'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 31
Dualismo, Cinismo, Egocentrismo


Notas iniciais do capítulo

Hello, everybody! ~fingindo que está tudo certo com os longos hiatos entre um capítulo e outro~
Bem, considerem como um presente atrasado de Páscoa hehe. Boa leitura e até a próxima!



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— Hum, está tudo bem entre vocês? – perguntou Ingrid, assim que Gancho e Freya se afastaram em direção ao carro levando o agrupamento de malas.

Eu esperava que elas não fossem notar nosso ar exasperado e aflito, mas isto era subestimar a percepção afiada de Ingrid. Bom, no fim das contas, não era mesmo impossível que alguém deixasse de perceber, já que Killian não fazia esforço em manipular a própria expressão.  

— Uhum, tudo – menti descaradamente – Por quê?  

— Killian parece um pouco chateado – ela me seguiu pela loja de conveniência, conforme eu procurava um lanche pouco nocivo e que satisfizesse meu estômago – Eu devia levar como indireta? Talvez ele não quisesse que nós viéssemos...?

— Ah não, Ingrid, não é isso – assegurei, apanhando na geladeira uma garrafa de suco natural – Uh, na verdade, nós estamos passando por probleminhas, então... bom, ele vai ficar bem, eventualmente.  

— O Chapeleiro, como eu devia imaginar...

— É, ele também... Digamos que todas as pessoas que detestamos resolveram agir ao mesmo tempo, o que é conveniente, mas ao mesmo tempo muito exaustivo – suspirei, avistando no balcão um display de chicletes e balas de goma, que imediatamente me lembraram de Jefferson – Temos de dar um tempo ao Killian, você sabe, ele é suscetível ao emocional quando o assunto é família.

— Todos nós somos... – ela deu uma olhada para fora, para Freya. Acariciou a própria barriga, extremamente redonda e saliente em razão dos meses avançados de gravidez – Você deve saber que Freya e eu estamos enfrentando nossos demônios. Nada que ultrapasse o limite normal das discussões, mas o suficiente para obrigar mamãe e tia Wendy a nos botarem porta afora.

— Vocês haverão de se entender. Por ora, se afastar de East End espanta os fantasmas do passado. Seattle é um lugar de muitas possibilidades, devíamos sair para espairecer.

— Tem razão. Mas Freya ainda há de intervir em quais forem nossas escolhas. Ela anda me monitorando para que eu não irrite o bebê – ela estava revirando os olhos, o que me fez rir, já que uma Freya protetora era algo que eu não conseguia imaginar.

De volta ao estacionamento do terminal, cada qual com um saco de papel, encontramos Killian e Freya já acomodados no carro, ambos suando em bicas. É que Freya viajara com três pesadas malas, enquanto Ingrid se encarregara de levar apenas uma.

— Eles não tinham hambúrguer, mas trouxe sanduíches de frango e atum – passei o saco para Gancho enquanto me acomodava no assento do motorista – Ingrid queria trazer bolinho de beterraba e chips de batata doce, mas eu disse que você não ia gostar.

Ele arqueou a sobrancelha para Ingrid, girando o pescoço para olhá-la.

— Que você é culta e sensata eu sempre soube, mas não imaginei que fosse tão rígida com o que come. 

— Ela só está seguindo a tabela nutricional – explicou Freya, atacando um pacote de chips com voracidade – E você devia procurar o mesmo, Ruby, uma alimentação menos ofensiva ao bebê. 

A última coisa de que eu precisava era de um nutricionista regulando a minha fome. Ergui meu sanduíche de atum após dar uma bocada.

— Acho que estou bem assim mesmo... Olha, super saudável!

— Freya, não acha que está sendo um pouco sufocante demais para a Ingrid?

— Não, Killian, eu não acho e Ingrid também não acha. No fundo ela sabe o que é bom para ela.

Pelo modo como Ingrid crispou os lábios e dilatou as narinas, eu podia dizer que o excesso de proteção e controle eram demais para ela. Mas, é claro, o terreno entre as irmãs era por demais sensível para que a mais velha cogitasse se impor naquele momento.

— Então, o que há de novo? – perguntou ela, antes que Freya persistisse no assunto.

— O de sempre! Bruxas, psicopatas, deuses egípcios... – com a ajuda de Killian, destrinchei toda a narrativa acerca de nossa última caçada. Quando por fim terminamos a refeição, puxei o cinto de segurança enquanto Killian descia do carro para jogar fora o nosso lixo.

— Espere aí – disse Freya, quando mencionei que Zoe ainda se mantinha como receptáculo de Toth –, ela ralmente tem um homem no corpo dela? Um deus egípcio?

Fiz que sim com a cabeça e Gancho retornou a tempo de ouvir a pergunta.

— Ela conversa consigo mesma em egípcio antigo – ele bateu a porta com mais força do que o necessário e em troca recebeu meu olhar indignado – Espere até ver como é bizarro o troca-troca de personalidade, é quase como se ela lidasse com transtorno dissociativo.

— Oh meu Deus! – Ingrid arregalou as órbitas – Nada de bom pode sair dessa experiência, nós temos de tirar Toth de dentro dela! E se, de repente, ele se fortalecer dos poderes dela e dominar sua consciência?

Dei a marcha à ré.

— Eu disse à Regina que Zoe era desajuizada quando se colocava em risco, mas a Rê confia suficientemente nela, no momento. Algo me diz que ambas estão enganadas e sinto que, mais cedo ou mais tarde, Zoe levará uma rasteira se não tomarmos providências. 

— O seu tino lhe disse isso? – o tom de voz de Freya parecia soar impressionado, mas eu não tinha muita certeza disso – Cara, convém ouvir esse presságio... Ai, Ingrid!

— O que foi? – não precisava ser inteligente como Ingrid para presumir que a mesma beliscara a irmã para que fechasse a boca.

— Nada! Freya devia conter a própria língua, só isso – respondeu ela – Se Zoe acha que dá conta, não devíamos interferir. De qualquer forma, tem de ser ela a expulsar Toth, não acho que há outra forma de fazer isso que não por poder interno e uma boa dose de sensatez.

Gancho e eu concordamos com acenos de cabeça, cada qual perdido em seus próprios pensamentos.

 Pelo restante de avenida até o QG, permanecemos em silêncio. Uma baladinha romântica tocava no rádio e Freya cantarolava conforme mordiscava os chips.

Estávamos para testar novamente a efetividade da proteção colocada por Joana no QG. Qualquer pessoa não autorizada a vê-lo achava tratar-se de um espaço vago entre arranha-céus. Freya guinchou quando o estacionamento se materializou de um rompante, a invisibilidade do mesmo se desfazendo conforme a autorizávamos a saber a localização do prédio. Ingrid soltou um risinho satisfeito, saltando para fora do carro.

— Uau! Não acredito que viemos a Seattle para seu aniversário e não ficamos tempo suficiente para ver o QG.

— A nossa vida era muito turbulenta naquela época – Freya bateu a porta e deu a volta no carro para apanhar sua bagagem, que Killian já se esforçava em erguer do porta-malas – Imagine, vir a Seattle para uma festa e retornar a East End no mesmo dia.

— Só porque a sua relação grudenta com Dash a impedia de passar mais do que umas poucas horas separada dele – provocou Ingrid, torcendo o nariz para o nome do homem que a engravidara.

— Cala a boca, Ingrid!

Desviei a atenção de ambas sugerindo que fossemos diretamente ao dormitório. Freya se dizia apertada para ir ao banheiro e um banho morno era tudo de que precisava após trinta horas em um ônibus. Perguntei se não havia locomoção mais rápida e Ingrid riu-se ante a sugestão absurda de que usassem vassouras.

— Ruby, não somos Harry Potter. Não aparatamos e nem usamos pó de flu numa lareira.

— Ora, e que vantagem há em ser uma bruxa então? – Gancho balançou a cabeça, espremido no fundo do elevador pela quantidade de pessoas e malas no mesmo espaço – No fim das contas, vocês se comportam como humanos comuns.

