'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 32
Ruby da Língua Mágica


Notas iniciais do capítulo

Olááá! Ressurgi das cinzas!
Não sei se alguém ainda me acompanha por aqui - além dos leitores fantasmas, sempre presentes -, mas como eu amo escrever essa fic vou continuar postando, independente ou não de participação.

Relembrando o capítulo anterior:
Mary ainda está internada no hospital. Enquanto isso, as Beauchamp, Regina e Zoe estão hospedadas no QG. Killian e Liam estão sendo investigados pelo detetive encarregado pelo caso de Amos (pai dos dois), que sofreu um enfarto e está na mira da polícia por tráfico de drogas. Nesse meio tempo, Ruby acabou topando de novo com Jefferson, que fez uma revelação a ela no final do capítulo anterior.

Espero que gostem e aproveitem a leitura!



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— Ruby?

Pisquei, repentinamente sentindo um peso no peito. Jefferson me encarava com urgência, como se em meio a uma situação de desespero. Fez menção de me direcionar a um assento, murmurando que a minha pressão devia ter caído, mas eu estaquei no meio do corredor, agarrando as mangas de seu terno.

— O que diabos está me dizendo?! Assassina... foi isso o que a sua vidência lhe revelou por meio de sonhos? Ah, espere aí, você não é nenhum vidente! Esqueci, é apenas um charlatão tentando soar mais esperto do que...

— Não ouse usar minhas limitações como desculpa para justificar sua descrença! – clamou ele, com raiva declarada. Apontava o indicador para o meu rosto enquanto a sua própria face se avermelhava.

— Minha descrença? Você alega que eu vou me tornar assassina, me desculpe se reajo descrente! Eu estava esperando uma conversa madura... – me afastei bruscamente, deixando no ar a mão que tentava me privar a fuga. Ele cedeu quando notou que não estávamos sozinhos no corredor – E quer saber? Vá visitar Dorothea, talvez ela compre seus devaneios.

— Ruby, não seja estúpida! Não se atreva a deixar esse hospital com a dúvida na cabeça!

   Lhe dei as costas, adentrando o vácuo do elevador. A raiva que me queimava por dentro bem seria capaz de romper as minhas veias. Que ideia infeliz! Era de se esperar que o Chapeleiro se aproveitasse quando eu me jogara tão facilmente nas mãos dele. O que diabos ele achava que ia conseguir me manipulando daquele jeito?

Saí desembestada em direção ao estacionamento. Dirigir sem rumo parecia a opção mais acertada, mas eu senti que era preferível ir ver a Vovó. Fazia já um tempo que eu não ia. Ver o pessoal da pensão afastaria de mim aquela quantidade execrável de pensamentos. 

Levei menos de quinze minutos para chegar lá.

Tio Emppu reformava o sofá velho e Vovó tricotava na sala. Parecia mais branda do que o costume, considerando-se a forma com que se tratavam normalmente. Cogitei perguntar se haviam se resolvido, mas a reação à pergunta poderia causar uma grande turbulência. Desisti. Não precisava mesmo de mais um centro de caos num dos poucos ambientes que ainda me permitia segurança.

— Vê só, essa lã veio embaraçada... – resmungou ela, erguendo um novelo vermelho à altura de meus olhos.

— A senhora quer que eu desembole?

— Por favor, filha. Estou fazendo um casaco com capuz. Nessa friagem, você bem que precisa de um novo agasalho.

— Quando é que eu vou ter um novo agasalho? – Emppu virou o pescoço para a mãe, forjando um ar ciumento na expressão. 

— Não comece, Emppu – Vovó advertiu, desta vez sem a raiva enérgica que eu já conhecia.

— A senhora não me tricota nenhum casaco há quase trinta anos.

— Bem, você é um homem feito, pode tricotar por si mesmo.

— Se é assim – comentei, desatando com cuidado um volumoso nó em meio ao novelo –, eu mesma devia tricotar meu novo agasalho.

— Ah não, Ruby, filha, a vovó gosta de paparicar a única neta.

Tio Emppu largou o grampeador de tecido com exagerada indignação.

— Ah sim, tua vó sempre exerceu uma séria postura de paparicação! Primeiro Floor, agora Ruby. Pode ser sincera, mamãe, você me odeia como filho.

— Não, Emppu, não odeio, já que o ódio é um sentimento muito forte e conciso. Por você eu tenho apenas desprezo. Acho que é suficiente, considerando-se tudo.

Soltei uma risada, notando a expressão jocosa em seus lábios enrugados. Era um jogo de provocações, vencia quem forçava o outro a se indignar. Nessa competição, a Vovó levava a melhor.

— Eu vou ignorar o que acabou de dizer, não quero chatear a Ruby. Diga-me, filha, como anda a vida?

— Turbulenta – respondi ao tio, sem largar do novelo para olhá-lo – Há muitas coisas para se lidar ultimamente.

— Ruby, você precisa cuidar da saúde, não estou gostando dessas olheiras – Vovó balançou a cabeça, repuxando a linha enquanto manejava as agulhas.

— Talvez ela devesse tomar um pouco de Eggnog... deve ser a ameaça da gripe pairando.

Eu não estava certa de que uma forte dose de Eggnog fosse fazer bem ao meu estado gestante, mas a vovó estalou os lábios, erguendo-se da poltrona com agilidade.

— Emppu, às vezes a sua cabeça atua de um jeito formidável!

— Obrigada, vovó, mas ultimamente estou evitando o álcool... – ia dizendo, já preparando argumentos justificáveis que não mencionassem a gravidez. 

— Não se preocupe, bobinha, essa versão é não-álcoolica. Não achou que eu fosse manter seu tio sóbrio cozinhando gemada com conhaque para ele, não é? 

Rimos juntas e Emppu esperou que ela saísse porta afora. Veio até mim, uma expressão séria substituindo seu comportamento tipicamente debochado.

— Filha, nós ainda precisamos conversar. Sua vó me põe em vigilância constante, então terá de ser do jeito mais complicado... – ele fez uma pausa dramática, na qual o silêncio ambiente cumpriu seu papel de criar um efeito apreensivo – ... vamos ter de embebedá-la na ceia de Natal!

— Ah, era isso? – contive uma gargalhada – Eu bem ia achando que íamos tomar uma atitude radical.

— Mas vai ser radical! – ele piscou para mim, como um adolescente rebelde prestes a burlar a lei – Vou batizar o ponche e a Eggnog não-álcoolica.

— Bem, o Natal ainda está longe... Se eu tenho de saber algo, devia saber agora.

Hesitante, o tio assentiu sem me olhar diretamente. Me fitou com um ar de culpa, antes de ouvir passos pelo assoalho e retornar ao que estava fazendo.

— Aqui está! Uma dose bem aquecida! – Vovó depositou a caneca fumegante em minhas mãos e levei a bebida ao nariz, aspirando o aroma fresco de canela – Distribuí por toda a vizinhança, agora não há quem esmoreça no frio.

