Behind The Lines escrita por mandiproost


Capítulo 3
Run


Notas iniciais do capítulo

Espero que você goste! (:

Texto inspirado na música "Run" do Snow Patrol.



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John terminou de arrumar a mala um pouco antes das 9h da manhã. O trem sairia ao meio dia em ponto, mas o caminho até a estação era longo.
Respirou fundo.
Abriu a pequena mala marrom novamente e conferiu se nada faltava. Uma escova de cabelo, quatro vestidos um pouco amassados, pois não tivera tempo de passa-los, um sapato preto de fivela que ela havia ganhado de presente da mãe, cinco calcinhas em bom estado e um laço de cabelo.
Fechou a mala e respirou fundo novamente. Era tão difícil não chorar. Sentou na cama e olhou para o lado. A menina dormia tão tranquila, como se não houvesse maldade no mundo. E quanta maldade no mundo. Talvez Clair tivesse sofrido com a crise muito mais que ele. Havia perdido a mãe, do mesmo jeito que ele havia perdido a esposa. E agora perderia, mesmo que momentaneamente, o pai.
As lágrimas começaram a ameaçar descer pelo rosto do homem sem permissão. Logo teria que acordar a filha para a viagem. Talvez ele fosse incapaz. Talvez fosse impossível deixar a menina de apenas nove anos entrar num trem cheio de desconhecidos com um destino incerto. E se ela se perdesse? E se a tia não fosse busca-la na estação de Nova Jersey como havia prometido? Eram quase cinco horas sozinha dentro do trem. Muitas coisas poderiam acontecer nessa viagem.
O pai não sabia o que fazer e exatamente por isso sentia que deveria fazer alguma coisa. Mandar a filha para sua irmã cuidar talvez não fosse a melhor opção, mas era a única que ele tinha, depois de tantas esgotadas. Por último, iria tentar uma oportunidade de emprego em Nova York, pois o novo presidente havia declarado um novo plano econômico para ajudar o país a passar pela crise. Roosevelt havia prometido a construção de novas escolas, estradas, aeroportos e habitações e John tentaria entrar nesse programa como construtor. Ainda tinha esperança.
John levantou e olhou no espelho. O rosto cansado e robusto do homem trazia rugas indevidas à sua idade. As roupas surradas que haviam sido doadas por alguns vizinhos mais economicamente estáveis possuíam algumas manchas de tinta. Os cabelos escuros estavam precisando de corte e mostravam diversos fios brancos.
~*~
A crise de 1929 afetou a família Stevens de maneira grave. John, o pai, antes engenheiro de uma grande empresa de Pensilvânia, perdeu seu emprego, pois a empresa faliu, e tornou-se um faz-tudo. Nicole, a mãe, era dona de um salão de beleza perto do bairro onde viviam e teve que fechar o negócio por causa das dívidas. Pouco tempo depois, ela abandonou a família para casar-se com um membro parlamentar rico que frequentava o salão.
Durante quatro anos, desde que a crise estourou, John conseguiu cuidar da filha com alguns empregos momentâneos e com a ajuda de alguns parentes e vizinhos. A situação era lamentável, mas ele nunca deixou de lutar ou de procurar por emprego e ajuda. Tudo isso por causa de sua filha. Sentia que Clair era a única coisa no mundo que o fazia continuar lutando. Como se ela desse energia para ele sair de casa todos os dias em busca de uma vida melhor.
Todas as noites, antes de dormir na única cama da pequena casa emprestada, John cantava para Clair. A menina de olhos claros e cabelos escuros rapidamente dormia ao ouvir a voz doce do pai. A canção era feita apenas de murmúrios e Clair sempre se perguntava porque não havia palavras na música, nunca obtendo uma resposta conclusiva de John.
~*~
John sentou-se na cama e acariciou os cabelos macios da filha. Alguns cachos estavam bagunçados devido a noite de sono.
A canção começou a ecoar pelo quarto como uma brisa suave entrando pela janela. A medida em que ele cantava, cada vez um pouco mais alto, Clair se espreguiçava mais.
– Bom dia, querida. – Ele disse com um sorriso no rosto.
– Bom dia, papai. – Ela respondeu com um bocejo enquanto coçava os olhos.
– Você se lembra da viagem para a casa de sua tia Jane, não é mesmo? – Enquanto falava, John terminava de separar o vestido rosa florido que ela usaria para a viagem.
– Sim. – Respondeu com um semblante triste. – Mas ainda não quero ir. Deixe-me ir para Nova York com você, papai. Eu prometo que vou me comportar. – Os olhos verdes e encantadores dela suplicavam ao pai. Olhos iguais aos de sua mãe.
