O que eu fui depois de você escrita por Raissa Muniz


Capítulo 4
Capítulo 3 - O pesadelo




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Para Helena, muita coisa tinha mudado desde o anúncio da gravidez. Lorenzo a enchera de perguntas ainda no jantar, perguntando quantos meses, desde quando ela sabia, como tinha se preparado para contar, se sua mãe do Rio Grande do Sul já sabia e quando poderiam saber o sexo do bebê. Perguntas essas que foram respondidas com “1 mês. Há alguns dias. Procurando na internet. Sim, já sabe. Com 15 semanas completas, no mínimo.”,respectivamente.

Ela, com seus 25 anos recém completados, se via em uma nova experiência desde a descoberta. Sempre colocara os planos profissionais em primeiro plano, mas o sentimento de comoção que a assolou foi tão intenso que todas as metas de trabalho que traçara para os próximos oito meses foram extintas. Helena riu diante dessa constatação. Começava a entender por que diziam que a maternidade tinha o poder de mudar as pessoas.

No dia seguinte ao jantar, enquanto Lorenzo escrevia aquela que viria a ser sua primeira carta, Helena seguiu para o seu trabalho, uma faculdade particular de Teresina onde ministrava aulas no cargo de professora temporária para a turma de Jornalismo. Uma vez em sala de aula, todos os acontecimentos anteriores pareciam se extinguir. Helena sentia-se livre e segura para ministrar suas aulas tão meticulosamente planejadas. Não lembrava de muitos acontecimentos exteriores durante os intervalos, mas a certeza cada vez mais próxima de que carregava outro ser dentro de si começava a se fundir em sua própria sombra.

Apesar de toda segurança profissional que carregava e das inúmeras perguntas que fizera à mãe sobre gravidez, um temor ainda crescia em seu âmago. A partir dali não seria mais apenas Helena e Lorenzo. Seria Helena, Lorenzo e uma criança. Uma criança que estaria sob seus cuidados pelo resto da vida.

Ansiosa, tais pensamentos a perseguiram durante todos os intervalos. Quando finalmente chegou em casa, às quatro da tarde, sentou-se defronte o computador e colocou uma música para tocar. Seus olhos azuis perseguiam novamente as páginas, dessa vez buscando orientações sobre gravidez. Finalmente achara um site que a fizera esquecer um pouco a inquietação quando o celular tocou insistentemente ao seu lado. Helena olhou o visor, aborrecida. Era sua mãe.

Olívia ligava para anunciar que comprara passagens para Teresina e que chegaria na semana seguinte. Helena suspirou, com um misto de aborrecimento e alívio. Aborrecida porque odiava ser avisada de última hora das coisas – e uma semana antes era um tempo curtíssimo para ela – e aliviada por ter a presença da mãe em casa durante esse período de adaptação.

Uma vez encerrada a ligação, voltou ao seu ritual de leitura entre sites de gravidez e saúde da mulher. Uma coisa que sempre a preocupara fora o sentimento de ansiedade que crescia em situações desconhecidas.

Cansada, caminhou rumo ao quarto do casal e se deitou, tentando esvaziar a mente por algum tempo. Aos poucos os pensamentos se misturaram e Helena adormeceu no meio da cama.

Curiosamente, algo que dificilmente acontecia se sucedeu: Helena sonhou. Caminhava em um extenso corredor frio e cheio de portas. Com passos rápidos, o temor percorria o seu corpo de tal forma que só após alguns segundos ela notara um diferencial: já não era uma Helena mulher. Sentia-se no corpo de uma Helena mais jovem. Exatamente como a criança que um dia ela fora.

Assustada, continuou a caminhar. As portas dos dois lados do corredor traziam nomes e enfeites levemente coloridos. As únicas coisas coloridas naquele ambiente. Parou, por fim, na frente de uma das portas. Lá estava escrito “Helena Maria Gloesmann”. Aquilo parecia ser uma maternidade, afinal. O corredor frio parecia se estender sempre mais a medida que caminhava. Ela abriu a porta devagar, com medo de ser encontrada bisbilhotando algo. Um medo que sempre a acompanhava. Contudo, não foi um bebê que Helena encontrara. Em sua frente estava um minúsculo quarto com paredes pardas e uma cama alta e espaçosa em seu centro. Helena tentou gritar, mas a voz não era projetada no ambiente. Na cama, seu pai estava deitado com uma mulher de rosto desfigurado. O assustador não era apenas a cena, mas também o fato de Augusto estar vinte anos mais jovem e a mulher não ter fisionomia alguma. As lágrimas saltaram, mesmo que a voz lhe fosse falha. Helena tentou sair correndo, mas também não conseguiu. Sentia-se presa àquele lugar. Naquele instante, nada mais parecia existir. Nem as inúmeras portinholas que estavam fora, no corredor frio, nem mesmo a vida que a Helena criança deixara para entrar naquele lugar. Só o que exisitia era medo. Medo do desconhecido, do inseguro, de todo aquele ambiente assustador.