— Ah sim, afinal de contas a terceira idade é bem suscetível a pneumonia – debochou o tio, acrescentando – Se bem que a senhora já deve ter desenvolvido anticorpos vivendo nessa casa mofada.     

Para nossa surpresa, Vovó retomou as agulhas sem desfalecer o bom humor. Questionei o que havia lhe acontecido para que se comportasse assim tão pacífica.

— Ora, apenas estou satisfeita.  Não serei eu a lhe dar a notícia, Anastasia quer lhe contar pessoalmente.

Arregalei os olhos, enquanto o tio fez uma potente careta.

— Oh, meu Deus! Não me diga que...

— Sim, ela vai se casar com o Cabeça de Limão!

— Emppu! – ralhou a Vovó – Apenas finja surpresa, Ruby, agora que esse bestalhão fez o favor de estragar tudo.

— Hum, você parece um tanto indignado, padrinho... – a julgar a força com que ele pregava o novo tecido do sofá, eu podia dizer que o casamento entre Will e Ana não era de seu agrado.

— Bem, só acho que uma mulher devia pensar melhor na espécie de homem que leva para o altar.

— E se eu me casasse com Colin, você desaprovaria a escolha? – questionei, estranhando seu incômodo excessivo com a vida alheia.

Vovó me deu tapinhas no ombro, se atrapalhando um pouco com as agulhas.

— De forma alguma! Não ligue, Ruby, ele só está invejando o relacionamento que não pode ter.

— Bem, então responda, padrinho. Colin o desagrada, assim como lhe desagrada Will?

Meu tom saíra mais irritado do que eu gostaria. Tio Emppu largou o grampeador e, num movimento dramático, veio se postar de joelhos aos meus pés, por fim agarrando as minhas mãos.

— Não, Ruby, não... É uma questão de bom senso. Veja só, Colin é um homem, o Cabeça de Limão é um moleque. A sua avó, tão questionável em comportamento, ao menos escolheu um homem decente como meu pai. E tua mãe, bem... digamos que, no fundo, Tuomas era um bom rapaz...

— Quer dizer que não o aprovava?!

— Ele queria que ela se casasse com o melhor amigo dele – retrucou Vovó, lançando ao filho um olhar de censura por cima dos óculos. Ele se defendeu:  

— Eu só queria que a minha irmãzinha fosse feliz...

— E o que aconteceu depois, Emppu? Ele bateu as botas, um acidente terrível! Imagine, Ruby, tua mãe estaria viúva aos vinte anos.

— Ao menos não estaria morta!

— EMPPU!

Um silêncio se seguiu às nossas reações. Vovó parecia prestes a cair no choro, mas eu me limitei a cerrar os lábios.

— Desculpe, Ruby, eu não quis dizer... - o tio ficou muito vermelho e seu tom pareceu arrependido, mas o interrompi antes que aquele assunto tomasse outras proporpções.  

— Eu entendo, tio, entendo mesmo. Você quer culpar meu pai, mas não há a quem culpar. Pessoas morrem. Elas... morrem sem dar aviso...  

— É por isso que a gente tem que ser feliz com um par à nossa escolha – Vovó fungou, esfregando um dos olhos – Mesmo que brevemente... E chega dessa conversa, vá se concentrar no seu sofá!

O tio preferiu se retirar, murmurando algo sobre a Eggnog. Retomei meu trabalho com a linha, que a essa altura se encontrava quase livre dos últimos nós.  

— Ele só está machucado. A senhora tem que ser compreensiva.

— Eu sou, Ruby, acredite. Mas há limites, sabe, e Emppu não é do tipo que os segue... – ela deu de ombros – Suponho que terei de tricotar sapatinhos de bebê muito em breve.

— Hã?!

— Para Ana e Will, ora! Sabe, todos nós achamos precipitada essa decisão por um casamento.

Respirei aliviada. Mas que susto! Por um momento, cogitei que ela soubesse da minha gravidez.

— Acham que ela está grávida?

— Decerto. Convenhamos, eles namoram há séculos e não estão nem um pouco preparados para a vida conjugal. Bem, eu não devia me importar, mas dois Cabeças de Melão despreparados com um bebê numa pensão... Ai, nem quero pensar...

Sorri, imaginando em que espécie de mundo caótico aquela pensão ia se transformar. Não duvidava que uma gravidez pudesse justificar aquela decisão tão inesperada, no entanto, achava que Anastasia faria questão de contar ao mundo se estivesse grávida.

— Não devemos julgar. Talvez Ana o tenha pressionado, depois desses anos todos de namoro. Eventualmente, eles podem encontrar um outro lugar para morar.

A Vovó deu de ombros, concentrando-se no tricô. Levei mais alguns segundos desembolando a linha e pensando. Pensando... se era um bom momento... Eu devia esperar Killian, é claro. Desde a descoberta da gravidez, andávamos receosos. Revelar a gravidez e o pedido de casamento de Killian envolvia contarmos a verdade. Eu não podia mais mentir a ela. Ela, a minha avó, a minha mãe de criação. O que é que dona Annise poderia dizer de nossa vida coberta de mentiras? Talvez me renegasse. Talvez eu me tornasse uma grande decepção.

— Vovó? – chamei, a minha voz um tanto trêmula.

— Hum? – fez ela. Como eu hesitasse, me olhou por cima dos óculos – Ruby, o quê?

— Bem... a senhora diz gostar do Colin... então, bem... e se a gente se casasse?

Ela imediatamente largou o tricô e me fitou.

— Ruby, você está me pedindo permissão? Ele...

— Bem, não foi um pedido formal com aliança...

Ela abaixou os olhos. Notei que seu corpo tensionara.  

— Você disse sim?

— Aham.

Vovó se ajeitou no sofá e soltou a respiração que prendera. Mas havia algo de alarmante no modo como ela me respondeu em seguida. Parecia receosa, quase contrariada. 

— Bem, então eu devo ficar feliz, não? Você tem certeza? Quero dizer, Colin é um bom homem, mas você está certa disso, não é? 

Assenti.

— Eu o amo.

— E o amor basta? – tio Emppu estava de volta, com um pouco de espuma de Eggnog na parte de cima do lábio superior.

— Emppu! Por que diabos você acha que foi chamado na conversa?

Ele ignorou a mãe. Tomou a minha mão e me ofereceu um olhar afetuoso.    

— Olhe, sei que não temos que meter o bedelho na sua vida, filha, mas casamento é um vínculo sagrado. Você tem de abraçar a outra pessoa com todas as suas individualidades. Estou certo de que Colin a faz feliz, mas você precisa ter certeza.

Puxa, eles deviam me achar uma tonta incapaz de tomar decisões! Ou talvez fosse o modo repentino com que eu tocara no assunto. Mesmo irritada, me esforcei em esboçar um sorriso.

— E eu tenho, padrinho, tenho mesmo. Colin me faz feliz. De verdade. Todos os dias ele me ensina a amá-lo mais um pouquinho. Nós temos problemas, não vou negar... Ele tem defeitos. Muitos, mas amo cada um deles. Eu já não sei o que seria a minha vida sem ele...