— Esse mundo não permite muitas possibilidades... Andar de ônibus disfarça a nossa esquisitice.

Tão logo as portas do elevador revelaram as baias-dormitório, Ingrid deixou escapar um murmúrio de maravilhamento. Gancho desembarcou desajeitadamente a bagagem de Freya ao lado de uma cama vaga, e ela ralhou com ele quando um som abafado de espatifamento veio de dentro de uma das malas.

— Devo presumir que vocês vieram passar uma longa temporada? – questionou ele, vendo a moça esparramar o conteúdo da mala sobre a cama. Havia roupa suficiente para mais de um mês.

— Eu disse a ela que não devíamos ficar mais do que uma semana – Ingrid balançou a cabeça –, mas ela insistiu em trazer metade do guarda-roupa.

— Ora, eu estou solteira outra vez, não esperem que eu saia às ruas como uma interiorana sem senso de moda – retrucou Freya, revirando os olhos ao descobrir que a coisa que quebrara era seu perfume – Além do mais, deixar para trás as minhas poções estava fora de cogitação.   

— Você trouxe sua parafernalha voodoo nessas malas? – Killian arqueou a sobrancelha, desacreditado – Não é como se fossemos precisar de uma fábrica ambulante de antídotos.

— Killian, você é um caçador. A essa altura devia ter notado que não faz mal se precaver.

Eu concordava.

Indicamos o banheiro a uma Freya agitada, que imediatamente desapareceu com uma toalha e uma muda de roupas. Quando Gancho se retirou para resolver negócios, eu fiquei às sós com Ingrid. Deitada à cama, ela me lançava um brando olhar de questionamento. É que Killian não estava sendo exatamente discreto quanto o motivo de sua perturbação.

— Suponho que não queiram nos contar o que está acontecendo, mas eu posso apostar que é algo grande.

— Hum, não devia ser eu a contar... Vocês não devem se preocupar com nossos problemas, de qualquer forma.

Ela assentiu compreensivamente e tratamos de assuntos aleatórios até uma Freya envolta em uma nuvem de perfume emergir do banheiro.  Começamos nosso tour pelo terraço, de onde se avistava as vizinhanças mais próximas do centro. Freya correu à beira e espalmou as mãos no parapeito, espiando o trânsito caótico abaixo. Ingrid se manteve à distância, provavelmente pelo trauma de uma vida passada, na qual morrera de uma queda.

Indiquei a direção em que se encontrava Ravenna, o bairro famíliar em que morava a vovó. Ambas irmãs expressaram seu desejo de conhecê-la e fiquei pensando se era mesmo uma boa ideia. Mentir sobre a verdadeira identidade dos meus amigos constantemente me lembrava de que eu não era uma boa neta.

Como a temperatura estivesse fria, não nos demoramos ao relento. Freya se preocupava com a possibilidade de ambas as gestantes pegarem um resfriado. Eu já imaginava que fosse dividir com Ingrid a azucrinação de ser super protegida, o que foi suficiente para me deixar ligeiramente irritada.

— Você devia tentar meditação, Ruby, sua aura está bagunçada – sugeria ela, conforme nos dirigíamos ao próximo andar – A sua aventura com os deuses abalou o equilíbrio dos chakras.

— Bem, são dias agitados, não creio que meditação resolva meus problemas.

— Killian devia poupá-la – opinou Ingrid, uma expressão de censura – Os problemas dele se tornam seus.

— Não é como se tivéssemos escolha... Um casal tem de se apoiar, não é?

— Não quando uma das partes está gestante.

A atenção foi desviada para a organização do prédio, que volta e meia era pauta para questionamento. Ingrid incessantemente me abordava com perguntas, enquanto Freya beirava a infantilidade com suas reações exageradas.  

— Devo confessar, quando me disseram que vocês esconderam um quartel-general em uma avenida contemporânea de Seattle, eu não esperava tanto – a mais velha alisava a barriga, o que me gerava o reflexo de imitá-la.

— Esse é o melhor covil antissobrenatural que eu já vi na vida!

— Nós nunca vimos um covil antissobrenatural, Freya.

— Ai, Ingrid, você me entendeu... Não vamos visitar o quarto andar? – o olhar de Freya não passara despercebido ante a minha manobra de pular do quinto para o terceiro andar.

Tentei argumentar que se tratava de um andar fantasma, mas o faro das bruxas para mentira era demasiado certeiro. Quando Freya fez menção de xeretar a área proibida quando ninguém estivesse olhando, me vi na obrigação de esclarecer:   

— Finnian está lá e vai ser torturado. Gancho me disse que o privaram de água e comida desde que retornamos da última caçada. Não acho que fraqueza física vá funcionar, mas é o Killian... se ele disser “vamos”, toda uma horda o segue.

As portas do elevador se abriram com um rangido mecânico e Ingrid perguntou:

— Anh, desculpe, quem é Finnian?

Quando eu terminei de destrinchar a explicação, Freya estava entretida com nossa aparelhagem de intercepção de sinal e Ingrid de queixo caído em indignação. 

— Ah, Ruby... Não devíamos deixar Killian fazer isso – disse essa última –, nada de bom pode restar de uma tortura. Ele vai se arrepender...

— Se esse Finnian é assim tão terrível, não devíamos dar cabo dele? – sugeriu Freya, analisando o rádio amador que transmitia a frequência da polícia de Seattle. Ela acidentalmente apertou um botão e o aparelho emitiu um chiado ensurdecedor.

— Freya!

— O que foi? Eu aprendi a ser prática e econômica, devíamos podar o mal pela raiz antes de o mal nos podar.

A irmã a pegou pelo braço, afastando-a da parafernalha eletrônica.

— Não devíamos não! Não estamos aqui para interferir no que não é da nossa conta.

  Freya não discutiu, mas ficou de bico até o fim do tour.

Cerca de uma hora mais tarde, nos concentrávamos em fazer o jantar quando o restante do pessoal retornou da visita à Mary. Liam cumprimentou as novas hóspedes rapidamente antes de Archie indicar que Killian se encontrava no terraço, e Alexa tentava disfarçar o ar de perturbação em que se encontrava mostrando-se útil. 

— Eu devia cozinhar, já que você não gosta – dizia a Belle, que folheava um livro de receitas em busca de algo que soubesse fazer sem incendiar a casa – Acho que devo isso a vocês, depois de tudo.  

— Ah não, não me importo em ajudar – contestou a outra, enfim fazendo cara de satisfação para um preparo específico – Ao menos sou capaz de modelar almôndegas.

— Ruby, seu cachorro comeu o meu livro, eu vou cobrar por um novo – Ingrid largou em meu colo um exemplar antigo, babado e rasgado de A Ilha do Tesouro. Sob a mesa da cozinha, Ruppy fez pose de inocência, apoiando a cabeça nas patas dianteiras.

— Ah, Ruppy! Que terrível! Desculpe, Ingrid, sei que não se repõe um livro antigo como esse...

— Se a mamãe estivesse aqui, saberia consertar... Talvez a gente encontre um sebo ou antiquário que possua um exemplar como esse, o que acha? Você definitivamente precisa sair, não estou gostando dessa aura.

— Não faço leitura de auras, mas concordo com Ingrid, Ruby – Belle separava ingredientes sobre a bancada – Você parece estressada.

— Devíamos fazer uma noite de garotas – sugeriu Alexa, animando-se – Todas nós precisamos de uma bebida... Quer dizer, as grávidas não devem se alcoolizar, mas damos um jeito.

— Por favor, parem de tentar nos proteger! – revirei os olhos, impaciente; e elas ainda questionavam o motivo do meu estresse – Não somos jarros frágeis!

— Deixem a Ruby em paz – a voz fanhosa e abafada de Graham me defendeu. Ele afundara de cara num sofá, envolto em uma montanha de cobertores – Ela já é bem grandinha.

— Óóó, o morto ressuscitou! – zombou Alexa – Como se sente, querido?

