Meus dias sombrios escrita por Clarice


Capítulo 12
Capítulo Onze


Notas iniciais do capítulo

Sobre a intensidade do amor: existe algo mais lindo? Acho que não...
Continuemos nesse ritmo, continuemos!
Boa Leitura!



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Capítulo onze

Estávamos correndo no meio da rua. Era umas três da madrugada, e corríamos na chuva. Nossas roupas grudavam nos nossos corpos quentes de energia e vivacidade. Nossas barrigas estavam tão entupidas de pizza que não dava nem para beber um copo d'água sem explodir. Chegamos na portaria do prédio dela, e o porteiro meio sonolento nos olhou assustado, como se fossemos alienígenas. Continuamos rindo, a gente ria tanto. Devia ser porque durante o filme que vimos, partilhávamos uma garrafa de uísque. A deixamos pela metade quando decidimos ir na Pizza 24hr que tinha na rua de trás. E na volta acabou chovendo. No elevador começamos a sentir frio, pelo corpo molhado com o ar-condicionado. Quando chegamos ao apartamento tomamos mais um gole de uísque, e fomos para o chuveiro.

Tudo acontecia tão rápido, e ao mesmo tempo não parecia que outro ritmo nos cabia mais do que aquele. Enquanto eu lutava para abrir o zíper do meu vestido Vanessa tentava abrir a sandália que ela calçava. Parecíamos tão patéticas que rimos disso também. Eu tentei ajudá-la e acabei caindo em cima dela. Não conseguíamos mais levantar.

–Eu estou morrendo de frio. -Eu disse. A sentia tremer em baixo de mim.

–Eu também. -E recomeçamos a risada.

–E o pior é que de rir tanto eu perco a força e não consigo mais levantar. Meu corpo está tão pesado.

–É verdade. -Ela comentou. - É verdade.

Eu me sustentei sobre meus braços frágeis e moles. Pareciam mal ter ossos, e a mirei um instante. Parecia a criatura mais bonita da face da terra, seus olhos estavam meio inchados, sua boca meio rosa. Seus cabelos espalhados pelo chão, brilhosos pela luz da lâmpada. Sua pele fria por causa da chuva. Eu a beijei de olhos fechados, e então me deitei ao lado dela. A gente ficou uns minutos assim.

–Gente, como o mundo está girando. -Ela comentou.

–Como eu tenho ficado bêbada. -Minha voz era atropelada e desafinada. -Acho que essa última semana foi a que eu mais bebi na vida toda. -Ela se virou e eu me virei também, nos encaramos.

–Vamos levantar no três. -Ela falou, me encorajando. Eu concordei com a cabeça.

Um, dois, três! E tentamos nos colocar de pé. Por ter sido um movimento rápido, ficamos tontas. Se não tivéssemos escorado uma na outra, teríamos tido um tombo feio. O tombo não aconteceu. Fomos até o banheiro. De alguma forma eu já estava descalça. Vanessa tirou o vestido pela cabeça, eu lutava com o zíper do meu, que ficava no meio das costas. Ela me ajudou com isso. Estávamos seminuas. Chutei meu vestido para o lado e dei dois passos para alcançá-la. Voltamos a nos beijar. Fizemos amor durante o banho, e depois na cama. E não nos vestimos. Ficamos de baixo das cobertas, naquela cama de solteiro, completamente nuas.

Fazia tempo que eu não dividia cama de solteiro com alguém. Sempre achei cama de solteiro algo tão íntimo pessoal e intransferível. Eu e Vanessa éramos íntimas, não havia dúvida. Havia entre nós uma conexão de corpo e mente que era difícil de achar. Eu sabia disso, ela sabia disso. As coisas pareciam tão simples naquela noite.

–Eu não quero dormir. Eu não quero dormir nunca mais! -Eu disse. Ela fazia carinho no meu cabelo.

–Você não quer é que chegue a manhã. Que chegue a realidade.

–Não quero. -Era a mais pura verdade.

–Eu desde que te vi pela primeira vez me apaixonei por duas coisas em você: seus cabelos ondulados e vivos, e seu tom de pele amorenado. São duas coisas simplesmente perfeitas. -Ela disse. Eu comecei a rir previamente, porque eu sabia exatamente como responder àquilo.