A Vovó estava chorando. Ela assentiu com a cabeça, fungando pesadamente.

— Viu, Emppu? Eu disse, ela sabe onde está se metendo...

— Vovó? Vocês andaram conversando sobre isso?!

Eles haviam trocado um olhar significativo e eu tive a felicidade de perceber que já haviam se preparado para aquela conversa. O tio sorriu, um tanto culpado.

— Nós já esperávamos, Ruby. Pra mim era bastante óbvio que vocês já estão muito envolvidos... temíamos que fosse uma relação muito precipitada... 

— Vocês não têm com o que se preocupar... A gente... bem, a gente já mora junto há algum tempo... Na verdade... vocês não parecem nada surpresos!

— Ruby, eu já sabia – Vovó deu uma risada, ao que eu arregalei os olhos, perplexa – Sabia! Você nunca nos convidou a conhecer o apartamento que supostamente dividia com a Beth. Já faz um ano, sabe.

Supunha que as minhas bochechas estivessem mais vermelhas do que aquele novelo de lã. O padrinho estava rindo da minha cara.

— Em que século você acha que estamos?

***

Mais tarde, quando retornei ao QG, as garotas estavam reunidas na sala. Freya se entretinha com a TV, enquanto Ingrid lia um grande livro e Regina e Zoe conversavam amistosamente.

— Ah, Ruby, aí está você! – exclamou a Rê, me vendo sair do elevador – Quer fazer o favor de ir falar com Finnian? Gancho disse que você precisava tentar antes de despejarmos aquele energúmeno num terreno baldio qualquer.

Elas não imaginavam que eu já tivesse falado com ele, o que era conveniente, uma vez que eu precisava dialogar com o demônio outra vez.

— Simples assim? – franzi a testa, largando a bolsa sobre o sofá – E se ele sair por aí prestando queixa?

Zoe cruzou os braços.

— Com licença, acho que você subestimou as Jovens Bruxas aqui. Não achou mesmo que eu fosse deixar ele ir sem fazer um feitiço de língua presa, né?

Antes que eu perguntasse como isso funcionava, Regina já estava decifrando minha expressão e explicando:

— Digamos que ele vai se lembrar de tudo sem poder dizer nada. A vida continua, mais amarga do que antes.

Zoe gargalhou e as duas trocaram um high-five. Eu ri, fazendo meu caminho em direção às escadas.

— Meu Deus, como vocês são malvadas!

Finnian estava como eu o deixara: vendado e amordaçado. Tirei primeiro a mordaça, lhe oferecendo água. Depois o liberei dos abafadores de ouvido, ameaçando-o caso fizesse barulho. Ele se agitou ao ouvir a minha voz, imaginei que o som repentino lhe doesse nos tímpanos. Estava com uma aparência miserável: fedia como um porco, estremecia de frio e tinha a postura enrijecida devido à posição incomôda na qual fora algemado.

Seria fácil manipulá-lo. Um homem comum como aquele tinha um nível mediano de tolerância.

— Ah, você de novo – ele resmungou, quando eu retirei a venda – Quando é que estão cogitando me soltar? A essa altura meu chefe já prestou queixa...

— Sabe o que é engraçado? – já que eu tinha que jogar sujo, resolvi assumir meu tom debochado e arrogante – O único que sabe onde você está não moveu uma palha para resgatá-lo. De fato, topei com Jefferson. Você acha que ele se importou?

— Quis dizer meu chefe do jornal. Ele com certeza reportou meu sumiço.

Puxei um banquinho e me sentei de frente para o homem, rente à parede manchada que ele tinha no campo de visão.

— Bom, mesmo que fosse o caso, ninguém nunca ia te encontrar. O prédio é protegido por feitiços. De qualquer forma, a sua estadia aqui já foi oportuna o bastante – cruzei as pernas, tentando imitar a pose que Regina fazia quando queria passar uma imagem honesta, mas de respeito – Nós vamos jogar um jogo de sinceridade e você vai ser honesto comigo porque eu tenho um superpoder.

Ele fez um som gutural e agitou a cabeça, como se estivesse sob influência de um feitiço.

— Ha. Eu sabia que tinha feito algo comigo. Você se deu ao trabalho de ir até Jefferson apenas para descobrir como fazer o jogo sujo do seu namorado?

— Por que não? Todos nós jogamos sujo por aqui. Não há como vencer sem sujeira.

Finnian se demorou me observando, um sorriso de canto brotando do seu rosto remendado.

— É por isso que ele te ama... você é só um espelho do que ele é...

— Quem? – enruguei a testa – Killian ou Jefferson?

— Ambos. De repente, vocês até que formariam um belo triângulo. Mas nessa relação só tem espaço para um. No fim, um será a ruína dos outros dois.

Sentia que ia estremecer, mas troquei a posição das minhas pernas cruzadas para disfarçar o arrepio que subiu pelo meu corpo. O que será que ele quisera dizer com aquilo? Estavámos fadados a nos destruir? Mas como ele poderia saber? Não era vidente e Jefferson tampouco era.

— Você sabe que Killian usou a raiva que ele tem de Amos contra você, não? – questionei, querendo mudar o rumo da conversa.

— Quando me espancou, você quer dizer? Melhor dizendo, quando quase me liquidou... – ele assentiu brandamente, seu rosto fremindo em uma careta de dor – É, eu imaginava. Sou mais parecido com Amos do que seus próprios filhos. Até mesmo Milah admitia isso. Ela dizia que eu era um Amos em ascenção.

Mas que babaca! Ele bem que se mostrava orgulhoso ante a comparação. Me mantive indiferente, embora ele sorrisse com vaidade. 

— Suponho que se orgulhe disso. Quero dizer, no fim das contas você se mirou no exemplo.

— Amos só tem um defeito que eu não tenho: apego excessivo. Quando eu disse a ele que sou seu filho, ele até mesmo me ofereceu uma nova vida. Tudo para manter a normalidade da vidinha cotidiana a que era acostumado.

— Você o comprou.

— Comprei o que era meu por direito! O que ele, enfim, arruinou por apego. Tudo a que Amos se apegou, ele arruinou, eventualmente.

Então ele vinha me falar de direitos?! Mas que ousadia! Era compreensível a raiva que Killian tinha pelo sujeito: aquele ar esnobe e o excesso de autoconfiança faziam dele um narcisista intolerável. Em nome da dignidade de Gancho e Liam, me vi esfregando a verdade nua e crua na cara de Finnian.

— Ele não se apegou a você... Porque você não é filho dele. Jefferson nos deu essa informação de bandeja.

O efeito não poderia ter sido melhor do que o esperado. A boca do homem estremeceu conforme ele reagia com furor; mas, então, ele rapidamente se controlou e me ofereceu uma tentativa de expressão branda.

— Suponho que eu deva me sentir grato? Ele não me arruinou a vida...

Dei de ombros.