— Como uma cueca usada por um elefante – ele gemeu, se mexendo desconfortavelmente –, a minha carcaça não consegue conter a dimensão de quem eu sou por dentro...

— Coitadinho, deve estar com febre – riu-se Ingrid, checando a testa dele.

— Ruby! – Freya se precipitou do elevador, furiosa como um turbilhão – Olha o que seu cachorro fez! Era minha sandália preferida!

Ruppy roera boa parte das tiras que sustentavam o calcanhar. Ele desapareceu no mesmo instante, correndo escada acima antes que a fúria da bruxa o transformasse num porquinho da índia comportado. Pedi desculpas a Freya, alegando que lhe compraria outra sandália. Para a minha surpresa, Graham intrometeu na conversa, oferecendo-se a levá-la a loja de calçados mais próxima.

— E eu achei que você se sentisse uma cueca de elefante – Alexa disse em ar de troça, notando com facilidade as intenções do rapaz.

— Cueca de elefante? – a morena franziu a testa, o pé de sandália danificado esquecido sobre o sofá.

— Oh, Graham está se sentindo para baixo, talvez você pudesse dar uma mãozinha – Ingrid lançou um olhar significativo à irmã – Freya é especialista em poções, pode lhe preparar um tônico revigorante.

— Claro! – ela assentiu de prontidão, esquecendo-se da sandália e indo em direção ao elevador – Imediatamente.

Grammy levantou a cabeça do sofá, a cara inchada e vermelha.

— Aaah, não vai ser tão horrível quanto antibiótico, vai?

— Ah não – ela deu de ombros – Posso aromatizar com madressilva e saborizar com o que preferir.

— Devia usar pimenta mexicana, isso o ensinaria a segurar a própria língua – Regina retornava do funeral simbólico do senhor Delgado. Nem preciso dizer que sua chegada gerou comoção nas Beauchamp; era quase como se não se vissem há séculos. Em companhia das irmãs, ela se dirigiu ao dormitório, as três tagarelando feito adolescentes escandalosas.

— Você desistiu da Regina, então? – questionei Graham, tão logo elas desapareceram no elevador.

— Ah, Ruby... – ele tornou a afundar o rosto numa almofada – A Regina me trata muito mal, cansei de me importar...

— Bom, vou torcer por você e Freya – pisquei para ele – A Regina anda mesmo interessada no tal vereador.

— Ela vai se frustar... Os homens dessa idade têm tendência a soltar gases.

***

Após um jantar ao qual nem todo mundo compareceu, a cozinha virou laboratório químico para as poções de Freya. Frascos borbulhavam no fogo, enquanto ervas e ingredientes desconhecidos eram socados por ela em um pequeno pilão. Regina, Zoe e Ingrid se amontoavam em cima da talentosa feiticeira, aprendizes vorazes por toda dose possível de conhecimento. 

— Ele não quis dividir nada comigo – ia dizendo Alexa, sentada à minha frente no carpete, conforme movimentávamos as peças de dama pelo tabuleiro –, e não é nem uma surpresa os dois terem evitado o jantar. Liam sabe a minha opinião sobre o velho Jones, sabe que eu vou me opor a qualquer tentativa de auxílio. Anos de casamento e Amos nunca fez questão de saber dos próprios netos. Não que eu quisesse aquele mau exemplo em casa, mas não é de esperar que ele ao menos quisesse saber o nome deles?

— Bem, talvez, no fim das contas, ele seja sensato. Quero dizer, eu não me sujeitaria a contato com a família, após ter sido a ruína dela.  

— Tem razão. Mas aparecer agora, depois de tanto tempo? E implorando dinheiro dos filhos que ele tanto negou? – ela balançou a cabeça, o vinco entre suas sobrancelhas se estreitando – Ah não! Não, isso é demasiado abuso.

— Não acho que ele estava atrás de dinheiro – derrotei Alexa com um último movimento e ela sorriu por ter perdido pela segunda vez – Para que precisaria de dinheiro, quando lucrou sujo com seu negócio ilegal? Ele quer retomar contato.

— E para quê? Se ele quer morrer em paz, que visite um padre no confessionário.

— Bom, talvez ele tenha sido sincero com Liam. Uma cama de hospital dificilmente o colocaria em posição de exercer manipulação e jogos mentais.

Ela concordou com um aceno de cabeça, para então suspirar desanimadamente.

— Ah, tirar alguma informação de Liam vai ser extremamente difícil... Eu teria de levá-lo para a cama, mas é impossível com tanta gente nesse QG.

Rimos baixinho, porque Baelfire estava a poucos metros de distância.

— Ai, boba, e como você acha que Killian e eu nos viramos? Depois que todos dormirem, vocês podem fazer um bom uso do terraço...  

Rimos outra vez, Alexa enrubescendo as orelhas. Dean Winchester de repente surgiu na escadaria, chamando por Zoe com um ar esbaforido. Ela atravessou a sala com urgência, vendo a camisa do loiro toda manchada de sangue.

— O que vocês fizeram?! – esganiçou, mas o Winchester novamente desaparecia escada abaixo.

Me ergui de um pulo e ouvi Alexa me seguindo, suas chinelas raspando o assoalho. A nuca desnuda de Zoe terminara de descer a escada e ela agora acorria a um canto escuro, desesperada.

— O que diabos vocês pensaram que estavam fazendo? – ouvi sua voz ecoar, antes de eu mesma visualizar o que ela estava vendo.

Finnian convulsionava no assoalho, seus olhos revirados e seu rosto coberto de sangue. Gancho o agarrava pela frente da camisa encharcada de suor, enquanto Liam, distante, encarava a parede. Parei ao fim da escada, Alexa me alcançando logo depois. Zoe afastara Gancho e agora socorria Finnian; só pude ver que ela agarrava seu rosto e murmurava uma profusão de palavras.

— Ele está vivo? – sussurrou Alexa, tão ou mais pálida do que eu estava. Assenti com a cabeça, parte de mim me questionando quanto a confiança que eu depositava naqueles três homens enquanto torturadores.

Finnian parou de se agitar e caiu inconsciente, sua língua para fora enquanto ele babava sangue em meio a saliva. Killian por fim notou nossa presença e se dirigiu até mim, mas eu lhe dei as costas, direcionando Alexa a subir a escada.

— Ruby! – ele chamou, sua entonação segura e clara. Girei o pescoço, esperando uma nota de arrependimento da parte dele – Não volte aqui.

Lhe dei as costas, a marcha de meus pés deixando para trás o eco da minha fúria. Tropecei nas pernas de Bae ao retornar à sala e o garoto protestou ante meu ato rude. Me desculpei, me deixando afundar ao seu lado no sofá.

— Ruby, você não pode se deixar afetar – Alexa encheu a minha mão de tapinhas reconfortantes, mas no momento eu não estava interessada em palavras de consolo – Não que eu concorde com a posição do Killian, afinal Liam estava lá também...

Regina atravessou a sala metida em um luxuoso robe azul-escuro. Tinha em mãos uma taça de bebida esverdeada fumegante.

— Beba isso! Sua mente está atribulada, precisa desanuviar os pensamentos.

Por um momento pensei recusar a poção, mas de um só gole virei a taça e o conteúdo desceu queimando a garganta. Andava mesmo precisando de algo que favorecesse uma boa noite de sono. Respirei placidamente quando uma sensação de frescor e plenitude reverberou por meu corpo, que relaxou prontamente.

— Pronto! Agora sim você pode organizar essa sua aura – Regina carinhosamente afastou as mechas soltas de cabelo para trás de minhas orelhas – Hora de ir para a cama, mocinha. Você também, rapaz.

— Ai Regina, não vem ser chata – Baelfire protestou, tirando o controle remoto de fora do alcance da Rê –, eu nem vou à escola amanhã.

— Não discuta, menino, já passam das onze horas.  

— Vamos, Bae – me ergui e o peguei pela mão – Me faça companhia até eu pegar no sono.

