O que eu fui depois de você escrita por Raissa Muniz


Capítulo 3
Capítulo 2 - A primeira carta de Lorenzo




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O dia seguinte foi de má disfarçada excitação para Lorenzo. Em seu trabalho, uma empresa que prestava assessoria, fez questão que todos soubessem da notícia o quanto antes. Sentia-se vivo, tomado de uma nova sensação de bem-estar. Escolhera propositalmente um chapéu azul claro que Helena lhe dera em seu último aniversário. Após receber os votos de boa sorte e congratulações pela notícia, acomodou-se em sua mesa, tão amarrotada de papeis quanto poderia ser qualquer coisa vinda dele.

Sentou-se na cadeira, pensativo. Ainda se recordava da noite anterior e se preparava para contar a notícia a quem fosse necessário, requentando-a em tantos pontos que até características dramáticas foram incluídas na narração.

O telefone tocou, obsoleto demais para a ocasião, como Lorenzo pensou antes de atender.

— Alô? — disse a voz do outro lado.

— Opa. — respondeu Lorenzo.

— Estou falando com Lorenzo Sacramento?

— O próprio. — respondeu ele desinteressadamente enquanto ligava o computador.

— Aqui é Rubens Paiva, editor e produtor cultural que você enviou um e-mail, Lorenzo. Estou ligando para retornar o contato e demonstrar meu interesse em seus escritos. Gostaria de marcar um horário com você, saber como podemos desenvolver os originais que me foram enviados. Há alguma possibilidade de nos encontrarmos hoje?

— Possibilidade? — perguntou Lorenzo, surpreso. — Toda! Que horas?

— Podemos nos encontrar no café Ouro Preto às quatro da tarde?

— Claro, claro. — apressou-se a responder. — Passe-me o seu contato para que possamos nos encontrar.

Rubens passou seu número de telefone, confirmando em seguida e ressaltando que não poderia se atrasar no encontro. Pediu também que Lorenzo se dirigisse junto com seus originais impressos, finalizando a ligação com cortesia.

— Puta merda! — exclamou Lorenzo baixinho — Mal posso esperar para contar para Helena!

A ligação para a esposa, entretanto, não foi atendida. Depois de várias tentativas, Lorenzo se voltou para o computador e olhou as horas. Ainda faltavam quarenta minutos para o horário de chegada do seu chefe.

— Por que não aproveitar para escrever? — indagou, arqueando as sobrancelhas. Sentia-se invadido de boas sensações, uma alegria que há tempos não vivenciava de forma tão intensa.

Abriu uma página em branco do word e se pôs a rascunhar novos projetos e possibilidades de futuros livros. Apesar de trabalhar com assessoria, ainda carregava o sonho de publicar seus livros e viver do que escrevia. Sonho já muito refutado por todos em sonha volta, principalmente pelas condições do mercado literário piauiense, Lorenzo se viu obrigado a trabalhar com novas possibilidades para se casar com Helena. Não queria viver o resto da vida às custas do dinheiro da família, embora tivesse condições para tal. Helena, por sua vez, considerava inaceitável a mínima menção dessa alternativa. Sempre fora criada correndo atrás das próprias coisas. Entregar-se de bandeja aos cuidados não apenas de um homem, mas da reunião financeira de sua família, parecia ser um convite para o insucesso.

Lorenzo suspirou, extasiado. Escrevera algumas páginas, mas nada que pudesse ser aproveitado ao menos para postar no blog que também mantinha. Por fim, um arroubo de criatividade lhe invadira enquanto fitava a produção literária do dia: escreveria um livro para Helena. Mesmo que não fosse publicado em longa escala, faria questão de preparar ao menos alguns exemplares e escreveria um livro de cartas para sua esposa. Não satisfeito, delimitou mais metas: entregaria o livro no primeiro dia das mães da esposa. Naquele instante, parecia ser a ideia perfeita.

Animado, abriu uma nova página no Word e começou a escrever freneticamente. Parou algumas vezes para avaliar o teor das palavras, mas o tic-tac frenético das teclas lhe davam mais ânimo para prosseguir com sua historieta particular.

“14 de novembro de 2014

Digníssima Helena Maria Gloesmann,

Estou aqui, sentado nessa cadeira desconfortável e infame de trabalho na assessoria enquanto ainda sonho em ser escritor e coloco para o papel mais uma de minhas invenções. Você provavelmente só receberá essa carta no dia das mães. O seu primeiro dia das mães, vale ressaltar. A partir de agora, farei absolutamente de tudo para cumprir a meta mais preciosa que já me impus.

Ontem você me deu a notícia que estava grávida. Pelo que lhe conheço, sei que passou horas pesquisando na internet uma forma de fazer isso sem que parecesse careta e comum. Criatividade nunca foi seu forte, mas manter-se no padrão do “comum a todos” também não. Espero sinceramente que tenha encontrado a alternativa que usou em um site de buscas. Imaginar a possibilidade de ter sido alvo de conversas e indagações entre você e suas amigas me deixa um pouco desconfortável.