A mulher com a fisionomia desfigurada levantou-se da cama enquanto Augusto continuava a caminhar. Seu corpo ia também se desfigurando a cada passo, com uma fumaça que se dissipa. Um buraco abriu-se em sua face em uma expressão antiquada que parecia ser um sorriso sarcástico. Ela migrava em direção à Helena. Esta já não conseguia se mexer. Seus cabelos loiros e encaracolados caíam por seus ombros e testa causando um suor de desespero. Queria pedir ajuda ao pai, mas também não conseguia. Gritar era algo que definitivamente não parecia ser a saída. Nem emitir som ela conseguia. A mulher desfigurada, por sua vez, continuava a andar. Chegou tão perto de Helena quanto poderia ser naquele instante. Sagaz, riu de uma forma má e sem modos. Pequenas gotículas de saliva pareciam saltar do buraco que se abrira no que deveria ser seu rosto. Tomavam Helena sem piedade alguma. A menina já não aguentava toda a situação, mas o medo a impedia de correr. A mulher desfigurada continuava a se aproximar, rindo. Quando sua mão fria e pegajosa por fim chegou ao braço fino e delicado da criança, a imagem pareceu se dissipar com em um liquidificador supersônico.

Helena acordou entre lágrimas. Seu coração palpitava de uma estranha maneira, resfolegando rapidamente como se fosse perder a consciência e precisasse de todo o ar em suas narinas. Dentre tantos acontecimentos que povoavam seus sonhos, aquele fora um dos piores pesadelos. Mas não havia sido o primeiro.

A esguia mulher caminhou para a beira da cama, ainda assustada. Levantou-se, foi à cozinha em busca de água e sentou-se em uma das cadeirinhas do balcão enquanto continuava a chorar. Não conseguia imaginar um motivo viável para todo aquele pesadelo. Não tivera um dia ruim e já fazia meses desde o seu último sonho horripilante.

Suspirou, vencida. Iria guardá-los para depois procurar um profissional. Não poderia continuar naquela situação durante a gravidez. E o bebê, como ficaria quanto começasse a sentir de forma mais intensa as emoções da mãe?

Convicta, caminhou rumo à salinha de estudos e abriu o notebook. Seus dedos percorreram rapidamente as teclas enquanto depositava ali todas as experiências que aquele sonho lhe trouxera. Seu medo de parecer ridícula se esvaíra junto com suas próprias convicções de que o melhor era reprimir tudo aquilo.

“14 de novembro de 2014.

Eu sou Helena Maria Gloesmann e tenho 25 anos. Não sei o momento exato que decidi escrever o que se passava comigo, mas temo que já não exista outra alternativa viável no momento. Tenho pesadelos horrendos desde a infância. Alguns consegui interpretar sozinha, embora tenha precisado da ajuda de profissionais em todos os outros. Apesar de tudo, não consegui manter uma terapia por mais de três anos com o mesmo profissional e me recusei a continuar outras e recomeçar toda essa tortura novamente. Meus pais sempre viajaram e trocaram de cidade como macacos pulam de um galho ao outro. Eu nunca me importei externamente com isso, mas odiava o fato de ter que deixar minha casa para em busca de outra quando eu acabara de conseguir fazer ao menos um amigo. Entretanto, fui criada com a noção de que tudo isso era necessário. Meus pais me ensinaram que não devemos nos apegar às coisas, tampouco às pessoas. Só não imaginei que tudo isso pudesse ser tão difícil.

Cresci em vários lugares, mas por conviver de perto com meus pais e voltar ao meu estado em intervalos irregulares de férias, desenvolvi um sotaque que era como um aviso em ambientes desconhecidos. Todos sabiam que eu era gaúcha depois de uma frase completa. Não que isso tenha me incomodado, mas me parece ser um pouco estressante ter que estar sempre explicando às pessoas que apesar de ser gaúcha e ter sotaque, eu não costumava tomar chimarrão e preferia o churrasco quase queimado. Meus pais nunca se mostraram felizes com essas tendências que fui desenvolvendo, mas pareciam aceitar que viver longe de casa faria com que minha identidade fosse um pouco de cada lugar.