— Ruby, não vai me fazer ouvir um desabafo a essa hora, não é? – questionou ele, quando pegamos o elevador. Ri de sua linguagem corporal contrariada.

— Não, Bae. Só queria evitar um sermão da Regina, ela consegue ser um pé no saco quando quer.

Ao invés do dormitório, fizemos o caminho do terraço. O céu limpo de estrelas e coalhado de nuvens escuras indicava o temporal que aproximava. O vento gelado assobiava em nossos ouvidos, o que de certa forma me distanciava das atribulações do presente. Ora conversando, ora em silêncio, passamos cerca de meia hora observando o trânsito abaixo.

O menino ia me contando suas pretensões para o futuro. Respirei aliviada quando me disse que não se tornaria caçador. Sua inclinação para tecnologia seria bem aproveitada na faculdade de ciência da computação. Fiquei pensando em como me orgulharia se meu filho fosse como Baelfire; o pensamento me fez verter lágrimas.

— O que foi? – ele me tocou um ombro, preocupado.

— Nada. Só estava pensando que qualquer mãe gostaria de tê-lo como filho.

— Ruby, que boba – riu ele, me abraçando – A poção era para clarear sua mente, não te fazer sensível...

Mas a sensibilidade se devia aos hormônios. Assim como a ira que se estabeleceu entre mim e o espelho na manhã seguinte.

Acordei mais cedo que o costume para ir à faculdade. Não me encontrava nem um pouco disposta, mas estar com Damon, Éden e Cherry era tão mais animador do que permanecer no mesmo ambiente que Gancho. Não queria vê-lo. Algo em mim o detestava, por alguns minutos apenas, talvez, ou pelo restante do dia.

Preparei um rápido composto alimentar, enquanto novamente checava o conteúdo de minha bolsa. Dean me assustou com sua chegada repentina. Vasculhou a geladeira – murmurando algo sobre uma noite mal dormida de sono – e saiu mastigando um pedaço “modesto” de bolo. Engoli meu café da manhã às pressas, largando para trás a louça suja. Fui surpreendida por Gancho, que sem anunciar sua presença se aproximou para desejar bom dia. Trocamos poucas palavras, no geral monossílabos. Saí sem olhá-lo no rosto, sentindo formar-se em mim uma aversão à raiva que eu estava sentindo.

Eu sempre soube que Gancho fazia jus ao apelido. Em algum momento, me esquecera que tipo de natureza sedenta e animalesca um homem ferido podia ter. Mas havia algo que eu não podia negar: Killian não expressava clemência diante de um inimigo caído. Eu vira, mais de uma vez. E se não fosse Dean interceder, será que ele teria matado Finnian?

Liguei a programação matinal do rádio para me distrair. Desde a madrugada Seattle era mergulhada em chuva. Uma chuva vigorosa que congelava o trânsito e os ossos.

Cogitei ir à pensão de vovó, sabendo que acabaria por perder parte da aula do primeiro tempo. Caso virasse a próxima avenida, lidaria com menos trafégo do que teria de enfrentar até a área mais movimentada da cidade. Mas já perdera aulas suficientes. E as minhas notas não iam bem, a minha vida inconstante e insegura afetando meu desempenho. Aguardei com ansiedade o fluir demorado da pista. Quando, enfim, alcancei o campus, me encontrava com quarenta minutos de atraso.

— Ei, você perdeu o teste – uma colega me avisou no corredor, quando nos dirigíamos à classe de História da Moda, antes lecionada pelo professor Midas. Pelo burburinho que eu ouvira mais cedo pelos corredores, finalmente haviam lhe encontrado um substituto.

— Hum, então devo ter perdido muita coisa nos últimos dias – lamentei, procurando na classe um assento que não ficasse bem na vista do novo docente.

— Um pouco, nada que faça falta. O melhor é o professor novato, que homem!

As moças que estavam mais próximas concordaram com o comentário, todas contendo risinhos e expressões de indiscreta satisfação. Conforme os alunos se acomodavam, as conversas paralelas iam silenciando. Foi então que o professor passou pelo corredor ao meu lado, cumprimentando alegremente a turma.

Senti meu estômago revirar e pesar sob o incômodo de carregar uma enorme ansiedade solidificada. Meus pensamentos argumentavam que talvez ele estivesse ali para uma palestra e nada mais. Era a conclusão mais lógica e cômoda. Do contrário, a sensação de bile subindo o esôfago apenas se tornaria mais rápida e volumosa.

 Senti-me inclinada a fugir, quando ele brevemente esquadrinhou o espaço, fixando o olhar em meu assento. Ainda que não pudesse me ver, sabia que era ali que eu me encontrava. Quise me erguer de um pulo e correr esbaforida. Mas eu era mais forte que isso.

Eu era mais forte que isso.

Ele limpou a garganta e destrinchou um discurso coeso, movimentando-se vagarosamente entre a frente do auditório e os corredores laterais. Como um jogo de gato e rato, ele sabia onde se posicionar para me privar uma fuga. Mesmo que eu cogitasse abandonar a aula, teria de passar por ele para alcançar a porta.

Jefferson era pragmático. Comunicava-se com clareza, vez ou outra falando em ar jocoso. Por toda a sala, sorrisos se abriam e se desfaziam em risadinhas. Ele era encantador. Amável. Fazia-se ouvir e respeitar com o mínimo de esforço. Ele era, de fato, um flautista de Hamelin.

Felizmente, eu não me permitia enganar por aquela expressão tranquila de sorriso relaxado.

Passaria pouco mais de uma hora observando seus movimentos graciosos e vocabulário impecável. Mas não me importava, desde que ele não se aproximasse. Desde que fizesse a si mesmo o favor de imaginar que a minha cadeira se encontrava vazia. Mas isto era subestimar a obsessão de um homem apaixonado.

Mais ou menos meia hora após o início da aula, Jefferson iniciou o que seria equivalente a um seminário. Exceto que a disciplina não admitia um seminário, com mais de cinquenta alunos competindo o momento de fala. O debate em questão tinha como base um texto que eu não lera. “Ótimo”, pensei “Estou bem atrasada com relação aos outros alunos”. Quanto mais eu conseguiria sustentar as minhas múltiplas vidas sem terminar fracassada?

Espiei o texto do colega ao lado, todo grifado e destrinchado em pequenos resumos de páragrafos. Jefferson ia dialogando com os alunos, ora concordando ora contestando, acrescentando informações e incutindo pensamento crítico. Logo então ele se armou de um golpe baixo. Com a lista de alunos em mãos, começou a dirigir as perguntas a nomes escolhidos a esmo.

— Senhorita Lucas? – chamou ele, fingindo me procurar em meio à multidão.

Hesitei por um instante e colegas que me conheciam me olharam de esguelha. Um deles esclareceu ao professor que eu não estivera presente nas últimas aulas. Ele assentiu, compreensivo.

— Ah sim, é verdade... No entanto, a minha pergunta não necessariamente exige a leitura do texto. Em sua opinião, o que quer dizer o autor quando escreve que a imitação promoveu a criação competitiva?

Me vi destrinchando uma resposta especulativa, mais breve possível. Ele se aproximou para ouvir melhor, sorrindo satisfatoriamente conforme me encarava com firmeza. O maldito estava me vendo. O feitiço de Joana expirara...

A minha resposta gerou complementos e logo Jefferson estava do outro lado da sala, prosseguindo a discussão. Não mais se dirigiu à minha pessoa, que apesar da raiva contida manteve a compostura.

Quando enfim terminou a aula, ele se postou à porta, educadamente despedindo-se dos alunos. Respirei fundo, me demorando mais do que o necessário. A postura mais acertada seria sair em meio ao fluxo, apressada e sem permitir que me alcançasse. Eu, no entanto, estava cansada da fuga. Permaneci imóvel, até que, tendo saído o último aluno, Jefferson veio ao meu encontro.

— Ora, ora, pensei que terminaria a semana ausentando-se das aulas, senhorita.