–Agora descobri!

–O quê? -Perguntou prontamente.

–Você não estava me protegendo, estava marcando território! -Ela riu tão sem graça que eu ganhei o momento.

–Eu desisto do amor, mas ele não desiste de mim. -Respondeu. -Quer saber outra coisa que dava para notar logo de primeira?

–Diz. -Minha descrença de que a piada não teria graça.

–Você era encrenca! Encrenca das grandes. Porque eu sabia, eu tinha certeza de que se minha primeira impressão estivesse certa, eu... -Hesitou.

–Eu...? -Incentivei.

–Eu me apaixonaria loucamente. -Ela disse aquilo com um pesar calculado.

–Porque considera isso algo tão ruim?

–Porque é. -Ela me disse, e me fez cócegas e rimos. -Não vai vomitar nas minhas coisas né?

–Só se você não vomitar em mim. -E o acordo foi selado. As cinco da manhã a gente dormia. O dia querendo raiar e minhas pálpebras pesando como chumbo. Eu estava morta de cansada.

Quando entrei no mundo dos sonhos, tudo parecia tão vívido e real, que era como um fragmento de memória. Um resquício de acontecimento que eu vivenciei, e que estava flutuante em minha consciência. Até se chocar com meu entendimento, e ele me aparecer em forma de sonho. Eu estava com uma barriga enorme, eu sentia um peso muito grande enquanto andava. Era incomodo, como seu eu estivesse vivendo dentro de um corpo que não era o meu. Minha coluna doía. Minhas pernas doíam. Eu lembro de sentir minha cabeça batendo com força, talvez no chão. Talvez eu tenha caído, ou sei lá. Depois tudo fica tão confuso. Eu lembro de estar numa mesa de hospital. Lembro de ver os olhos de Matheus marejados, como se ele tivesse chorado muito. Seus cabelos estavam tão bagunçados, ele tinha olheiras terríveis. Eu não falava nada, na verdade meus olhos pesavam e eu dormi profundamente. Alguns gritos surgiram confusos em torno de mim. Mas eu não distinguia as vozes, e nem as palavras que elas me diziam. E então eu vi tanto sangue, tanto. Em mim, viscoso, em minhas mãos. E eu chorava, eu chorava tanto. Tudo parecia terrivelmente confuso quando eu acordei.

A sensação de ter uma ressaca já estava se tornando conhecida. Corri ao banheiro quando percebi que iria vomitar. Depois esvaziei a bexiga, lavei o rosto. Meu rosto estava péssimo. Pior do que péssimo. Muito pior do eu péssimo. Eu quase não me reconheci no espelho. Minha pele estava tão pálida. Meus olhos pareciam loucos, minha olheiras tinham olheiras. Nem se eu tivesse participado de todos os dias de Woodstock e fumado toda maconha do mundo eu teria a cara que estava naquela hora. E eu estava nua. Havia diversas marcas pelo meu corpo, vermelhidões. Lembrei de meu marido e corri pra cama para acordar Vanessa. Ela dormia de pernas e braços abertos e relaxados sob o cobertor. Eu a sacudi ela abriu os olhos lentamente:

–Onde está meu celular?

–Não sei, na sua bolsa... Que dor de cabeça do inferno. -Ela reclamou. Meu coração já estava desesperado, meu marido iria me matar, deus o que foi que eu fiz? Não tinha nem tempo de curar a ressaca. Era meio-dia. No máximo as quatro Matheus estaria em casa. Minha boca tinha um hálito terrível de uísque.

–O que vou fazer? -Eu tinha olhos arregalados.

–Não sei... Que horas Matheus vai chegar?

–Não sei, no máximo as quatro. -Sibilei.

–Vai tomar um banho, eu procuro seu celular e te arranjo umas roupas. Você chega em casa e se troca.

–Certo. -E fui correndo tomar um banho.

Quando saí do chuveiro havia em cima da tampa do vaso umas roupas. A gente vestia quase a mesma coisa. Eu só era um pouquinho mais magra do que ela. Usei seu desodorante, e penteei meu cabelo com seu pente. Vesti suas roupas. Eu realmente não precisava de nada meu caso fosse viver ali. Viver ali... Aquilo soou tão engraçado e absurdo. Ela estava correndo pra lá e pra cá, tomou remédio pra dor de cabeça, me ofereceu. Reclamou da ressaca umas trinta vezes. Parecia que tinha sido ela quem tinha traído o marido. Quando saí do banheiro ela me entregou minha bolsa, e uma sacola com minhas roupas e sapatos.