— Pode ser, mas eu vou lhe dizer uma coisa: ele vai arruinar a si próprio. Amos está cravado em uma cama de hospital. Eu fui até lá para vê-lo, mas a Polícia de Seattle vela o sono dele.

— A polícia? – ele fingiu surpresa – Uau! E o que eu, enfim, tenho a ver com isso?

— Bom, você não ia querer ter seu nome vinculado ao de um traficante – ajeitei a minha postura no banco, trocando mais uma vez a posição das pernas – Assim como Gancho e Liam estão sendo investigados, você, sendo um herdeiro, também há de compactuar com os crimes de Amos. Principalmente...principalmente quando Jefferson denunciar à polícia seu DNA falsificado. Amos é apegado, você diz, mas foi esse apego que o manteve de boca fechada.

Puxa vida! A minha recém-descoberta habilidade para manipulação estava surtindo resultado. Quando eu era mais nova, costumava chantagear meu avô para que me desse mais doces; jogar com Finnian ia muito além de usar segredos contra um velho, era quase como um trabalho de adestramento: ele respondia imediatamente aos meus comandos.

— Jefferson e eu temos uma barganha! – ele respondeu, num tom engasgado – Ele mantém meus segredos porque eu sou viável aos planos dele.

— É, eu sei. Mas e se eu me abrir para Jefferson sem que ele precise me vigiar através de você? Andei pensando nisso... Por que Jefferson o manteria? Por que manteria a barganha?

Ele estava pensando. Suas pálpebras tremiam quando ele se colocava em reflexão.

— Você não tem nada a ganhar com isso – disse, após alguns segundos em silêncio – Se eu cair, você vai se arrepender no mesmo momento.

Descruzei as pernas e o ofereci um sorriso calmo e confiante.

— Você não vai cair. Você já tem o dinheiro e eu tenho informações sobre Jefferson. Eu vou barganhar com ele. Você tem sua liberdade, eu tenho a minha privacidade respeitada. Amos continua a ser Amos e Killian continua a ser Killian. Cada qual com seu apego.

— E isso tem um preço, não? – ele se mostrou desconfiado – O que quer de mim?

— O dossiê da família Jones.

***

Negociar com Finnian fora extremamente desgastante, de modo que era possível perceber o desequílibrio emocional na minha aura. Regina me instruiu em uma purificação mental, como a que fizera na pirâmide antes de performarmos a invocação das feiticeiras anciãs. Não senti tanta eficácia como da primeira vez, mas me muni de um pouco mais de força.

Tínhamos de liberar Finnian do cativeiro. Eu me recusara a ficar para trás no QG: queria assistir à humilhação do homem. Por alguma razão, as minhas sombras estavam vindo à tona. Não disse nada a ninguém. Bastava que o meu lado sombrio permanecesse em segredo.

Regina conduzia o carro em direção ao subúrbio de Seattle. Zoe conhecia uma região isolada na qual poderíamos desovar Finnian. Ele teria de caminhar uns bons quilômetros de volta à cidade: seria o suficiente para ensiná-lo uma lição.  

No caminho, contei às garotas o meu plano. Não que eu quisesse me sujeitar à intromissão e opinião alheia, mas estava convicta de que ia precisar da proteção das quatro bruxas.

— O Killian sabe disso? – questionou Ingrid, sentada entre mim e Freya.

— Não sabe e nem vai saber. Por ora.

— Ruby, não é justo! Ele é seu namorado, um casal saudável é um casal que confia.

Regina balançou a cabeça, fitando Ingrid pelo retrovisor:

— Ingrid, você conhece o mesmo Killian que eu? Porque não, Gancho não está apto a entender. Ele vai querer matar o Chapeleiro, atrapalhando o plano da Ruby.

— Eu concordo com a Regina, é claro – Zoe se pronunciou, em meio ao movimento de lixar as unhas – Além do mais, nós somos quatro bruxas contra um mago de meia-tigela. Ele não vai se meter com a Ruby.

— E quanto a me proteger? – perguntei – O que será que ele quis dizer?

Ela revirou os olhos com impaciência.

— Ruby, você nunca teve um macho abusivo antes? Ele quer diminuir o seu valor, para que então você dependa dele. 

— É, isso é o que ele faz – resmungou Regina, irritada – Te diz o quanto você é especial, para então instalar câmeras de vigilância no seu banheiro.

Freya, que até então estivera avulsa à conversa, desprendeu a atenção que dedicava à paisagem e opinou:

— Ruby, o importante é não se deixar levar pelas mentiras dele. Não dê ouvidos aos argumentos, jogue o jogo dele sem comprar nada. Esse homem é da pior espécie.

As outras três concordaram silenciosamente e Ingrid indagou:

— Bem, mas o que você espera com esse dossiê?

— Descobrir que informação é essa que Jefferson tem sobre os Jones. Ele disse algo sobre um legado que seria repassado de Amos para Killian.

— Um legado? – não vi a expressão da Regina, mas imaginava que enrugasse a testa – Bom, então pode ser qualquer coisa... Podemos descartar um legado em dinheiro, não é?

— Talvez Gancho seja um bruxo... – Freya sugeriu em brincadeira e Regina soltou um riso de escárnio.

— Ah, claro, porque a essa altura a Ruby não ia mesmo perceber.

— Você não percebeu que Jefferson era um mago – acusou Zoe.  

Semi-mago. Se ele fosse um mago completo, eu saberia.

— Como? Pela saliva?

— Zoe, não me faça meter a mão na sua cara!

Nós rimos escandalosamente e a Rê acabou gargalhando também. Do porta-malas, ouvíamos os resmungos abafados de Finnian. A Regina enfiava o pé no acelerador, de modo que o carro chacoalhava pela pista de terra batida. Zoe a instruía a prosseguir, conforme atravessássemos uma série de plantações e pastos.

Me lembrei da noite em que conhecera Killian.

— E se o Gancho for um lobisomem? – perguntei, em ar jocoso.

— Bom, seguindo o racícionio da Regina, ela ia saber se Amos fosse um lobisomem – Zoe falou.

— Eu não fui pra cama com Amos, se é isso que estão pensando. Meu eu de vinte e um anos apenas achou que era uma boa ideia convidá-lo a um jantar e... bom, em outras palavras, me apaixonei pelo garçom.

— Regina, convenhamos, você não tinha a única intenção de convidá-lo para jantar.

— Mas é claro que não, eu queria afogar minhas mágoas depois de ter perdido Daniel. É claro que não funcionou. E, pra falar a verdade, Amos é tão cheio de si que eu o teria dispensado independente de ter me encantado ou não com outro homem. Finnian tem o mesmo jeito arrogante, nem mesmo sei porque fiz bom uso daquele corpo... – ela se calou e nós a fitamos; sabíamos que tipo de vantagem direcionara seus impulsos sexuais para Finnian - Ah, lembrei, ele é bem-dotado! Quase valeu à pena pegar candidíase.

Senti a minha barriga doer com a gostosa onda de gargalhadas que preencheu o carro.

