O que eu fui depois de você escrita por Raissa Muniz


Capítulo 2
Capítulo 1 - Uma notícia inesperada




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Tudo estava organizado há dias. O jantar de “última hora”, a ligação apressada e o distanciamento das últimas horas. Helena passara horas pesquisando na internet formas de dar a tão esperada notícia sem que parecesse ridícula – como todos os sites induziam a ser.

— Maldito Google — soltou ela enquanto navegava, indo de um link ao outro como um caçador persegue sua presa. Esse adjetivo, “maldito”, quando proferido da boca de qualquer de outra pessoa poderia até ser encarado como normal. Por infelicidade de Helena, ela não era uma dessas pessoas que os outros incluem no padrão comum de beleza.

Helena era bem mais. Elegante e doce, tinha um ar que exalava superioridade. Perfeccionista demais, se formara na faculdade de Jornalismo no ano anterior e desde então lutava para entrar em um mestrado público. Quando escrevia, revisava pelo menos três vezes antes de enviar ao destinatário. Não aceitava erros, embora tentasse não demonstrar irritação quando eles vinham de outra pessoa. Era doce, como todos diziam. Tinha cabelos loiros e uma pele branca que não condizia com o sol de Teresina. Além disso, tinha olhos azuis. Olhos tão azuis quanto os intermináveis dias de verão da cidade. Sinto-me na obrigação de explicar-lhes também suas origens: Helena era gaúcha. Cidadã tipicamente brasileira, já morara em tantas cidades do Brasil que nem lembrava mais de descrever algumas. Filha de um representante de vendas, passara a maior parte da vida com sua mãe, Olívia, que lhe criara tentando seguir o ritmo de vida do pai. A última cidade que eles se instalaram, quando Helena ainda tinha 16 anos, foi Teresina. E tendo se preparado durante todo o ensino médio para o vestibular tradicional da Universidade Federal do Piauí, foi lá que a então mulher decidira fincar raízes. Sua mãe voltou para o Rio Grande do Sul, de onde ligava todas as semanas e mandava e-mails sempre que estava em frente a um computador. Seu pai, uma vez acostumado com a rotina de um representante de vendas, continuou sua vida nômade pelo Brasil. O último lugar que havia estabelecido morada fora no Mato Grosso do Sul. Ah, acho por bem informar-lhes também, caros leitores: os pais de Helena já não eram um casal há uns bons tempos. Provavelmente já percebeu isso desde o instante que citei a vida profissional agitada de seu pai, Augusto. Mas como dizem os mais velhos do que eu: pontuar não é pecado.

A jovem, ainda no curso, conheceu Lorenzo, paulista que de São Paulo só trazia a naturalidade. Ainda criança fora trazido à Teresina, onde seu pai fora chamado para assumir os negócios do avô recém-falecido. A família de Lorenzo era, desde então, dona de uma rede de panificadoras do estado. Logo começaram a se conhecer, levando primeiro uma amizade que se arrastou até o namoro. Por culpa de Helena, segundo Lorenzo costumava falar. Como já foi adiantado, Helena não era a pessoa mais fácil de ser conquistada. Perfeccionista até em seus erros, procurava não deixar vazão para críticas em sua vida. Não foi com facilidade que aceitou Lorenzo em sua vida. Ela, difícil de ser conquistada, e ele, difícil de desistir, formaram um par amoroso já no último ano do curso. O título de “melhores amigos” já não cabia em suas vidas. Eles eram mais, como a própria Helena fez questão de assumir, dando-se por vencida em uma das raríssimas vezes que aceitou isso na vida.

Lorenzo, com um histórico carregado de escolas caras, passeios internacionais nas férias e amigos igualmente ricos, escolheu o curso, segundo ele próprio veio a dizer, puramente pela arte. Queria ser útil à sociedade, mas não trazia planos como os de Helena, que queria ser uma grande professora universitária. Ele queria ser escritor. Sempre escrevera e tomara convicção de seu papel nos anos finais do ensino médio. Ingressara na universidade federal com ótimo desempenho, mas – talvez por já ver o futuro como algo previsível no quesito financeiro – nunca chegou a se esforçar para conquistar muitos títulos dentro da faculdade. Não como Helena.

