'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 33
O Sumiço do Mago & Outras Adversidades


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!
Retornando com mais um capítulo após um longo hiato hehe =D
Espero que esse capítulo sirva como distração nesse momento tão delicado que estamos vivendo e que gostem dele tanto quanto eu gostei de escrevê-lo.
Nesse aparecem alguns personagens novos, espero que gostem!
Mais uma vez, peço desculpas pelo tamanho, é quase impossível escrever um capítulo pequeno que desenvolva todas as tretas... Mas se eu fosse vocês não reclamaria, só Deus sabe quando eu vou postar de novo hahahaha!

Relembrando um pouco do que aconteceu anteriormente:
O pai de Killian está sendo investigado pela polícia e por isso Gancho tem de ficar atento para não levantar suspeitas. Enquanto isso, Ruby tenta lidar com Jefferson e Finnian com a ajuda de Regina, Zoe e as Beauchamp.

Aproveitem a leitura!

PS.: Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência (lembrem-se que o Graham já estava doente uns capítulos atrás) .



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Novembro. Previsão de vento e geadas para as próximas semanas e eu estava cada vez mais atolada de trabalhos.

Não me leve a mal, eu gostava da experiência universitária, mas certamente reclamaria menos se todos aqueles prazos no cronograma não me privassem um fim de semana com as minhas amigas.

— Você poderia procrastinar até segunda-feira – dissera Regina, no sábado em que as garotas tramavam ir em uma balada.

Eu disse a ela que já perdera muito tempo bancando a heroína. Killian pagava a mensalidade, eu devia honrar isso. Digamos que as minhas notas já não estivessem muito aceitáveis...

— Vocês podem ir – eu dissera – Freya e Ingrid vieram a Seattle distrair a cabeça, não quero ser um obstáculo...

Regina se emperequetara toda, é claro. Saiu prometendo voltar na manhã seguinte.

— Só não faça nada idiota, Regina – advertira Zoe, que não quisera ir. Ela não era muito adepta de baladas, de modo que ficou no QG me fazendo companhia.

Devo dizer, aquela sua amizade com Toth estava fazendo bem a ela: além de aprender egípcio antigo, agora Zoe dera para fazer arte. Naquele dia, ela estava pintando sua cena de possessão; em poucos detalhes, retratara a história toda usando o tradicional estilo egípcio de representação. 

— Puxa vida! – Graham exclamara, outra vez envolto em cobertores – Você não quer fazer um retrato meu? Eu podia posar nu...

— Grammy! – eu precisei levantar a cabeça do livro que estava lendo – Mas que audácia! Tenha modos!

Ele apenas rira, enquanto Zoe revirara os olhos.

No domingo, Regina amanhecera animada. Ela dormira em casa, já que não encontrara nenhum homem interessante na balada (o que era, convenhamos, surpreendente). Planejava ir a um bar com karaokê depois que visitasse Mary.

— Eles lhe dão um rodízio grátis se você arrancar muitos aplausos – ela nos informara – Eu vou deixar Gancho no chinelo quando subir naquele palco.

Nós rimos amarelo.  Digamos que o talento de Regina para canto não equivalia à sua capacidade de fazer pratos assados. Por fim, ela desistira – já que nem eu nem Grammy estávamos indo –, e inventou um karaokê no QG que nos rendeu boas gargalhadas.

— Eu não estava prestando atenção à ortografia – eu diria a Jefferson, caso ele criticasse meu ensaio sobre A Roupagem Como Instrumento de Poder—, uma mulher bêbada passou o domingo todo cantando para o prédio inteiro ouvir.

No entanto, mesmo após todo meu esforço, Jefferson não aparecera no auditório de História da Moda para receber nossos trabalhos. Ele cancelara as aulas da semana, limitando-se a pedir desculpas pelo inconveniente, deixando um aviso pregado na porta.

— Que ao menos avisasse por e-mail, não? – Regina balançou a cabeça, quando eu voltei para o QG pouco depois de sair.  

Dei de ombros.

— Ele não é um professor acessível. Eu reclamaria com a coordenação, mas dou graças a Deus por ele não atolar a minha caixa de entrada.

Convenhamos, já era ruim o bastante receber vinte e seis presentes pelo correio.

Notei que o QG estava silencioso e que Regina se preparava para sair. Perguntei onde é que estava todo mundo.