Quando, por fim, alcançamos uma distância considerável da civilização, Zoe mandou Regina parar. Estavámos à beira de um bosque, lá onde Judas perdera as botas. O único movimento era do vento uivando entre às árvores e, vez ou outra, o som de um esquilo ou pássaro.

Descemos do carro, Regina escancarando o porta-malas, no qual acomodáramos Finnian em uma posição desajeitada. Quando o livramos da venda, ele apertou os olhos com força ante a claridade. A Rê, impaciente, o cutucou com a unha comprida.

— Anda, levanta! Sai logo daí!

Desajeitado, ele tentou se erguer com os braços algemados às costas. Conseguiu deslizar uma perna para fora, então Regina o agarrou sem cerimônia e o atirou sobre o chão de terra.

— Aaaau! Sua filha da puta!

Com o impacto, seus ossos estalaram e ela sorriu com satisfação. Zoe o libertou das algemas e ele esfregou os pulsos esfolados com avidez, antes de se levantar com dificuldade e espalmar a poeira dos joelhos.

— Bem, eu cumpri a minha palavra – eu disse, os braços cruzados – É a sua deixa para cumprir com a sua.

Embora contrariado, ele assentiu. Nos fitou com bravura, de queixo erguido e expressão desafiadora. Sustentamos o olhar com a mesma intensidade. Então Regina se adiantou e, num movimento rápido e muito brusco, acertou uma joelhada nas partes íntimas do homem. Ele se dobrou ao meio com um guincho e desabou outra vez.

— Isso é pela Mary, seu desgraçado! – ela o agarrou pelas orelhas, como uma mãe autoritária e raivosa – Da próxima vez que ousar se meter com ela, eu castro você.

A única resposta que veio dele foi um murmúrio ininteligível. Entramos no carro em silêncio e Regina arrancou antes mesmo que eu tivesse terminado de fechar a minha porta.

— Ruby, depois dessa o Killian tem que te comprar um anel de diamantes – comentou ela, de bom humor.  

— Não é pra tanto. Eu apenas fiz bom uso das circunstâncias.

— Garota, tá de brincadeira? Se você fosse um vereador, eu me casava com você!  

***

De volta ao QG, encontramos um Graham borocoxó empoleirado na bancada da cozinha. Ele ia comendo uma coxa de frango e ergueu um dedo gorduroso quando nos viu sair do elevador.

— Não é justo! Por que ninguém me convidou para a excursão do Clube das Winx?

— As Winx eram fadas, não bruxas – esclareceu Regina, indignada.

Soquei o ombro dele de leve.  

— Sorry, Graham, só havia espaço para cinco.

— Seis – corrigiu Zoe – mas Finnian já estava ocupando o porta-malas.

— Bem, eu podia ter ido no colo de alguém – ele sugeriu, de boca cheia.

Estranhei. Graham nunca se comportava como um porcalhão mal-educado – especialmente na presença de mulheres. No entanto, estava sentado meio a uma pilha de embalagens vazias, com os cabelos despenteados e os pés sujos.

— Mas que horror! – estava ralhando a Regina, incorporando o papel da mãe autoritária – Tenha modos! Você comeu tudo isso?!

— Ora, vocês me largaram sozinho e eu fiquei com fome, oras...

— Bem, agora temos de fazer compras, não é maravilhoso?

A Regina odiava fazer compras. Eu bem me ofereceria, mas estava exausta e Zoe me mandou descansar até que Freya fizesse uma nova dose de sua poção restauradora.

Subi ao terraço para escapar da discussão acalorada entre Graham e Regina. O céu estava com uma esquisita cor cinza-alaranjada, mas eu me senti suficientemente confortável com o clima ameno do final de tarde. Larguei o corpo em uma velha espreguiçadeira enquanto contatava Killian.

Ele atendeu no terceiro toque. Soava tranquilo, mas cansado.

Aposto que não adivinha onde eu estive...

— Caçando tocas de Wendigo? – brinquei.

Não, depondo na delegacia. Isto é, logo depois de prestar uma visitinha ao meu pai.

Meu coração disparou. Se Killian tivesse me flagrado no hospital em companhia de Jefferson, a coisa teria ficado feia. De fato, minha ação impulsiva fora insensata e irracional. Imagine que espécie de problemas eu poderia ter adicionado à nossa cota de desventuras...

— Ah! – exclamei, tentando soar neutra – Como foi?

Indiferente, se quer mesmo saber. Ele estava sob sedativos. Disseram que passará por cirurgia. O tal Babineaux me dispensou após uma série de perguntas de praxe. Eu diria que ele foi com a minha cara, mas não tenho muita certeza.

— Como ele é?

Desconfiado, enérgico, perceptivo... Não sei como foi com Liam, nos mantiveram em salas separadas e ele ainda estava lá dentro quando eu saí.

— Bom, não é como se vocês fossem destoar no depoimento, a não ser que um dos dois tenha mentido.

Não, optamos pela verdade, exceto que não a verdade absoluta. Em todo caso, liguei para saber de Finnian.

Tentei não gaguejar conforme mentia. Não era mesmo uma mentirosa hábil, mas achei que pelo telefone seria mais fácil enrolar o Gancho.

— Nós o soltamos num lugar isolado, como você instruiu. Mas eu não obtive sucesso tentando arrancar algo dele... – acrescentei um tom exasperado à última fala – Como eu disse, foi desnecessário.

Está bem, Ruby, não precisa jogar na minha cara... — imaginei que ele rolasse os olhos e o pensamento me fez sorrir – Hum, eu só queria saber como você estava. Não vá se esforçar além da conta.

— Eu prometo! – mas cruzei os dedos, para o caso de precisar quebrar a promessa. Algo me ocorreu e, antes que desligássemos, acrescentei: - Killian, eu estava pensando... bom, você tem que tolerar o tal Babineaux na sua cola e isso me lembra... me lembra que o senhor tem a ficha suja na polícia.

O Gancho já fora preso, anos atrás. À época, Gold intercedera, mas isso não o livrara de um registro criminal.

É, eu sei... Mas você faz bem em me lembrar.  Liam não sabe, é claro. Até onde eu posso prever, ele vai se livrar de maiores suspeitas, mas, a essa altura, Babineaux já deve saber com quem está lidando...

— O que nós vamos fazer?!

Nada. Uma coisa não leva à outra, ele não pode associar os meus atos vandalescos aos atos criminosos do meu pai. No mínimo, eu vou dizer que o meu comportamento reprovável era consequência de uma revolta juvenil.

— Ah sim, claro! Porque ser preso por exumação de túmulos é mesmo um ato de rebeldia juvenil – ironizei – Killian, você cometeu um crime grave! Não é como se um detetive fosse abaixar a cabeça pra isso agora.

Você está me deixando nervoso! Nã há muito que eu possa fazer, os registros policiais estão fora dos nossos domínios...