Tinha um metro e setenta e era apenas cinco centímetros mais alto que Helena, mas não perdia uma única oportunidade de chamá-la por “baixinha”. Desde os 19 anos tinha os braços recobertos por algumas tatuagens. Usava também alargador, um chapéu para cada ocasião, um arsenal de camisetas que falavam por si e uma barba que ficava por fazer durante dias. Seus olhos eram pretos, assim como seus cabelos levemente encaracolados. Tinha um sorriso limpo e dentes certos. Tudo em Lorenzo denunciava os cuidados que tivera em sua infância. Até mesmo seu jeito galanteador se encaixava nesse perfil.

Procurava ser original em tudo, embora nem sempre obtivesse êxito. Pediu a mão de Helena em casamento no baile de formatura. Parou a banda, ainda que um pouco bêbado, e dirigiu-se ao palco entre gritos e palmas de encorajamento de seus colegas de turma. As palavras que disse naquela noite ainda ecoavam na mente de Helena enquanto ela navegava por sites buscando alguma originalidade em seu anúncio:

“Eu sei que você vai odiar tudo que eu falar a partir do momento que eu abrir a boca, mas me recuso a entrar no seu grau de perfeição para fazer isso. Helena Maria Gloesmann, você é exatamente o tipo de mulher perfeita que eu sempre prometi não me envolver. Você é exatamente o perfil que eu tracei durante toda a minha vida para ser o da minha chefe, não o que eu esperava encontrar na mulher que mudou o rumo da minha vida. Você me ajudou a ser mais maduro, me ajudou a crescer em tantas formas que hoje já nem consigo me imaginar sem seus conselhos. E seus olhos... Seus olhos são como pedaços de céu. Mesmo em dias de névoa, mesmo quando até você não está tão ensolarada quanto eu gostaria, mesmo nesses dias... Seus olhos são como pedaços de céu. Helena Maria Gloesmann, eu escrevi um texto enorme para falar pra você, mas rasguei aquela porra antes que você fosse pontuar minhas palavras com a vírgula certa. Você já pontuou minha vida. Já pontuou com todos os seus pontos certinhos e irritantes. Já me trouxe pontos de interrogação, vírgulas e ultimamente tem me deixado nos três pontos... Helena Maria Gloesmann, você quer colocar um ponto final nessa história e começar um novo parágrafo?”

A gritaria que se sucedeu ainda reverberava na mente ansiosa de Helena. Lorenzo, ainda no palco, tirou o chapéu que sempre levava para ocasiões formais e agradeceu aos amigos. Sua voz de bêbado antes disse uma última coisa antes de descer e correr até a mesa em que Helena e sua família estavam sentados: “Porra, eu tô me superando nas cantadas de pedreiro!”

Helena aceitou o pedido de casamento, dizendo para si que tinha sido uma metáfora “até que bonitinha”, não uma cantada de pedreiro retirada de um desses sites da primeira página do Google. Lorenzo esquecera as alianças em casa, mas Helena também perdoou isso, mesmo que um pouco irritada. Já não conseguia sentir tanta raiva depois daquela declaração. Talvez fosse o álcool mantendo sua cabeça um pouco mais livre.

Mas já haviam se passado alguns anos desde aquele pedido e hoje eles completariam três anos de casados. Helena aproveitara a ocasião para marcar um jantar em um restaurante da cidade, dizendo para si mesma que tudo deveria sair dentro dos padrões de perfeição que ela crescera. Não queria apenas comemorar o aniversário de casamento, mas também anunciar algo muito mais importante para Lorenzo. Continuou navegando entre as páginas do Google, irritada. Nada de original. Nada que fosse perfeito o suficiente no “padrão Lorenzo de originalidade”.