— Freya e Ingrid levaram Ruppy para passear, Zoe foi lidar com o corpo de Brendon e Archie se voluntariou a ir até a vizinhança de Liam – ela enumerou, verificando os armários depois de fechar a geladeira – Quer ir comigo ao supermercado? Grammy está consumindo nosso estoque de papel higiênico e algum esfomeado andou assaltando a geladeira durante a madrugada.

Graham adoecera outra vez. Achávamos que ele não tivesse se curado completamente da gripe que apanhara após a tempestade que enfrentamos em Horrorland.

— Me tragam umas pastilhas para a garganta – ele saiu do elevador, estava com o nariz completamente entupido. Vinha embrulhado em um pesado cobertor de lã azul que, jogado sobre a sua cabeça, fazia com que ele parecesse Nossa Senhora – E, se possível, um hidratante labial...

Regina olhou para ele com cara de irritação.

— Vou lhe trazer um descongestionante nasal e mais uma dose de antibióticos, não estou gostando desse seu pigarro irritante.   

Esperei que Graham lhe respondesse de forma atrevida, mas ele desatou a tossir e foi cuspir o catarro na pia da cozinha.

— Aí não, seu delinquente! – Regina esganiçou, fazendo menção de impedir o ato. Graham tossiu com mais intensidade e a Rê saiu correndo para evitar contato com as gotículas de saliva com vírus – Ótimo! Agora temos de esterilizar todos os apetrechos da cozinha...

Nós entramos no elevador e eu perguntei à Regina por que é que Graham gripara se o feitiço da Joanna nos protegia de qualquer efeito colateral do clima e do contato com criaturas.

— Bom, nós enfrentamos deuses, o feitiço não era páreo para esse tipo de criatura – ela deu de ombros – Contanto que você não pegue o vírus, Graham pode arrebentar a garganta escarrando.

Pobre Grammy... Nem mesmo doente ele conquistava a simpatia da Regina.

Me mantive pensativa durante o curto trajeto até o supermercado. Jefferson sumira do mapa e eu não tivera nenhuma notícia de Finnian. Por um lado, dispunha de mais tempo para preparar minha barganha com o Chapeleiro; por outro, convinha que ele estivesse à disposição com as suas habilidades de hacking.

Killian ainda estava às voltas com o caso do pai e eu temia que o detetive Babineaux o enquadrasse como possível cúmplice. Além de um registro criminal por exumação de túmulos, Gancho ainda dispunha de uma infinidade de nomes falsos.

— Sem dúvida, é mesmo uma maldição que Killian tenha um detetive em sua cola, mas somos muito cuidadosos com nosso negócio de caçadas – dizia Regina, abastecendo o carrinho com uma porção de legumes. Ela me viu franzindo a testa para o exagero na quantidade e esclareceu – Vou fazer uma poção fortificante, nós não podemos esmorecer quando chegar o inverno.

— Bem, um detetive com um bom faro investigativo poderia vir a desconfiar do Killian – falei, continuando o assunto – Ele disse que não ia mais caçar até que tudo se resolvesse, mas até onde ele consegue fingir normalidade?

— Seria melhor perguntar até quando. Eu conheço Gancho há mais tempo do que você, ele é um espírito inquieto... Mesmo após a morte da Milah, ele se recusava a permanecer em luto... Não gostei da qualidade dessas maçãs, teria sido melhor que eu trouxesse a minha própria safra.

Assenti, concordando com ambos os comentários. Regina continuou falando.

— Em todo caso, se a questão com Gancho te preocupa, devíamos tentar contato com Jefferson. Eu tinha o número de celular dele, mas excluí da minha vida tudo o que dizia respeito àquele homem... Vamos levar um gengibre para o Graham, ele vai se sentir muito melhor... Bom, só temos que nos atentar a uma questão: você vai ficar na mão de Jefferson se pedir a ele esse favor.

— Ah, não! – contestei, embora pensasse nessa possibilidade - Ele me deve isso! É para isso que estamos pensando nos termos da barganha, lembra-se? É uma permuta, os dois saem ganhando...

Paramos na seção de enlatados e me lembrei da gigantesca despensa que Jefferson tinha em sua mansão, com mais comida do que o necessário. Regina começou a comparar preços, enquanto eu tentava me decidir entre uma conserva de picles e uma de tomates.