Mas Helena, mesmo que esteja constantemente fora do padrão, você conseguiu fazer uma coisa linda. Deu-me a melhor notícia que há tempos eu podia esperar desde o “sim” naquela noite em que eu estava bêbado e alegre como um lêmure saltitante. Apesar de admitir seu gosto ferrenho por coisas novas, mesmo com a dificuldade em aceitar tais coisas, fiquei maravilhado pela forma que você me deu a notícia.

Organizou um jantar para comemorar nossos três anos juntos, fez com que eu pedisse omenu ao garçom e no lugar do papel com uma lista de comidas, recebi um papel com uma lista de nomes horrendos e inimagináveis que nunca imaginei que existiam no vocabulário de alguém. Aliás, como é que médicos conseguem aprender aquilo? Agora entendo o porquê dos seis anos em uma faculdade.

Enfim, não estamos falando de médicos ou seis anos em uma faculdade, embora eu pudesse aproveitar a oportunidade para lhe contar como entrei antes que você na universidade e passei exatamente os seis anos que um médico passaria para se formar. Poderia lhe falar também que odeio sangue e toda aquela coisa nojenta que eles têm que ver nesse seis anos. Preferi ter atrasado meus estudos. Certamente meu âmago reconhecia que algo muito melhor estava por vir: conhecer você.

Hoje, Lena, já fazem alguns bons anos desde que a vi pela primeira vez. Você estava, como sempre esteve durante todo o curso, afastada e centrada em suas próprias anotações. Seus cabelos loiros brilhavam e seus olhos ainda não eram como dois pedaços de céu para mim. Sinto em informar este detalhe, mas só passei a reconhecer a magnitude desse pedaço de céu anos depois, quando já éramos melhores amigos.

Não sei como conseguimos nos aproximar. Algumas coisas parecem estar simplesmente formadas, pedindo por nossa atenção. Essa me pareceu ser uma delas. O fato é que nos aproximamos. Nos aproximamos tanto que agora, oito anos depois, estamos casados e esperando um filho.

Sinto-me um pouco estranho com a possibilidade de me auto-intitular grávido, mas é exatamente essa a sensação que tenho. Desde ontem não consigo dormir ou pensar em outra coisa. Às vezes devaneio se também vou começar a navegar em sites de compras de artigos infantis como todas as grávidas que já conheci. A possibilidade me enternece.

Estou feliz. Grato. Um pouco nervoso, embora tente dizer para mim que estou seguro e vou levar todo o futuro numa boa.

Lena, você bem imagina o que essa notícia representou para mim. Perdi minha mãe aos catorze anos, como você já tantas vezes pôde constatar em minhas inúmeras sessões de terapia improvisadas no sofá do seu apartamento. Imagino como ela ficaria feliz nesse momento... Ser avó era uma coisa que combinaria bem com o perfil doce e carinhoso dela.

Queria escrever tudo, mas as horas correm e os preços de leite Ninho só aumentam a cada período. Preciso trabalhar, cuidar desse garotão ou dessa princesa que agora está sob nossos cuidados. Sei que você preza o trabalho, assim como sei que evita ao máximo que eu me apoie de qualquer forma nas finanças da família.

Mas sabe, Lena, eu estou crescendo. De todas as formas. E você tem me ajudado muito a conquistar isso. Não sei o que você vai achar disso tudo, assim como não sei o que eu vou achar desse presente quando ele chegar ao fim, mas saiba que estou colocando aqui o que há de mais autêntico e verdadeiro para mim nesse momento.

Vou ser papai. Pa-pai! Queria gritar ao mundo, mas temo que fosse ser encarado como um bobalhão ou algo que o valha.

Tenho que voltar ao trabalho agora, Lena... O escritor que vive em mim tem agora mais um motivo para buscar fontes alternativas para sustentar a nova família.

Eu te amo, minha querida.

Com amor,

Lorenzo Sacramento”

Lorenzo terminou tudo como em um só fôlego. Suspirou, maravilhado por ter conseguido ao menos produzir algo. A cabeça ainda estava um tanto agitada, mas permanecia com pensamentos menos frenéticos que há alguns minutos. Tudo parecia correr bem. Lorenzo seria pai, “Pa-pai!, como se repetia abobalhadamente. Tudo parecia perfeito e nada seria capaz de estragar aquele momento. O que ele não imaginava é que aquela seria apenas o início de uma série de cartas não só de amor e declarações amistosas, mas verdadeiras descrições de um futuro cercado por adversidades e lágrimas. Lorenzo ainda perderia muitas coisas. Perderia oportunidades, finanças e empregos. O que menos esperava era ter que perder pessoas especiais para ganhar outras.


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