Minha consciência deu um estalo. Me ergui da espreguiçadeira, tão ágil que até me esqueci do cansaço. Gancho ainda estava falando:

..., mas não se preocupe, Ruby-Loob... vou dar um jeito...

Não se eu desse um jeito antes...  

***

Mary parecia menos abatida do que a última vez que a vira. Estava alegrinha. É claro, depois de contarmos a ela sobre Finnian, ela até mesmo soltou uma risada. Segundo o Dr. Shepperd, em poucos dias ela seria liberada. David ainda se recusava a sair do lado dela, de modo que Regina lhe ofereceu sua companhia. A vaziez daquele hospital era por demais angustiante para que as pessoas ficassem ali sozinhas.

Pensei muito nisso quando arrumei uma desculpa para me esquivar das conversas no quarto. Esperava que a minha cabeça tentasse me fazer desistir daquela ideia mal planejada, mas ela só fez me encorajar enquanto eu seguia ao longo de uma sucessão de corredores.

Pedira informações na recepção e estava portando uma pulseira a mais de visitante. Ao contrário de Jefferson, iria com as mãos abanando. Não queria passar a impressão de que me importava ou, mesmo, de que me planejara para aquilo.

Hesitante, parei à porta do quarto. Shirley e Brooke, as enfermeiras engraçadas que eu já conhecia, estavam saindo para o corredor. Por trás delas, uma senhora franzina e desbocada vociferava uma série de palavrões. Puxa vida! Eu bem me lembrava dela, mas era incapaz de imaginar que fosse quem eu estava pensando...

Quando estive internada naquele mesmo corredor, após meu encontro com os Djinns, Shirley e Brooke viviam debatendo com aquela senhora. Eu reprovava o comportamento, embora chegasse a ser engraçado. Me vendo à porta, as três se calaram.

— A senhora é a Dorothea? – me dirigi à mais velha, meio sem saber o que fazer ou como me apresentar.

Ela assentiu. Por instinto, ajeitou o cabelo, e as suas bochechas coraram como se repentinamente se envergonhasse de si mesma.

— Você é a Ruby? – ela perguntou, e imediatamente assenti.   

— Olha aí, a xarope vai receber visita – espantada, Shirley se apressou a empurrar Brooke porta afora. As duas me encararam e Shirley me ofereceu um olhar curioso – Cuidado hein, menina, essa velhota é boca suja.

— Ora, vá tomar no cu e não me amole! – retrucou Dorothea, mancando para a cama, na qual se acomodou de mau jeito. Conforme eu hesitasse, ela fez um gesto impaciente com o braço esquerdo – E então, vai ficar parada aí? Senta!

Obedeci, ocupando a cadeira ao lado da cama. As peônias de Jefferson estavam em um vaso próximo à janela e o ambiente ainda conservava resquícios do perfume dele. Dorothea me fitava, esperando.

Era velha, mas parte de suas rugas e olhar cansado se deviam ao fato de ela estar doente. Trajava uma camisola cor de abóbora manchada pelo uso. Seu corpo era pequeno e frágil; sua pele, pálida e ressecada, com marcas de agulha nos braços. O cabelo era de um cinza sujo de fios judiados, mas seus olhos eram espertos e vivos, verdes como esmeraldas. Ela me ofereceu um sorriso breve, quase forçado, mas cheio de verdade.

Não havia dúvida: era a mãe dele.

— Ele achava que você fosse vir, mas não tinha certeza – ela disse, antes que eu descobrisse como começar a conversa. Estendeu a mão para uma jarra de líquido amarelado, depositando a bebida em duas xícaras de porcelana. Porcelana cara, como pude notar. Me ofereceu uma xícara, avisando: - Não tem açúcar, sou diabética.

Agradeci, então formulei a primeira pergunta.

— Ele falou de mim pra senhora?

— Muitas vezes. Perdi a conta...

— Então a senhora é mãe dele?

— De certo modo – ela deu de ombros, bebericando o chá de camomila com uma careta – Não criei ele, mas tendo sido eu quem o pariu... bom, sou mãe dele, sim.

Eles eram demasiado diferentes em comportamento. Obviamente, o fato de ela não o ter criado explicava essa distância. E, para falar a verdade, Jefferson ainda me parecia um personagem inventado.

— Eu... bom, eu achei que ele ia querer que eu visse a senhora... quero dizer, porque eu sou uma das visitantes autorizadas... Não sei bem porque ele quis isso... – me concentrei na minha xícara de chá intocada. Era difícil sustentar o olhar rígido de Dorothea: ela parecia analisar toda a extensão do que se passava em minha cabeça – Quero dizer, a senhora não me conhece... e... bem... não imagino um motivo pelo qual quisesse conhecer...

— Mas do que está falando?! Ele se senta aí nessa cadeira e me conta todas as coisas boas sobre você. Era óbvio que eu queria conhecê-la...

Senti tanta firmeza naquelas palavras que me atrevi a encará-la. Ela sustentou o olhar com uma expressão branda e eu me peguei sorrindo.

— O seu filho falha em enxergar meus defeitos... Bem, talvez a senhora saiba me medir com mais franqueza.

— Ah sim, com toda certeza! Mas ele é meu filho e também sabe ver franqueza. Ele só se nega a aceitar a realidade por teimosia.

De fato.

Assenti, bebericando o chá. Estava muito ralo e frio, mas não me importei. Usei essa ação como desculpa para ganhar tempo. Não sabia bem como direcionar aquela conversa e tinha a sensação de que ela saberia se eu mentisse.

— Eu... bom, não sei o que exatamente ele disse à senhora. A questão é que o seu filho... às vezes ele toma decisões precipitadas...  Na verdade, não o conheço muito bem e... ele nem sempre é direto comigo...

Ela estava assentindo em concordância antes que eu precisasse me esforçar para terminar a frase.

— Nem honesto, pelo visto. Eu sei, ele é assim mesmo. O pai dele sempre foi neurótico; o menino cresceu mentindo e aprendendo a não se comprometer – ela suspirou – Meu filho se parece muito com o pai... no jeito, na aparência, na mania de fuder com as mulheres... com você ele não fudeu ainda...

A transparência de Dorothea era de chocar, mas não chegava a ofender. Tentei não pensar no quão Jefferson era diferente dela: parecia absurdo que os dois fossem mãe e filho.

— Não. E nem vai – eu disse com firmeza – Seu filho parece ter boas intenções, mas a conduta dele me assusta.

Dorothea largou a xícara vazia e se acomodou melhor na cama. Vi um porta-retrato na mesa de cabeceira: Jefferson e Grace estavam sorridentes. Me perguntei se ele tinha o hábito de trazer a menina; Dorothea não me parecia um bom exemplo de comportamento para uma criança.

— Ele não é bom da cabeça – ela revelou – O pai dele também não era. Os dois compartilham o sangue ruim, mas Jefferson ainda não mergulhou na escuridão completa – ela fez uma pausa, na qual me encarou de lábios comprimidos – Aquele homem me botou na cadeia... O pai dele. Um sujo, trapaceiro! Quando a gente é jovem enxerga amor em tudo, até no que tá quebrado... Ele te contou que nasceu na cadeia?