— Se é assim – a Rê falou –, por que é que não pergunta a Jefferson que legado é esse que Gancho vai herdar de Amos? Obviamente, ele está um passo adiante, Finnian vai levar séculos para descobrir.

— Eu não quero dar ouvidos a Jefferson – resolvi levar as duas conservas e as depositei em meu carrinho, pois o da Regina estava quase cheio com a imensa quantidade de frutas e legumes – Eu lhe disse, não confio nele, não sei até que ponto ele é verdadeiro. Além do mais, a mãe dele foi bem enérgica quando me contou que ele diz coisas que ela não sabe se fazem sentido ou se são invenção.

Dorothea mencionara que Jefferson fazia acompanhamento psiquiátrico. O Chapeleiro tinha muitos segredos, e mais cartas na manga do que podíamos prever. Não contei a ninguém o que ele me dissera sobre eu ser a assassina de Amos. Por mais que me parecesse uma grande abobrinha, não gostaria que me olhassem de esguelha como se desconfiassem que eu fosse degolar um velho em seu leito.

— Bem, isso é verdade... – Regina estava assentindo – Mas você tem de concordar com uma coisa: até Finnian terminar a tarefa que deu a ele, Amos pode acabar contando ao Gancho que legado é esse. E então, quando isso acontecer, não teremos tempo de nos preparar...

Ela parou meio ao corredor, sua testa exibindo vincos de preocupação.

— Que foi? – perguntei. Regina sempre sabia mais do que divulgava. Eu imaginava que ela soubesse algo sobre esse legado, assim como sabia coisas sobre Jefferson. Não imaginava, porém, porque é que ela não fosse me contar.

— Ruby, um legado é sempre um fardo... Olhe ao que eu e Mary fomos submetidas...

— Vocês odeiam a bruxaria tanto assim?

— Não, é só que... – ela parecia nervosa e suspirou profundamente antes de virar no próximo corredor – Bom, a gente nunca sabe o que nos espera... Quando nossa família nos esconde um legado, descobrir repentinamente torna as coisas mais bolorentas, entende?

De alguma forma, eu entendia o que ela queria dizer.

— Você acha que eu devia contar ao Gancho? Pensei nisso, mas teria de explicar como eu fiquei sabendo. 

— Não, não conte a ele... ainda. Eu quero dizer, isso pode destruí-lo – ela balançou a cabeça e, embora fosse extremamente centrada, eu podia jurar que estava se segurando para não cair no choro – Ele passou por muita coisa, é de se esperar que em algum momento ele fosse... bem, que ele fosse viver em paz. Pelo amor de Deus, vocês estão grávidos!

— Regina, não vá fazer um drama em local público! – ela começara a falar mais alto do que o necessário e algumas pessoas nos olharam como se fossemos uma daquelas famílias problemáticas que expõe seus dramas em programas de TV.

Regina atirou dois pacotes de papel higiênico para dentro do carrinho, antes de escolher um gel antibactericida na prateleira. Ela falava apressadamente, quase como se estivesse cantando um rap.

— Desculpe! Eu me importo demais com vocês, caso não tenha notado. E então, se Amos vai repassar um legado, isso significa que ele irá morrer. E quem há de saber quando? Jefferson! Você tem de pressioná-lo a falar! Além do mais, senhorita, já se perguntou como é que o Chapeleiro tem essa informação? Que espécie de vidente ele contatou para ter acesso a fatos do futuro?

— Hum, oráculos existem? – questionei. Em todo caso, não imaginava que um oráculo fosse sair divulgando questões pessoais do futuro de outra pessoa.

— Não sei, temos de perguntar a Zoe... Mas eu duvido! – Regina me agarrou pelos ombros bem quando eu ia me dirigindo a uma promoção de detergente de coco – Ruby, Jefferson certamente sabe o que está falando. Ele não é burro, ouviu? Ele é desprovido de talentos mágicos, talvez, mas não é um tapado.

— Você sabe alguma coisa... Por que Jefferson te enviou aquela ameaça por vídeo? O que você possivelmente faria que o colocaria em posição delicada?

Aquilo vinha me incomodando há um tempo. Que Jefferson era um lunático, isso nós sabíamos, mas o modo como ele ameaçara a Regina não nos deixava dúvidas de que ela sabia mais do que devia. Como eu esperava, a Rê ficou lívida e desconversou.