— O que faz aqui? – indaguei, pouco cordial. Ele sorriu levemente, cruzando as mãos à frente do corpo.

— Meu nome era o primeiro na lista de substitutos. O corpo docente ficou satisfeito com a minha admissão à vaga. Devo dizer, é um prazer lecionar em sua presença.

— Ah. Bem, enquanto nossa relação neste recinto for puramente acadêmica, eu espero ser respeitada enquanto aluna. E aconselharia que não se metesse comigo, professor. As minhas companhias não são páreo para um mago de meia-tigela.

Jefferson soltou uma respiração alarmada, disfarçada por uma risada jocosa.

— Está me ameaçando? Ora, que tipo de joguinho sujo o seu namorado lhe ensinou? Ruby, Ruby... – ele se aproximou mais do que o necessário, fazendo menção de me tocar – Não se deixe contaminar pelos métodos animalescos de Jones.

— Pode parar aí mesmo! – me ergui, pronta para correr caso fosse necessário – Nós temos Finnian. Gancho ouviu a sua tentativa imunda de fazer com que ele me sequestrasse. Melhor nem tentar, Alexa sabe os horários de Grace, não seria difícil interceptá-la na escola...

Que tipo de coisa eu estava dizendo? Nada que fosse usual à minha natureza pacifíca. Mas a postura invasiva de Jefferson pouco a pouco mudaria meus métodos. Achei que o peso de minhas palavras fosse suficiente como intimidação, mas ele sequer se abalou.

— Não creio que realmente queira dizer isso, Ruby, mas essa vil tentativa de usar Grace como ponto fraco não pode me atingir – ele se afastou tranquilamente, as mãos cruzadas atrás das costas – É claro que eu não confio em Finnian; é claro que eu sei de seus passos, e é claro que eu sei quando um empregado desaparece sem deixar rastro aparente. Também comprovei que meus vizinhos não retornaram à casa desde sua saída em trinta e um de outubro. Ora, veja bem, você ainda desdenha da minha inteligência. E, enquanto isso, é evidente que estou um passo adiantado.

— Você é insano! – passei por dentro da fileira de assentos, ansiando alcançar a porta, da qual Jefferson ainda estava distante – Não ouse tentar algo contra mim e minha família, eu não hesitaria duas vezes em acabar com a sua raça.

— Tentar algo contra você? Ruby, eu só estou tentando protegê-la.

Parei, ressabiada, sem conseguir conter um riso debochado de incredulidade.

— Me proteger? De você mesmo, talvez? Não, obrigada, não preciso da sua proteção. Eu posso fazer por mim mesma.

Saí porta afora, imaginando que ele fosse se pronunciar ou mesmo me perseguir. Quando ele não o fez, girei o pescoço para encará-lo. Parte de mim, alguma parte profunda e desconhecida, esperava que ele fosse correr atrás. Mantendo a compostura, ele apenas me fitou com seriedade, jogando no ar palavras sem sentido:

— Quando o véu da ignorância cair, você vai precisar muito de dois amigos em um.

Me afastei rapidamente, optando por me ausentar do restante das aulas. Buscar a presença de meus amigos seria o mais indicado, mas não me encontrava em estado de espírito ameno o suficiente para retornar ao QG. Contatei Freya e Ingrid e combinamos de nos encontrar um quarteirão após o prédio, longe do sistema de vigilância do QG. Embora Gancho estivesse ocupado com Finnian, não duvidava que outra pessoa pudesse me ver pelas câmeras.

Freya ocupou o banco do carona, enquanto Ingrid preguiçosamente se espichava no banco de trás.

— Meu Deus, Ruby, você está terrível – a moça ao meu lado agarrou meu rosto, virando minha cabeça para os lados – Sua aura está em estado de perturbação, o que foi que aconteceu?

Girei a chave na ignição, afastando para longe as mãos de Freya.

— Jefferson. O feitiço que me ocultava expirou.

— Oh, meu Deus! – Ingrid enfiou a cabeça pelo espaço entre os bancos dianteiros – Você falou com ele?

— Falei. Ele armou isso, não havia escapatória... Suponho que o maldito feitiço funcione com permissão?

— Ah sim! É como o feitiço que oculta o prédio, você o autorizou a vê-la quando falou com ele.

— Bem, vocês poderiam ter me avisado, não é? – passei os minutos seguintes explicando como se dera o contato. Quando eu terminei, Freya insistia que devia ser ela a confrontar o Chapeleiro – Não, ninguém além de mim vai confrontá-lo. Ele está um passo a frente, sempre. Ótimo, porque eu vou fazer um uso vantajoso das informações que ele tem em mãos.

— Ruby, é perigoso... – ia dizendo Ingrid, ao que Freya complementou:

— Esse homem queria sequestrá-la, não é como se ele fosse desistir sem tentar.   

— Não importa, eu vou me precaver. E nem pensem em mencionar nada ao Killian ou a qualquer pessoa que seja. Já temos muito sangue nas mãos...

Aquilo findou o assunto. Quando eu estacionei em uma hamburgueria (e Freya sequer ousou nos privar disso), todas nós desembarcamos pensando em carne e batata, o que, por um breve espaço de tempo, nos afastava de mais problemas.

***

Gancho refugiara no terraço com cara de poucos amigos, dissera Regina. Não viera confraternizar conosco nem muito menos despedir-se dos que estavam indo embora. Liam ao menos era capaz de fingir naturalidade, mas era essa exatamente a máscara que Kilian menos se prestava a usar.

— Vou tirar as cartas pra ele – ia dizendo Freya, ante a minha preocupação – Elas vão orientá-lo, embora eu imagine muito bem que tipo de decisão ele acabou por tomar.

Belle nos abraçou em despedida, enquanto Baelfire distribuía beijos nas bochechas. Era hora de Gold retornar aos negócios em Storybooke e de Gepeto retomar as caçadas. Dean Winchester fora embora mais cedo, ao encontro de Bobby e do irmão, enquanto Zoe – hospedada por tempo indeterminado no QG – saíra para uma breve caçada nas redondezas.

Quando Alexa e Liam desceram com as crianças adormecidas no colo, eu franzi as sombrancelhas para eles.

— Nós temos vidas, você sabe. Por ora, estaremos seguros na casa de uma das minhas irmãs sem que ela faça muitas perguntas – Alexa me explicou, no fundo parecendo esconder algo – Não podemos manter as crianças dormindo por tanto tempo.

Soava mais como uma desculpa esfarrapada, mas decidi não mais questionar.

Com tantas pessoas indo embora, eu me perguntava se Killian sozinho seria capaz de continuar a torturar Finnian. Sem outro homem para apoiá-lo, talvez enfim ele desistisse daquela ideia.

— Eu não contaria com isso, Ruby – Graham balançou a cabeça, sentindo-se um pouco mais disposto após fazer uso das poções de Freya – Finnian não abriu a boca, nem mesmo por persuasão de Zoe. Ela disse que Jefferson colocou algum tipo de feitiço de barreira na mente dele. Ela não conseguiu exercer a manipulação mental.

— E Gancho por acaso acha que agressão física vá fazer ele falar? Até onde consta, ele o destroçaria por inteiro antes de alguém conseguir desfazer o tal feitiço.

— É o Killian – Grammy me deu um tapinha consolador no ombro – Se ele cismar que a lua é quadrada, ninguém o priva dessa opinião.

Pelo visto, Graham estava certo. Quando Freya se sentou à mesa da cozinha fazendo perguntas às cartas, Killian relutava em ouvir o que quer que elas tivessem a dizer. Achava que nada pudesse mudar sua opinião já formulada.

— Hum, Freya sabe exercer uma espécie de orientação persuasiva – dizia Ingrid, sentada comigo no carpete enquanto jogávamos damas. Ao contrário de Alexa, ela era uma forte oponente – O Killian há de fazer a melhor escolha.