– Querida, já conversamos sobre isso. Eu não consigo cuidar de você e trabalhar em Nova York. – As lágrimas da menina já desciam pelo rosto pálido e macio dela. – Ei, não chore. – Com um beijo na testa, John tentou disfarçar a angústia de ver a filha tão triste e a dor de ter de se separar dela. – Prometo que vou visita-la assim que conseguir. O que acha?
– Tudo bem.
~*~
Durante o caminho até a estação, Clair ficou estranhamente quieta. Mantinha sua mão esquerda apertando a mão direita do pai como se sua vida dependesse daquilo.
John não disse muito, também. Já era, por natureza, um homem quieto e calmo. Talvez a falta de palavras aguçava sua habilidade com ações. Sempre cantarolando e acariciando o cabelo da filha ou, até mesmo, trazendo algumas flores que pegava no caminho de casa, ao contrário de Clair, que falava quase o tempo todo. Ela tinha essa paixão por conversar com o pai sobre coisas simples como a cor do céu. Uma alegria contagiante vivia no coração da menina que estava sempre conversando com os vizinhos e lhes contanto fatos interessantíssimos como a lagarta do quintal havia comido quase toda a margarida que o pai havia trazido.
O caminhar de ambos era sempre conectado. Clair dava alguns passos a mais para alcançar o pai, que tinha pernas altas, mas geralmente ela se divertia ao fazer isso.
Naquele dia, porém, seus passos não pareciam ter ânimo para alcançar os do pai. Por vezes ele diminuía o ritmo ou puxava delicadamente a menina um pouco para frente.
Quando chegaram à estação, às 11:50, John e Clair pararam em frente ao trem que já permitia o embarque dos passageiros. Clair permanecia calada, chorando silenciosamente enquanto olhava para o ambiente através das lágrimas.
Várias pessoas correndo, despedindo e se cumprimentando. Algumas chorando, outras sorrindo com a chegada de parentes. Quase todos carregavam malas de todos os tamanhos, cores e tipos. Um homem parado na porta do trem possuía um apito que intrigou a menina. Um relógio enorme no meio de uma coluna da estação mostrava que o tempo não parava, por mais que ela quisesse.
– Querida, já está quase na hora de ir. – Ele abaixou-se e olhou para a filha, que não respondeu. – Não fique assim, por favor. – John sabia que precisava ser forte. Por ela. Por ele. Não podia fraquejar, não naquele momento. – Eu te amo muito, minha querida.
– Eu também te amo, papai. – Ela disse um pouco mais calma enquanto olhava para ele. – Não me abandone como a mamãe fez. – pediu com um semblante sério e confuso.
– Nunca vou te abandonar, querida. – John segurou gentilmente o rosto da filha. – Nunca.
Clair respirou fundo e fechou os olhos, deixando mais algumas lágrimas escaparem.
– Cante para mim mais uma vez. – Ela pediu com os olhos ainda embaçados e fraquejantes.
– Tudo bem. Cantarei para você só mais uma vez e depois você deve ir. – John respondeu e respirou fundo.
A música era a mesma, mas dessa vez, John estava cantando com palavras.
“Eu cantarei pela última vez pra você, então nós realmente teremos que ir. Você foi a única coisa certa em tudo que eu fiz e eu quase não posso olhar pra você, mas toda hora que eu faço eu sei que vamos conseguir em algum lugar longe daqui.
Anime-se como se você tivesse uma escolha. Mesmo que você não possa ouvir minha voz, eu estarei do seu lado, querida.
Mais alto e nós correremos por nossas vidas. Eu quase não consigo falar, eu entendo porque você não consegue levantar sua voz pra dizer.
Pensar que eu talvez não veja aqueles olhos, se torna tão difícil não chorar e enquanto nós dizemos esse longo adeus, eu quase choro.
Mais devagar, nós não temos tempo pra isso. Eu só queria encontrar um caminho mais fácil pra sair de nossas cabecinhas. Tenha coragem, minha querida, é provável que sintamos medo mesmo que seja por poucos dias fazendo com que as coisas fiquem melhores.
Anime-se como se você tivesse uma escolha. Mesmo que você não possa ouvir minha voz, eu estarei do seu lado, querida.” *
Clair entrou no trem puxando a pequena mala consigo. O homem na porta apitou algumas vezes anunciando a partida do mesmo. A menina sentou-se perto da janela e olhou para a estação.
John estava chorando e ela soube, em seu coração, que veria o pai novamente.

*Música "Run" do Snow Patrol traduzida.


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Notas finais do capítulo

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