— Nada de que vocês precisem saber... – ela saiu empurrando o carrinho, fingindo interesse em uma caixa de sabão em pó – Eu e Jefferson temos nossas questões pessoais. Você sabe, ele usufruiu da minha cama...

— Ah sim, vocês devem ter feito muitas trocas debaixo dos lençóis. Não precisa me contar, que tal se eu perguntar a ele?

Ela sorriu de lado, como se aprovando a minha audácia de querer cavar fundo.

— Há! Você pode tentar... Mas lembre-se de que saber demais é uma carga...

Estranhei aquela fala, mas a Regina se afastou rapidamente em direção à seção de festas, de modo que eu não pude perguntar mais nada. Nos demoramos escolhendo itens para a festa de recepção que planejávamos para Mary: ela estava perto de receber alta e queríamos surpreendê-la em sua volta para casa.  

— Ela vai gostar desses pratos, não são bonitos? – Regina estava um tanto eufórica, quase como se a festa fosse para ela. Resolvera comprar pratos de porcelana, pois os do QG eram velhos e descombinavam – Quando éramos crianças, Mary gostava de admirar o conjunto de louça da minha mãe. Eu sempre achei que ela fosse querer um igual quando formasse uma família.

— Acho que eu nunca perguntei a Mary se ela tinha uma casa...

— Tem, um casarão em Battesville, Arkansas. David comprou o casarão para ela depois que ela contou a ele como era a nossa casa no Novo México – explicou ela, se encaminhando para o caixa.

Puxa vida! Eu não sabia muita coisa sobre a vida passada dos meus amigos. Embora fosse “uma grandessíssima abelhuda”, como dizia a vovó, sempre achei que não devia investigar muito sobre a história deles antes das caçadas. Era doloroso demais se lembrarem de quem já haviam sido, de modo que eu me contentava em conhecer o que eram no presente.

— Ah, é por isso que você sabe falar espanhol... – comentei e Regina sorriu.

Sí, chica! Eu achava que a nossa descendência era mexicana, era o que a minha mãe me dizia... Bom, eu tenho orgulho de quem sou, Ruby. Meus pais podem ter sido Asgardianos, mas eu nasci no Novo México e foi lá que eu cresci.

— Hum, Cora tinha um motivo especial para ir se esconder lá?

— Imagino que sim. Ela nunca me contou... Talvez ela quisesse se misturar, sabe? Assegurar que nossa família fosse permanecer intocada. Ela tinha medo de alguma coisa...

Regina parou de falar, fingiu dar atenção à atendente do caixa, que passava as compras com uma rapidez de assustar. Certamente a Rê sabia algo sobre Cora que não se sentia confortável em divulgar. Não que fosse da minha conta, mas, após a minha conversa com Madame Olzon em Horrorland, eu ficava pensando no fato de Regina ser uma Suprema em ascensão. A Cora havia sido Suprema antes dela, mas quando morreu o legado passou para a filha.

Alguém ocultara algo na minha aura. Madame Olzon não sabia quem, uma vez que o ministrante do feitiço não deixara marcas. Eu vinha querendo perguntar à Regina se fora ela, mas não imaginava que ela soubesse fazer algo assim. Não era um feitiço de principiante e, por mais que a Rê fosse uma bruxa talentosa, não se arriscaria a me fazer algo sem consultar Joanna.

— Ruby – Regina olhou para mim preocupada, quando dirigiu de volta ao QG –, você nunca dá descanso à sua mente, não é? O que é que está pensando agora?

Eu me permiti um sorriso, embora estivesse um tanto preocupada. Apesar de ter contado a Gancho tudo sobre Madame Olzon, não comentara muito com as garotas: havia problemas demais para lidar no momento e eu não queria que elas ficassem teorizando quem me pusera o feitiço. Como dissera Regina, saber demais era uma carga...

— Se eu lhe contar algo, você vai dizer às garotas? – indaguei.

Regina fez que não com a cabeça.

— Eu sou sua amiga, não sou? Eu guardo os segredos de Jefferson. Até os da minha mãe, embora ela esteja mortinha no quinto dos infernos! Você pode me dizer, se quiser...

Contei o que se passara na tenda de Madame Olzon, desde o momento em que eu entrara. Quando mencionei o feitiço ocultativo, Regina fez cara de quem nunca ouvira falar nisso.