— Sabe, tenho medo de que, no fim das contas, ele queira interceder pelo pai. Não que eu o conheça, mas temo o que esse homem pode fazer com nossas vidas.

— Ele está atado a uma cama de hospital, Ruby, duvido que possa fazer mais do que uma tentativa dramática de reatar com os filhos.

Eu podia ouvir Freya murmurando sua leitura a Killian e entreouvia algumas palavras, mas nada que me permitisse formular uma interpretação acerca do futuro. Bem, no fim, não era mesmo da minha conta.

Quando Ingrid me derrotou pela terceira vez e se retirou aos bocejos, Freya já tinha se dirigido ao dormitório levando o baralho de cartas. Killian ficou sozinho à mesa, refletindo. Me senti um tanto culpada por ter passado o dia inteiro afastada dele, mas a distância em um relacionamento por vezes se mostrava essencial. Com o repentino silêncio estabelecido no recinto, meus movimentos chamaram sua atenção.

— Eu peguei pesado com Finnian – falou ele, em entonação cansada.

— Bem, que bom que você notou... Achei que uma convulsão fosse suficiente.

— Depois daquilo eu fiquei ainda mais irritado. Cego o bastante para achar que ele estava fingindo... Bom, não fosse Zoe e Regina remediarem a situação, creio que o teria desfigurado.

Estremeci, sem saber exatamente que tipo de resposta dar a ele.

— Mas não era raiva de Finnian – ele continuou, ainda sem me fitar – Era algum tipo de ódio movido pelo meu pai...

— E você descontou em Finnian. Precisava?

— Ah sim. E não me arrependo completamente. Ele bem merece... Só que em algum momento eu me esqueci de que eu sou melhor do que ele. Quero dizer, não sou vigarista como ele, nem traiçoeiro como ele... De alguma forma me lembrei de que eu sou melhor quando me privo de sujar as minhas mãos.

E os céus cantaram “Aleluia!”.

Sentei-me à mesa, minha expressão de alívio denunciando o quanto eu estivera decepcionada com ele.

— No fim das contas, você é minha ruína – ele pegou minha mão entre as suas, afetivo – Um capitão sangue frio não pode honrar seu nome quando o amor pela donzela o faz repensar se vale à pena tornar-se um monstro e perder a amada.

— Hum, então vou ter de matar esse monstro diariamente, daqui para frente...

Mas descobri que havia um monstro vivendo em mim também. Quase contei a Killian sobre o meu encontro com Jefferson. A forma que ele armara para mim, despertando no meu âmago uma fúria que saíra em forma de ameaça contra uma menina inocente. Não disse nada. Eu sabia o que monstros eram capazes de fazer quando vivendo sob a pele de uma pessoa.

 Jefferson era meu problema.

Quando saímos para o terraço, não quis estragar o momento inserindo Amos Jones como assunto. Dentro de mim as perguntas gritavam. Eu refreava com muito custo um impulso de visitá-lo em seu quarto de hospital. Questioná-lo. Dizer-lhe que a família Jones já sofrera demais por causa dele. O que mais ele queria?

— Você contou a Alexa sobre o nosso lugar secreto? – Gancho perguntou no meu ouvido.

— Ah, ela queria arrancar informações de Liam – disse em meio a risinhos – Não deu certo, né.

— Digamos que eu vim até aqui para clarear meus pensamentos e flagrei os dois no ato. Foi como se eu flagrasse meus pais.

— Bem, não há risco de eles tentarem outra vez. Em todo caso, o elevador seria uma boa ideia, caso quiséssemos variar.

Rimos, Killian parecendo considerar a sugestão.

Chuviscava e tempestades isoladas trovejavam à distância. Gancho me contou que Liam vira o pai por breves instantes. Insconciente, levado às pressas para um quarto por um grupo de internos, quase irreconhecível em sua aparência desleixada e maltratada.

— Quem será que o socorreu? – perguntei.

— A polícia – Gancho apoiara os antebraços no parapeito e fingia observar a paisagem para evitar expor sua expressão – Alguém prestou acusação contra o velho... Um tal Detetive Babineaux tem responsabilidade pelo caso. Não que Liam fizesse questão de se envolver, mas o velho acordou da quase-morte chamando pelos filhos.

— Ah, meu Deus... – era só o que nos faltava: um Detetive na jogada e os nomes dos rapazes vinculados ao de um traficante – Ele envolveu vocês! Que tipo de pai arrasta os filhos direto para o radar da polícia?

Ele me pegou pelos ombros e tentou soar plácido, mas sua expressão era o oposto disso.

— Ruby, mantenha a calma, sim? Escute, eu vou precisar me afastar por um tempo, por precaução. Liam e eu concordamos que o mínimo deslize nos colocaria em posição suspeita e, considerando o tipo de vida que levamos, não precisamos de tiras no nosso caminho.

Assenti com firmeza, embora parte de mim quisesse verter lágrimas e se desfazer em drama.

— Para onde vai?

— Tenho um contato que pode me arranjar um endereço e uma nova vida. É temporário... Até esse Babineaux encerrar as investigações e confirmar que o velho sozinho montou todo o esquema sujo dele.

— Quando é que vamos viver tranquilamente, hein? – suspirei, apoiando a cabeça no ombro dele. A chuva dava indícios de que ia se fortalecer e o vento gelado praticamente nos expulsou para a segurança do elevador. 

— Nós devíamos sair da cidade quando isso acabar. Ir para um lugar seguro, longe da importunação de Jefferson e das pessoas que tentam nos derrubar.

— Killian, para onde íriamos? – eu ri, mas dada sua entonação, ele parecia falar sério.

Deu de ombros e dormimos num confortante abraço de despedida. Não que Gancho fosse se ausentar por vários dias, mas era sempre difícil estarmos afastados quando, mais do que nunca, necessitávamos apoio mútuo.

— Eu vou cuidar do QG na sua falta, amigo, não se preocupe – Graham fizera uma tentativa falha de portar-se firme e forte, mas foi pego por uma crise de espirros logo depois.

— Ah, Graham, no fim das contas a responsabilidade será minha – Regina, que amaciara um pouco o tratamento oferecido ao homem, lhe deu um tapinha na cabeça – Não se preocupe, Gancho, entrei em recesso na prefeitura, não estarei a serviço pelos próximos dias.

— Ah, Regina, mas não ia se encontrar com seu par romântico no bingo da terceira idade?

Ela ignorou Grammy com um revirar de olhos, ao que Gancho riu dando a ela um voto de confiança. Antes de sair com uma mochila no ombro, ele me puxou para um canto.

— Sabe, Ruby-Loob, eu andei pensando em algo que Freya me disse quando tirou as cartas... Ela disse que eu devia confiar nos meus instintos, embora eu seja muito mais racional do que intuitivo. Você sabe que eu... ahn, não sou muito bom com essa coisa de escutar meu coração...

— Ah sim – sorri, espalmando a mão sobre seu peito – Que bom que eu escuto o meu... Do que precisa?

Ele deu uma olhada na cozinha, assegurando-se de que os presentes estivessem demasiado ocupados para estar escutando a conversa.

— Bem, me ocorreu que, dessa vez, talvez a minha intuição se mostre acertada e... bom, me incomoda admitir que aquele Chapeleiro seja provido de inteligência, mas eu andei pensando... talvez você seja capaz de quebrar Finnian.

— Como é? – eu certamente não ouvira direito. Dei um passo para trás, avaliando a sanidade daquele a quem me dirigia.

— Nenhum de nós foi capaz. Zoe não encontrou brecha para manipulação mental e a tortura física não surtiu efeito. Mas se eu estiver certo... Jefferson não recrutaria um soldado com o intuito único de permanecer na sua cola, Ruby.

— Vai soar absurdo, mas eu sei exatamente o que você está sugerindo! – meus olhinhos deviam estar brilhando feito purpurina prateada – Você acha que Jefferson tinha intenção de usar Finnian...