Passaram-se minutos nessa dança frenética por uma melhor forma de dizer. Por fim, tendo desistido de procurar a resposta na internet, Helena correu para o telefone e confirmou a reserva de mesa. Em seguida, ligou e confirmou também com Lorenzo, dizendo que ia ser apenas um jantar de aniversário de casamento.

Arrumou-se com um vestido rosa-claro curto e penteou o cabelo com um penteado meio preso. A maquiagem também foi leve, mas fez questão de ressaltar os olhos azuis que tanto gostava.

Ela fez questão de chegar mais cedo no restaurante, onde foi à procura do gerente e combinou algumas coisas com um garçom. Tudo teria que sair perfeito, exatamente como em seus planos. Sentou-se, por fim, ainda que faltassem trinta minutos para a hora marcada com Lorenzo. Helena tinha uma mania incurável de chegar mais cedo nos lugares. Como tão bem recitava: “Melhor se adiantar do que se atrasar.”

Lorenzo chegou exatamente na hora marcada. Uma das suas qualidades era a pontualidade, sempre tão prezada por Helena.

— Você está linda. — Disse enquanto se sentava. Helena se limitou a enrubescer.

— Obrigada.

— Então... O que vamos pedir? — Lorenzo perguntou. Apesar de todas as qualidades, ainda tinha o defeito comum de não observar bem os momentos.

— Pode ser uma bebida pra você e uma água de côco pra mim. — Respondeu Helena, nervosa.

— Ok. — E chamando o garçom que já se aproximava, fez o pedido enquanto Helena continuava a enrubescer cada vez mais. — Ei! Porque tão vermelha? — Perguntou enquanto ria. Um sorriso branco e certo.

Helena passou a, propositalmente, mudar o rumo da conversa. Lembraram do dia do casamento. Casaram-se em um buffet isolado, sem benção religiosa ou qualquer coisa que seguisse demais o protocolo. Os parentes de Lorenzo vieram de várias partes: de São Paulo, do interior do Piauí e da própria Teresina. Os de Helena migraram do Rio Grande do Sul e adjacências. Até seu pai, sempre tão ocupado, esteve presente. Foi tudo, no bom vocabulário helenístico, “perfeito”.

— Não sei como você aceitou casar comigo. De cada dez palavras que eu te disse no nosso baile de formatura, cinco deviam ser algum palavrão. Lena, você casou com um bêbado. — Disse, rindo.

Helena permaneceu em silêncio, apreensiva. Por fim, decidiu pedir logo o cardápio com os pratos principais.

— Pode pedir. — Disse Lorenzo, despreocupado.

— Peça você. — Rebateu ela, fitando-o com seus olhos azuis e profundos.

— Ok, ok. Não vamos brigar por um cardápio.

Helena riu, tentando disfarçar o nervosismo. Lorenzo arqueou as sobrancelhas, assustado. Ela estava estranha demais.

— Garçom, o menu principal, por favor. — Pediu ele após o garçom se reaproximar, agora também rindo. — Mas o que é que tá acontecendo aqui? — Perguntou Lorenzo, desconfiado.

Helena riu mais uma vez. O garçom a acompanhou no riso, mas se afastou enquanto Lorenzo continuava com suas perguntas intermináveis.

— Mas que porr... — Começou ele para Helena, mas o garçom já havia se reaproximado com um grande caderno em sua frente. Entregou-o fechado às mãos firmes de Lorenzo.

Este, por sua vez, agarrou o caderno com desconfiança e curiosidade. Abriu o caderno e sua reação se petrificou por alguns segundos.

Helena riu, trêmula, sem graça. Lorenzo abriu um sorriso frouxo, depois se pôs a gargalhar.

— Posso não ter frequentado uma faculdade de medicina como mamãe quis, mas ela se sentiria orgulhosa neste momento. As legendas médicas sempre salvam nossa vida... — Divagou ele, ainda perdido entre sorrisos. — Helena, isso é simplesmente maravilhoso! Você está grávida!


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