Puta que pariu!

— Não, ele não fala sobre a vida pessoal.

— Ah, mas é claro, ele se envergonha... Nasceu na enfermaria da prisão: veio antes do tempo. Cresceu sem mãe pelo resto da vida. Quando eu saí ele já era homem feito, mas aquele desgraçado já tinha fudido com a cabeça dele. Nunca quis que o menino seguisse a arte da chapelaria. O avô dele era chapeleiro. Meu marido debochava, humilhava o pai com tudo que tinha alcançado. Bonito era sacanear os outros pra se dar bem. Francamente... nunca mais quis outro homem na vida... Pra quê, se aquele lá deu pro gasto. Me usou quanto quis, depois jogou pra escanteio. Mas o menino ele criou, pra esfregar na minha cara que ia tirar mais isso de mim. Eu tombei feio...

Por um instante, me senti como se violasse algo sagrado. Aquela senhora estava ali, destrinchando todas as verdades de uma vida da qual eu não fazia parte. Ela não tinha esse direito, pensei. Mas fora eu quem provocara. Além do mais, Jefferson violara a nossa privacidade de maneiras muito mais indesejáveis.  

— Ele... ele cresceu carente, né – indaguei, mais por falta do que falar do que por interesse em saber – Digo, de afeto...

— Foi. O pai dele era afetuoso quando tinha interesse. Mas com Jefferson esse afeto nem existia. Não demorou pra ele largar o garoto e sumir no mundo. Reclamava que o menino não tinha jeito, que era fresco. Bom, Jefferson se casou, eventualmente. Teve a Grace. Depois aquela perda horrorosa da Rachel. Nem sei como ele aguentou essa. Quer dizer, aguenta mal se aguentando, né. Amor verdadeiro a gente não esquece.

— Faz tempo?

Ela franziu a testa, calculando mentalmente.

— Cinco anos, acho. A Grace era um bebê. Mal conheci a moça. Era bonita, uma pele macia assim que nem a sua, um cabelo escuro que nem o seu. Parecia uma boneca. Mas acho que era muito boa pra Jefferson.

Qualquer pessoa era boa demais para Jefferson, pensei. Perguntei a ela porque falava dessa forma: queria saber que espécie de visão ela tinha do próprio filho. Parte de mim tentava acreditar que estávamos enganados sobre Jefferson... mas talvez fosse a compaixão falando mais alto.

— Ele não merece, não sabe valorizar – Dorothea estava balançando a cabeça – Ele me visita, faz questão e traz flores. Leva a Grace pra passear, faz tudo pra ela. Mas ele não sabe valorizar o que tem, quer sempre mais.  

— Ele deve se sentir vazio.

— É, ele sente sim. Deve ser isso que aquele psiquiatra fala pra ele. Dizem que ele tem transtorno e precisa de remédio. Quanto a isso eu não sei, mas ele ficou esquisito depois da morte dela. Às vezes vem me dizendo umas coisas que eu nem sei se fazem sentido ou se são invenção da cabeça dele.

Ahá! Eu sabia que o Chapeleiro não podia ser muito equilibrado. Qualquer pessoa que afirmasse que eu fosse me tornar assassina não podia ser muito equilibrada.

— Que tipo de coisa? – perguntei, me acomodando melhor na cadeira. Aquela conversa só ficava mais interessante.

— Ah, outro dia ele ia dizendo que a gente tinha de juntar suprimentos. Eu perguntei se ia haver uma guerra e ele fez que sim, mas não tinha muita certeza. Depois veio com um papo sem nexo sobre manter Grace afastada. Queria mandar ela pra um colégio irlandês, algum tipo de internato com educação religiosa – a expressão de Dorothea enrijeceu e eu percebi que ela devia se importar muito com a menina – Eu disse que ele ia submeter a garota ao mesmo tipo de criação rígida que teve. Acho que ele não gostou muito, mas parece ter mudado de ideia.

— Da última vez que eu vi a Grace, ela era criada por uma babá.

— É. Ele não tem tempo, nem muita paciência. Enquanto ela for uma bonequinha de pano, ele vai querer brincar de casinha. E quando a menina crescer e for moça, ele vai fazer o quê? Ela precisa de mãe, mas a cabeça dele não serve pra casamento. Não sei se algum dia ele volta a ser o que era antes, se é que antes tinha diferença – ela me encarou e, antes que abrisse a boca, eu já conseguia antever a que tópico íamos chegar – Ele quer você, mas você não quer ele.

Estremeci. Minha boca ficou seca e senti um aperto no peito. Não podia me dar ao luxo de sofrer uma crise de ansiedade naquele momento, ainda mais estando grávida. Me controlei, mas tive a certeza de que Dorothea era capaz de notar a minha perturbação.

— Eu sou comprometida, ele sabe.

Ela assentiu, me oferecendo um olhar compreensivo.

— Jefferson fecha os ouvidos para o “não”. Nem culpo o garoto, o pai o criou assim, insistente e mimado. Ele acha que o mundo tem que fazer as vontades dele. Se você o machucar, ele te deixa em paz.

Puta merda! A que ponto chegamos...

— Ah, eu... bom, não quero machucá-lo. Não acho que ele desistiria, de qualquer forma. Acho que ele tem uma visão muito deslumbrada de quem eu sou.

— Você tem que ser firme! Você quer um ponto fraco, eu te dou. Não faz mal, ele só funciona com rédea curta. Não precisa aleijar o garoto, mas bate onde mais doer.

Não consegui evitar a reação chocada.

— A senhora faz isso com ele?!

— Não, fiz uma vez e nunca mais. O resto a vida se incumbiu de ensinar. Mas enquanto ele for birrento vai achar que pode brincar com as pessoas. Ele não é ruim assim que nem o pai, mas tem uma maldade dentro dele. Todo mundo é mau quando precisa, mas Jefferson é mau porque quer e pode. Ele acha que pode menosprezar os outros de tanto ter sido humilhado.

— Ele é covarde, às vezes.

— É sim! Covarde é até pouco... – subitamente, ela fixou o olhar no porta-retrato. Talvez a figura estática de Jefferson a lembrasse de ser mais gentil, pois ela acabou sorrindo – Fico aqui falando do meu filho e nem parece que tem coisa boa pra dizer, mas tem, viu? Ele é bonito, parece até um anjo. Me enche de orgulho com todas aquelas roupas bonitas que desenha. Aquele chapéu ele me deu de aniversário, agora uso de enfeite nesse quarto horroroso.

Ela apontou a esmo para um chapéu encarapitado no suporte de soro. Era de cor branco-pérola, discreto e elegante. Tive vontade de pedir que ela o experimentasse, mas ela continuava falando:  

— Ele tem bom gosto, é educado... Gosto quando ele vem me ensinar etiqueta. Dizem aí no hospital que ele vem me ensinar a me comunicar. Quando eu saí da cadeia não sabia falar bonito assim que nem to falando com você. Ele que me ensinou. No fundo ele é um menino bom, mas apodreceu com o monte de merda que levou da vida.   

