la não foi tão problemático, mas foi lento. Shion tinha que medir cada passo caso não quisesse passar a noite ao relento em uma floresta selvagem, escura e fria.

Sim.

“Que frio dos infernos”* murmurou consigo mesmo enquanto apertava os braços ao redor do corpo. Como o dia tinha amanhecido relativamente ensolarado, Shion vestia apenas uma camisa de lã com mangas comprida e uma calça jeans. O dia não pode ficar pior. Pensou ele.

Mas ficou.


“Shion, onde você pensa que estava até essa hora da noite sem avisar? Já são quase nove horas. Quando você saiu não passava das oito da manhã.” Karan fez o que pode para parecer o mais brava possível, mas não pode se segurar e abraçou o filho com força.

“Desculpa.” Ele foi sincero. Shion amava a mãe e odiava a deixar preocupada. “Acabei parando em um lugar e tirei um cochilo.”

“Algum lugar? Quem para em algum lugar e tira um cochilo de 12 horas?” Shion olhou por cima do ombro da mãe, que ainda não o havia soltado, para identificar o dono da voz. Inukashi estava sentado no sofá, usando as mesmas roupas velhas de sempre, um brilho ao mesmo tempo feroz e zombeteiro nos olhos. “Podemos saber que lugar era esse? Procuramos você por tudo quanto é canto, Shion. Você por um acaso não estava no centro, estava?” Inukashi o olhou desconfiado.

“Não, estava na floresta.” Isso foi um erro. Pensou, no momento em que os olhares dos três pesaram sobre seus ombros.

“O que diabos você estava fazendo na floresta?” Questinou Rikiga, perplexo.

Shion mordeu os lábios. O que eu estava fazendo? Pensando nele, era isso que eu estava fazendo. Quando me dei por mim, já estava na clareira. Depois disso... depois disso teve... um sonho, certo? Shion não se lembrava muito bem, não deveria ter sido nada importante, se fosse, ele provavelmente se lembraria.

“Eeei, Shion, responde a gente.” Inukashi o pressionou.

“Queria conhecê-la. Achei uma clareira tão agradável que acabei dormindo.” Não estava mentindo, nem um pouquinho, mas Inukashi não deixou de o olhar desconfiado. Sua mãe e Rikiga pareciam um tanto desconcertados.

“O que vocês dois estão fazendo aqui afinal?” Perguntou Shion quando silêncio chegou ao seu limite.

“Sua mãe nos chamou.” O mais velho respondeu.

“Estivemos procurando esse seu traseiro desde então.”

Karan riu baixinho, finalmente aliviada, afrouxando o aperto em Shion.

“Ora, ora, só não faça isso de novo, sim?” A mãe lhe beijou a testa.

“Vou preparar alguma coisa, Inukashi e Rikiga aceitam algo?”

“Agradecemos Karan, mas estamos de saída, Preciso regularizar uns documentos urgentemente e Inukashi está ocupado com o hotel. Mas obrigada pela oferta.” Rikiga foi polido como sempre era perto da mãe de Shion.

Quando finalmente saíram, Shion comeu e repetiu o prato de sopa de cebola que sua mãe preparara duas vezes. Então subiu pro seu quarto para que pudesse tomar banho.

Ligou a água quente no máximo e se prostrou perante ela. A diversão havia acabado. Sem mais pensamentos direcionado a Nezumi a partir de agora. Foque em seu objetivo.

Mais tarde, ao se deitar, Shion percebeu que estava estranhamente exausto, mesmo tendo dormido o dia inteiro. Quando fechou os os olhos, não foi ele quem reinou seus pensamentos, foi Safu. Sua amiga gentil, espontânea e querida. Não pude salvá-la, afinal.

Naquela noite, Shion não sonhou.

Na manhã seguinte, seus olhos estavam secos. Uma batalha interna havia sido vencida.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Devo continuar?
Comentem, opinem, critiquem.

A música para quem não lembra é essa daqui: http://www.animelyrics.com/anime/no6/kazenorekuiem.htm

*Que jovem mais sarcástico.



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