Aos dezesseis anos vim para Teresina. Era pra ser só uma estadia rápida, como foi em todas as outras cidades que meu pai precisou ir à trabalho. Contudo, eu estava no ensino médio e fui preparada para o vestibular tradicional da Universidade Federal do Piauí. Posso dizer que foi o pior e o melhor período da minha vida. Pior porque meus pais já vinham brigando desde que eu me entendia por gente, mas nunca tinha evoluído isso para uma separação. Dessa vez foi diferente. Com um mês na cidade, o suficiente para termos uma boa casa mantida pela empresa e uma matrícula em um bom colégio, eles se separaram. Papai resolveu morar em um apartamento, e assim continuou até que a empresa o enviou novamente para outro estado. Mamãe pensava em voltar para o Rio Grande do Sul, mas não queria prejudicar meu ano escolar. Depois de alguma conversa, entendeu que era um ano decisivo em minha vida e que não podia ser quebrado assim. Terminei o ano letivo e consegui convencer mamãe a ficar para o próximo. Meus argumentos eram os de que eu não ia me preparar para três vestibulares diferentes, um em cada ano, para depois não ser aprovada em nenhum. Ela pareceu concordar.

Fui aprovada em primeiro lugar para o curso de jornalismo da universidade federal, notícia que rodou os quatro cantos desse país nas inúmeras ligações telefônicas de mamãe. Todos pareciam demonstrar uma felicidade enorme pelo acontecido... Até que mamãe voltou a dizer que voltaria para o nosso estado. Brigamos muito durante essa época. Eu já estava indo para o terceiro período e me sentia completamente focada dentro do curso. Depois de várias discussões, decidi por fim que iria ficar em Teresina. Mamãe alugou um apartamento apertado para que eu pudesse viver e ela conseguisse me manter ao mesmo tempo. Papai já não ligava com frequência, mas se comprometeu a pagar o aluguel e me presenteou com um carro econômico.

Aquilo era muito mais do que eu poderia querer no momento. Era ainda universitária, mas já tinha um carrinho e um apartamento apertado. Nada que pudesse levar alguém para passear, mas isso era o de menos. Nunca fui de ter muitos amigos. Até Lorenzo.

Eu o detestava quando o conheci, no segundo período. Ele parecia estar retornando à universidade agora depois um período com o curso trancado, porque parecia estar totalmente aéreo quanto às matérias do bloco anterior. Aquilo me irritava. Logo no início fui colocada para fazer trabalho em grupo e adivinha quem estava lá? O irritante de chapéu. Sim, de chapéu, porque ele desde que o conheci nunca o vi sem esse adereço por mais de quinze minutos.

Lorenzo também parecia me detestar, mas me respeitava. Aos poucos, fomos nos aproximando por motivos acadêmicos. Ele pedia minha ajuda em trabalhos constantemente, o que nos dava vazão para vários momentos juntos. Assim, viramos amigos. Grandes amigos. Não simples grandes amigos, mas grandes amigos do tipo que todo mundo apontava e dizia que ia terminar em casamento. Acabou que terminou mesmo, para a infelicidade da longa lista de pretendentes que Lorenzo cultivava desde a sua adolescência.

Ele tinha um jeito especial de conquistar as pessoas, embora eu tenha relutado ao máximo até admitir isso. Ouvi não uma ou duas, mas várias vezes, que era orgulhosa e sem coração. Nunca consegui me defender de uma forma coerente porque no final, era isso mesmo que eu era. Orgulhosa, mas não sem coração.

Isso me faz lembrar o motivo real d’eu ter começado esse texto: tenho pesadelos horrendos desde criança. Todos aqueles que todo mundo já teve como estar nua em um ambiente público e outros não tão comuns como sonhar com uma mulher desfigurada em uma cama dentro de um quarto que aparentemente era para ser o meu apartamento na maternidade.

Acho, inclusive, que esse sonho tem até uma explicação viável: papai sempre teve várias amantes, coisa que descobri depois, já mais velha, quando mamãe veio me explicar os motivos da separação. O motivo d’eu ter sonhado com ele logo agora é algo que ainda quero descobrir.

Estou grávida de quatro semanas também. Nunca imaginei que fosse colocar tanta coisa em um simples papel, mas já que comecei... Lorenzo, o pai, tem se mostrado orgulhoso e feliz desde ontem à noite, quando lhe disse. No momento em que escrevo este texto, parece que já se passaram dias desde o anúncio.

Tudo está em um movimento constante que eu não consigo acompanhar.”

Helena terminou o texto, aliviada. Apesar de todas as gritantes diferenças, a paixão pela escrita era algo que cultivava com Lorenzo. Respirou fundo, cansada, e olhou o mostrador do relógio branco que rodeava seu braço. Estava quase na hora dele chegar.


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