Eu não duvidava disso. Tive pena. Mas aquilo não diminuía e nem justificava os atos sujos do Chapeleiro. Como ela mesma dissera, ele era uma pessoa ruim porque assim escolhia.

Brooke surgiu à porta, me dispensando. Terminara o horário de visitas. Ofereci um aperto de mão à Dorothea, que demonstrou alegria por trás da expressão séria.

— Você volta? – perguntou.  

— Volto.

***

Contei parte das minhas descobertas à Regina. Achava que não devia expor Jefferson – ainda que fossemos um livro aberto para ele – e sabia que a Rê não iria compartilhar as informações.  

— Eu não sabia que ele tinha mãe – ela comentou, impactada – Não sei nada sobre ele, na realidade. Como é que você faz isso, hein?

— O quê?

— Como arranca tanta informação das pessoas?

— Não sei. Acho que é fazendo o outro se sentir importante.

Ela sorriu e me fitou de um jeito estranho, como se aprovasse a minha recém descoberta habilidade.

— Farei isso com meu vereador, preciso me certificar de que ele presta. Em todo caso, Ruby, vá pra casa. Você precisa descansar e eu estou falando sério. Amanhã, quando eu voltar ao QG, conversaremos mais sobre Jefferson.

Assim o fiz. Após uma longa noite de sono, acordei renovada. Passavam das onze e meia da manhã quando desci à cozinha. Regina já retornara do hospital, pois obrigara Graham a assumir seu lugar. Como ele tivesse se curado da gripe, estava mais animado e, portanto, seria uma companhia mais íntima para David. De outro lado, também não atrapalharia nossos planos.

— Puta merda, vocês deviam ter me acordado! – reclamei, comendo o que restara de um bolo do dia anterior – Eu vou perder o semestre da faculdade, as minhas faltas já estão acumulando.

— Bem, é por isso que eu digo para evitar tanto desgaste – a Rê censurou, então me ofereceu um frasco de comprimidos – Olhe o que Freya comprou pra você: uma porção de vitaminas.

Era só o que me faltava...

— Freya! Você não está achando que é a minha mãe, está? Ou minha obstetra?

Ela emburrou na mesma hora: fez bico e cruzou os braços.  

— Desculpe se eu não tenho um bebê para criar! A Freya insuportável e inconveniente não vai mais se intrometer na gravidez alheia.

— Meu Deus, não é para tanto, não é?

Ingrid me lançou um olhar de aviso e a expressão carrancuda de Freya me indicou que ela não estava no melhor de seus humores. Dei de ombros, largando as vitaminas sobre a bancada.  

— Freya só está chateada porque eu disse umas verdades a ela – esclareceu Zoe, às voltas com um livro esquisito – Não admito que controlem a vida alheia, é invasivo.

Como resposta à raiva que sentia, Freya acabou desencadeando uma reação: a cadeira na qual Zoe se sentara desabou sob seu peso e ela soltou um palavrão quando caiu estatelada. Não pude evitar o riso, já que Freya desfez a birra ao soltar uma gostosa gargalhada. Zoe bem fez menção de se vingar, mas Regina mudou de assunto ao trazer um baralho de cartas para a mesa.

— Ruby, temos de nos preparar para Jefferson. É você quem tem que definir as regras do jogo desta vez.

Assenti.

— Andei pensando nisso e tenho uma ideia.

— Imaginei que tivesse e acho que não faria mal consultar as cartas.

Eu contara a elas sobre a leitura de Madame Olzon. Não entrei em detalhes, claro, uma vez que essas coisas eram muito pessoais. No entanto, a minha relação com Jefferson tinha de ser avaliada de forma individual.

Regina optou por tirar três cartas: uma para mim, uma para Jefferson e uma para a nossa relação. As três deviam se complementar e dar respostas lúcidas, mas o significado não parecia muito claro.

— Para mim parece óbvio – opinou Freya, apontando para o Valete de Paus que saíra para Jefferson – O valete está dizendo que Jefferson é confiável. Ele está sendo verdadeiro.

Regina balançou a cabeça com tanta força que eu pude ouvir seu pescoço estalar.

— Impossível! Você está lendo errado... Esse Nove de Espadas está trazendo desgosto para a relação... Algo vai acabar mal, Ruby...

— Você não pode deixar a raiva que sente de Jefferson te cegar – respondi, ao que ela contestou.

— E não estou deixando. Talvez você esteja depositando muita fé nas suas ideias...

— Ah sim, eu concordo um pouco com a sua posição, Regina – Ingrid se pronunciou – Mas o Dois de Copas saiu para a Ruby e o que eu vejo nessa carta é uma abertura para o novo. Ela vai se abrir a uma pessoa nova, em uma relação que vai ser benéfica a ambos.

— Ora, mas pode ser qualquer pessoa. Pode ser o bebê!

Freya riu do tom impaciente de Regina.

— Regina, não me leve a mal, mas você não tem tanta experiência com as cartas. Analisando as três coisas juntas, me parece que a Ruby está indo pelo caminho certo. De alguma forma, a união com Jefferson vai ser vantajosa. Mas, é claro, não se pode descartar a possibilidade de ele agir pelas nossas costas...

— Sabem, Jefferson me disse uma coisa... – comecei, sentindo o peso do olhar das outras em mim – Ele disse que eu ia precisar muito de dois amigos em um. Depois Finnian me disse que Jefferson nunca ia mentir pra mim enquanto transitasse entre luz e sombras.

Depois que eu me calei, ninguém disse nada. Regina fitou a mesa e vi Freya e Ingrid trocando um olhar. Apenas Zoe se atreveu a me encarar; estava quieta e pensativa.

— Não sei se estou certa de que compreendo o que ele quis dizer – acrescentei, esperando que alguém dissesse algo.

— O que você acha? – questionou Zoe, de expressão impassível – O que a sua intuição diz?

— Que eu tenho que tentar... Pela primeira vez, sinto que posso lidar com Jefferson. Sei dos riscos, é claro. Mas quero transformá-lo em um animal domesticado.

Zoe riu e Regina parecia surpresa. Ninguém percebera que eu estava mudando, mas talvez Zoe não fosse como todo mundo. Ela ia me dar um voto de confiança.

— Bem, então é isto! Peça mais uma carta ao baralho, Regina. Nós temos de clarificar a mensagem.

A Rê obedeceu e embaralhou as cartas até que uma delas caiu sobre a mesa.

—  Um Nove de Copas... Êxito?

Freya assentiu, colocando as quatro cartas lado a lado.

— Você vai vencer, Ruby! Você vai domar Jefferson.


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Notas finais do capítulo

Será que o Jefferson vai virar cachorrinho na mão da Ruby?
Parte do próximo capítulo já está escrita, há chances de eu postar em breve, mas não prometo nada.
Agradeço a quem ainda acompanha. Beijinhos da Mrs Jones



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