— ...como uma espécie de mensageiro. Sim. Se há alguém que pode arrancar respostas dele, esse alguém é você. Eu quero dizer... Ele ia querer que de alguma forma você o ouvisse...

Eu devia admitir que a engenhosidade de Jefferson era de impressionar. Mas, é claro, ainda tínhamos de confirmar que estávamos certos quanto aquela teoria.

— Não vou me opor, caso queira ou não falar com meu primo – continuou Gancho – Só não vá sozinha, okay?

Fiz que sim, embora me sentisse inclinada a fazer justamente o contrário. E então, com um último beijo de despedida, eu vi meu próprio monstro refletido no de Killian.

***

A única luz que combatia as trevas do recinto vinha de uma brecha nas janelas vedadas por tábuas. Gancho tivera a precaução de limitar a percepção de Finnian, uma vez que ele poderia desenvolver um conhecimento vantajoso sobre nós. Sentado em uma cadeira virada para a parede, ele tinha os olhos vendados e a boca amordaçada. Um abafador de ouvido o privava dos sons, enquanto suas mãos e canelas se encontravam algemadas.

Ele não me ouviu chegando, mas uma espécie de sexto sentido o advertiu quanto a aproximação de um estranho. Alarmando-se, remexeu no assento, gemendo e tentando balbuciar qualquer coisa através da mordaça.

A visão do que ele tinha se transformado não era tão horrorífica quanto eu imaginava, mas ainda assim impactante. Zoe o remendara mais de uma vez, o tipo de remendo que não fora aperfeiçoado, já que ela não tinha um talento para cura como Joana Beauchamp. Finnian tinha manchas no rosto e cicatrizes finas e avermelhadas pelo corpo. Havia resquícios de sangue ressecado sob suas narinas e um feio hematoma na bochecha esquerda.

Puxei para a frente dele um banquinho capenga e ele pareceu sentir a vibração do movimento, pois se agitou como se prevendo que outra vez seria alvo de tortura. Tirei primeiro o abafador de ouvido e ele balançou a cabeça quando o ruído de trânsito que vinha de fora repentinamente invadiu sua audição.

— Se ousar gritar, vou bater em você – ameacei, antes de livrá-lo da mordaça.

— Ora... – murmurou ele, com um fiapo de voz seca – Será que a moça poderia me oferecer água?

Ele sorveu metade de uma jarra, babando e deixando vazar parte do líquido para a roupa. Seus lábios estavam ressecados e ele tinha um corte em vias de cicatrizar em proximidade com a boca. Retirei por fim a venda e ele piscou repetidamente até focar o olhar. Um de seus olhos virara um calombo amarelo-esverdeado. Sob eles havia densas olheiras e pequenas manchas azuladas.

— Ah, então é você... – murmurou ele, com certa indiferença – Já estava me perguntando quando é que teria a honra de ser confrontado pela moça...

— Mesmo? Você realmente me conhece muito bem, não? Exceto que, não fosse Killian me dizer que eu devia confrontá-lo, eu não viria por espontânea vontade.

— Verdade? – ele soltou um risinho de troça, do qual se arrependeu imediatamente, pois lhe causara dor – Bom, então eu a subestimei. Achei que quisesse tirar satisfação, agora que sabe que eu sou a fonte que mantém seu stalker informado.

— Não vejo como você pode nos informar quando não detém informações – usei o tom mais desdenhoso de que dispunha – Você é um mero peão a quem Jefferson manipula. Quem aquele homem é em profundidade, ninguém pode saber. Eu disse a Killian que era inútil perder tempo com tortura quando o cachorrinho adestrado de Jefferson é limitado pela coleira.

Ufa! Bem que eu andava necessitada de despejar uma boa dose de maldade em alguém. Não que compactuasse com esse tipo de comportamento, mas toda a raiva que eu andava sentindo precisava ser depositada em algum lugar. Finnian travou a mandíbula, da mesma forma que Killian costumava fazer, e me lançou um feio olhar de irritação.

— Para alguém que ele diz amar, você não é nada como ele descreve – disse, cuspindo saliva aos meus pés – Uma vadiazinha ordinária, difícil de fisgar e ainda mais difícil de compreender.

Ri, pois acreditava que estava sendo bem-sucedida em minha tentativa de desestabilizá-lo. No fim das contas, ele não era assim tão inquebrável. E, por falar nisso, a quem Jefferson recorrera para proteger os segredos de seu fiel lacaio? Um semi-mago certamente não estava apto a fazer feitiços como aquele.

— Detesto me mostrar malvada, mas só estou dizendo a verdade. Me parece que a vadia ordinária é você. Bom, não foi na sua mente que Jefferson colocou um feitiço? Apenas porque não confiava na sua capacidade de manter essa boca fechada... Talvez ele tenha lhe contado certas coisas de importância, mas eu apostaria que o que você sabe é apenas uma ínfima parte do que realmente ele planeja...

A arapuca estava armada. Finnian remexeu na cadeira, fixando o olhar no assoalho. Me ergui e fui me postar às suas costas. Analisei o estrago feito. Haviam lhe raspado a cabeça, onde a presença de manchas e cicatrizes indicava o uso de um objeto arrendodado como instrumento de dor. Avistei numa caixa de ferramentas aberta um martelo manchado de sangue. Estremeci, imaginando a fúria com que fora utilizado.

— Ele me conta o que é necessário ao meu trabalho – ia dizendo ele – O restante das informações eu detenho por observação... Nada que vá acrescentar à sua curiosidade...

— Bem, jornalistas se vangloriam de sua capacidade investigativa. Seu papel é fazer perguntas, não? Então, como é que você alega não saber nada útil? – tornei a me sentar, cruzando uma perna sobre a outra – Por exemplo, eu sei da existência de uma cartola mágica. Jefferson deixou a informação escapulir, agora eu tenho algo contra ele...

— Cartola mágica? – o outro repetiu lentamente, como se o termo fosse fantasioso demais para ser levado a sério – Que espécie de informação é essa? Conhecer os códigos não necessariamente o coloca em posição de fragilidade.

Códigos. Jefferson se utilizava de códigos. É claro, não tínhamos em mãos seu bizarro codinome hacker? Talvez a cartola não fosse em si um código, mas saber da existência deles nos dava possibilidades.

 - E se eu lhe disser que sei onde se encontra a cartola? – ele me lançou um olhar indeciso, por fim considerando que eu realmente estava um passo à frente – Com Grace, é claro. A cúmplice mirim que Jefferson treina como peão principal.

— Grace está bem, é claro! – retorquiu ele, com a entonação de um pai que menciona alegremente a filha – Grace a ama, Ruby, não tenha dúvidas disso.

Sorri genuinamente. Tinha em mãos o que precisava.

— Ah, eu sei. Mas há coisas sobre Grace que me assustam. Por exemplo, o fato de ela deter parte do sangue mágico do pai. Será que ela é uma bruxa completa ou pouco talentosa como Jefferson?

— Completa. A mãe dela era uma bruxa hábil. É de se admirar que você não saiba.

— Bem, ele nunca mencionou nada disso. Se a esposa dele era uma bruxa, deve ter morrido por artes sobrenaturais...

— Vingança de sangue. Ela foi morta por uma rival.

— É mesmo uma pena... Esse terrível fato deve ter afetado o psicológico do homem. É por isso que ele se esforça tanto em me perseguir.

Finnian soltou um riso incrédulo e jocoso, como os que por vezes Jefferson soltava quando se recusava a acreditar no que acabara de ouvir.

— Ele a persegue por amor genuíno. Não é um sentimento ilusório provocado por um estado mental confuso.

— Mesmo? A obsessão com que ele me valoriza me coloca em estado de desconfiança. Ele até mesmo pagou você para me sequestrar. Me pergunto se ele mesmo não podia se dar ao trabalho...

— Te sequestrar? – agora Finnian estava me olhando com uma expressão idêntica a que o Chapeleiro fazia quando se decepcionava estando ao mesmo tempo incrédulo – Nunca foi sobre você... O que ele pretende é proteger seus passos. Você jamais estaria fadada a uma vida de opressão como cativa. O que ele quer é mantê-la livre e consciente do que você pode vir a ser...