–Você vai contar? -Ela me perguntou. Eu a olhei nos olhos. Ambas estávamos com medo.

–Eu não sei. -Respondi sinceramente. -Eu não sei.

Nos abraçamos. Aquilo me deu uma angústia. Foi como se eu não conseguisse conceber que algo tão maravilhoso pudesse ser errado sob qualquer prisma ou ângulo. Não podia ser errado, não podia. Os olhos dela eram ainda mais perdidos que os meus.

–Fique calma. -Eu lhe disse, e dei um beijo na testa. -Tudo vai dar certo.

–Ah meu deus, como vou te levar? Ainda estou bêbada. Coloquei o café pra passar. Preciso tomar um banho e...

–Tome o seu banho, eu posso ir de taxi. -Eu tentava agir naturalmente, numa situação tão fora do normal. Ainda não tinha processado nada. A conversa estranha com Matheus, a cartomante bizarra, minha paixão absurda e correspondida por Vanessa, o sonho-memória. Na verdade eu não tinha processado nem o assalto. Nem a Natália ter dormido na minha casa. Quando minha vida deixou de ser algo absolutamente normal e compreensível? Eu me perguntava tomando aquele café amargo.

O apartamento de Vanessa era apertado, mas era uma graça. Lugar bem decorado, com janelas nos lugares certos. Jovem e organizado. Acolhedor. Os móveis eram de madeira, o sofá era confortável e a televisão não era grande, era do tamanho certo. A cozinha era um primor e o banheiro azulejado parecia tão a cara dela. O apartamento era ela. Eu mal tinha tido tempo de ver isso ontem a noite. Na verdade aquela noite tinha tanta informação. Era impossível não lembrar só em fragmentos. Com a bolsa na mão me lembrei de ligar para o Matheus:

–Oi amor, que hora vem pra casa? -Comecei. Carinhosa como um anjo.

–Eu já estou em casa! - Ele respondeu irado. Merda.

–Como, como você já...? -Eu gaguejava.

–Luísa, onde você está? Com quem passou a noite? -Ele estava furioso. E com razão.

–Eu passei a noite na casa de Vanessa. Estava muito sozinho aí sem você e sem o gato. Está tudo bem, eu já estou voltando pra casa. -Merda, eu estou com as roupas dela, cheiro como ela. Merda, merda. Merda. Como vou justificar isso? De repente eu notei que precisava dizer a verdade, mas ao mesmo tempo acho que o Matheus não saberia lidar com ela. Não. Parecia um beco sem saída.

–A gente vai ter uma conversa muito séria! -Ele berrou, e então tentou se controlar. -A gente tinha combinado de você não sair por enquanto...

–Eu não combinei nada com você! -Me defendia. -Eu avisei que iria sair, e que não tinha hora pra voltar! E além do mais, você estava muito estranho ontem. Acho que essa conversa vai ser mesmo esclarecedora e necessária para nós dois. -Terminei dizendo.

–Certo. -Ele ficou meio indefeso. -Apena volte para casa, eu te amo.

–Certo. -Hesitei. De repente o fim da frase não saiu. O "Eu te amo também." Mas eu não notei de pronto. O que eu notei era que Vanessa tinha saído do banho e ouvido parte da conversa.

–O quão mal acha que está? -Me perguntou.

–Muito mal, Vanessa. Muito mal. Me leve até lá em baixo. Já vou pedir o taxi. Eu e meu marido vamos ter uma conversa muito séria. -O olhar dela era temeroso. Era um pouco mais alta do que eu. -Você está arrependida de alguma coisa? -Perguntei seriamente.

–Não.

–Eu também não. Então não temos o que temer. -Completei. Descemos o elevador e eu já tinha chamado o taxi.

Ela ficou me observando entrar e dizer para onde eu queria ir. Estava claramente preocupada. Mas não mais do que eu.


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Notas finais do capítulo

Todo ato tem consequências, o que dizer?
Eu especialmente adoro essa parte da história!
Au Revoir!



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