Me quedei em silêncio, reflexiva. De certa forma, tudo parecia estranhamente familiar, como se em meu inconsciente eu já soubesse que espécie de plano Jefferson tinha em mente. Lembrei-me de algo que o meu intelecto associou à última fala de Finnian.

— Sabe, Jefferson me disse algo engraçado hoje... Ele me disse: “Quando o véu da ignorância cair, você vai precisar de dois amigos em um”. Acabou de me ocorrer que talvez você saiba do que ele está falando...

— É o seguinte, Ruby, o modo como você é manipulada está em vias de ter um fim. Não é de se admirar que você nunca tenha se perguntado como é que sabe de certas coisas. Nenhum amigo é verdadeiro enquanto tenta poupá-la de conhecer a si mesma... Não é tão difícil entender a razão de Jefferson ser a pessoa de que você precisa... Enquanto ele transitar em luz e sombra, jamais mentirá para você!

  Perdi o fôlego diante do impacto do que me fora revelado. Me demorei uns instantes encarando Finnian, que balançando a cabeça parecia tentar livrar-se de uma perturbação. Ele piscou repetidas vezes, enfim focando o olhar em meu rosto. Seu tom de voz estava possesso quando ele se deu conta do tipo de manipulação a que fora forçado a passar.

— Como diabos você me arrancou tanta informação que eu não detinha? Que espécie de poção você me ofereceu? – ele observou a jarra de água com desconfiança, o que me fez sorrir com leveza.

— Parece que eu subestimei as habilidades de Jefferson. Ele é, de fato, um mago competente.

***

Quando Killian me perguntasse, eu diria que ele estava errado. Finnian logo seria descartado e então eu colocaria meu recém-elaborado plano em prática.

Não contei a ninguém.

Gancho haveria de me perdoar. Ele me acharia louca. Jamais permitiria que eu fizesse o que estava pensando.

O pessoal que ainda estava no QG achava que eu fora à faculdade. Esgueirei para fora do prédio, pensando como seria útil se no futuro elaborássemos passagens secretas. Eu bem poderia assistir às aulas restantes da manhã, mas me encontrava inquieta demais para permanecer sentada.

Resolvi fazer à Mary uma visita surpresa. Ainda que ela não fosse exatamente o meu alvo.  

Como é que Jefferson detinha tanta informação? Que espécie de método ele utilizava quando arrancava as palavras certas de uma pessoa? E como era capaz de tornar-se invisível por tempo suficiente para fazer o que devia ser feito?

Se eu não fosse conhecida no hospital, bem me faria passar por policial ou algo do tipo. Ou, caso estudasse qualquer coisa que não moda, bem poderia passar por pesquisadora. Na pior das hipóteses, eu poderia dizer que as batas hospitalares me atraíam como referência. “Você nunca pensou que essas camisolas verdes ficariam bem como saídas de praia?”

Hesitei ao atravessar a porta de entrada. A atendente ia precisar de uma desculpa qualquer para me deixar vagar pelos corredores. Eu não podia visitar Mary se esperava que meus passos fossem encobertos. Não podia mentir a August, dizendo que fora rendê-lo: um mentiroso reconhecia outro.

 Eu não podia mentir à polícia.

Afinal, o que é que eu estava pensando, tomando decisões precipitadas daquele jeito? Será que meu sucesso com Finnian me dera gás para agir feito uma débil mental? Amos Jones era um criminoso resguardado por agentes à paisana. O que eu queria provar pra mim mesma, tentando chegar àquele quarto?

A atendente estava perguntando o que podia fazer por mim. Eu ia dizer a ela que não estava bem, precisava checar meu bebê. Quando minha obstetra me dispensasse, daria um jeito de cruzar meu caminho com o do velho Jones. Em teoria, o plano por si só já era falho. Por que diabos eu estava prosseguindo com aquilo?

— Senhorita? – perguntou outra vez a secretária, conforme eu hesitasse –O que posso fazer por você?

— Ahn, eu...

— Ruby, você esqueceu o nome outra vez... – a voz suave me arrepiou a espinha, ao mesmo tempo em que o odor de perfume francês infiltrava minhas narinas. Ele se dirigiu à atendente, que soltou um risinho amarelo – Dorothea Bornofen... É o sobrenome, sabe, as pessoas normalmente o esquecem... Ruby está na lista de visita.  

Fiquei rígida enquanto a moça checava a tela do computador e com um vigoroso aceno de cabeça me oferecia uma pulseira de visitante. Me deixei conduzir até o elevador, pensando que espécie de coincidência conveniente era aquela. Quando ele se dirigiu a mim, o elevador já deslocava para cima.

— Você não foi à aula... Imaginei que eu fosse o motivo, mas estou feliz que tenha conseguido guiá-la até aqui.

Virei o pescoço para olhá-lo. Trazia em mãos um buquê de peônias. De resto, era o bom e velho Jefferson que a gente conhecia.

— Como? Me guiar?

— Você não veio falar comigo?

— Não...

Chegava a ser engraçado, nós dois num elevador, ambos com expressões catatônicas. Ele ficou desapontado e em ar de curiosade eu perguntei:

— Quem é Dorothea?

— Não se preocupe, não é minha namorada – riu ele, ajeitando o buquê – Pensei que Finnian tivesse dito a você... que você é mais do que bem-vinda aqui...

— Não foi esse o tipo de informação que eu arranquei de Finnian.

O elevador se abriu para o sexto andar. O mesmo em que eu fora internada após minha desventura com os Djinns na floresta. Será que era ali que Amos Jones se encontrava? No que eu iria me meter se fosse com Jefferson?  

— Há um lugar em que eu preciso estar... – disse, quando ele saiu para o corredor. Alguma coisa em minha expressão denunciava meu plano. Isso ou Jefferson tinha a mesma intenção de visitar Amos, tão logo presenteasse Dorothea com aquelas flores.

— Ruby, você não sabe onde está se metendo – ele apertou o botão do último andar, de modo a nos dar tempo para uma conversa segura – Aquele homem é investigado pela polícia. Nada do que você quer saber precisa ser dito por ele. Eu tenho tudo de que você precisa.

— Ora, não é que fez o serviço completo? Colocou um feitiço na cabeça dele também?

— Não – sorriu o Chapeleiro – A cabeça dele já estava bagunçada o suficiente. Nada do que ele disser fará muito sentido. É isso que a dependência química faz com você... Um insano incompreendido...

Ele se referia a si próprio.

Sorriu levemente, um sorriso de tristeza. Pegou uma mecha do meu cabelo entre as mãos. Soltou logo em seguida, quando dois internos do hospital pegaram o elevador.

— O que exatamente você quer com ele? – perguntou-me, vendo os dois médicos engajados numa conversa sobre carros de corrida.

— Não sei... Acho que queria rir da desgraça dele...

Pela visão periférica notei que ele me observava. Não virei o rosto para ver que tipo de olhar me oferecia. Os internos saíram no próximo andar e Jefferson me puxou porta afora, rapidamente me conduzindo pelo corredor.

— Eu consigo te infiltrar, mas tem de ser exatamente como eu disser... – viramos uma esquina e ele me posicionou de costas para a parede – Amos Jones não vai ser apenas um pirado mental condenado à prisão psiquiátrica, Ruby. Ele vai repassar um legado importante a Jones. Quando isso acontecer, sua vida vai estar em risco... – ele se assegurou de que eu prestava atenção, antes de continuar – Amos está fadado a morrer nesse hospital, assassinado...  Bem... tudo me leva a crer que você vai ser a assassina...

Preguei meus olhos nos de Jefferson. Por que diabos eu estava comprando aquela ideia?


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Notas finais do capítulo

Só Deus sabe quando postarei o próximo capítulo, mas até lá, que tal comentarem para fazer uma autora feliz?
~Beijinhos da Jones~



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