— Espere aí, e você achou que eu tinha posto essa coisa em você? – ela deu uma risada incrédula – Ah, Ruby, você me superestima, garota! Eu ainda não saí das fraldas no que diz respeito à bruxaria.

— Bem, Olzon disse que era um feitiço poderoso e que apenas uma Suprema teria meios de fazê-lo. Bom, ela me disse que você é uma Suprema em ascensão...

O queixo de Regina caiu. Ela pisou no freio e o carro cantou pneu: por pouco não passamos o sinal vermelho.

— Mas como é que ela sabe disso?! Ruby! Nem Mary sabe... Então como foi... Ah, eu quero falar com essa Madame Olzon, pode ter certeza de que eu vou encontrá-la!

— Bem, ela disse que me encontraria quando eu precisasse...

— E você precisa! – Regina estava agarrando o volante com tanta força que os nós dos dedos dela estavam pálidos – Cora escondeu esse segredo até da própria sombra. Ruby, você sabe o que é uma Suprema? Não é algo que se possa sair divulgando por aí...

— Eu imagino que não! Mas Regina, alguém me colocou esse feitiço! Por que diabos alguém ia querer ocultar a minha aura?

— Para lhe proteger, garota! De repente, a Joanna sabe quem foi... Eu quero dizer, se ela mesma não era capaz de fazer um feitiço desses, ela poderia ir atrás de... – ela interrompeu o raciocínio na metade, então me olhou como se tivesse acabado de descobrir que um mais um são dois – CORA! Mas é claro!  Você viveu tanto tempo com ela que parece óbvio que ela tenha feito esse feitiço sem que você tivesse consciência.

— E quanto aos poderes que ela perdeu? Você acha que ela fez isso com magia negra?

Ah, eu não gostaria que Cora tivesse intervindo na minha vida sem a minha autorização, enchendo a minha aura com a sua magia obtida através de um pacto.

— Bem, não sei dizer quando foi que ela perdeu os poderes, mas ela pode ter feito isso enquanto ainda os tinha – ia dizendo Regina – É a sua melhor explicação, sabe. Às vezes eu gostaria que ela ainda estivesse viva para me dar satisfação.

— Poderíamos contatá-la por Conjuração do Desencarnado... – sugeri, assim como havíamos feito na pirâmide.

Regina balançou a cabeça.

— Não ia funcionar. Ela não podia falar conosco, lembra-se? Mesmo que pudesse, não revelaria muita coisa. Como eu disse, ela escondia segredos até da própria sombra.

— Regina, do que é que Cora ia querer me proteger?

— Bom, me ocorre uma coisa... – ela dava tapinhas no volante com o dedo indicador, o vinco em sua testa se aprofundando conforme ela raciocinava – Se ela era uma bruxa vivendo escondida na pensão da sua avó, talvez ela quisesse te proteger do rastro dela. Você foi atacada por um lobisomem, lembra-se? Algumas criaturas farejam bruxas, deve ter sido por isso que Cora tentou proteger você.

Franzi a testa. Aquele papo estava muito esquisito. Eu não sabia dizer se Regina estava me enrolando ou se realmente não tinha bagagem para entender aquelas coisas.

— Criaturas sabem ler auras?

— Bom, não sei... Ah, Ruby, você e suas perguntas! – ela fez um som engraçado com a garganta, como se quisesse gritar, mas ao mesmo tempo reprimisse o grito – Sabe de uma coisa? Nós temos de pesquisar! Eu precisava ir atrás de uma Suprema, seria benéfico para nós duas... Quero dizer, não posso comentar nada com as garotas, é perigoso demais.

— Pode ser nosso segredo – sugeri, ao que Regina sorriu.

— É claro que pode.

***

Ajudei Regina com o almoço, embora ainda precisasse me dedicar aos estudos. Freya estava às voltas com um Graham adoentado e Ingrid se concentrava em picar os ingredientes para a poção fortificante. Imaginei que o gosto da mesma não se diferenciasse muito de uma sopa, embora, como me explicara Regina, a dose da poção fosse tomada fria.

— Em todo caso, imagino que a essa altura todas nós já estejamos contaminadas com o vírus, pois Graham não sabe espirrar de forma educada – ia dizendo a Rê, flambando carne em uma grande frigideira.

— Ela não perde uma oportunidade de me criticar – resmugou Graham, antes de um belo e escandaloso espirro que lançou gotículas a uma distância de cinco metros.

— Vê só, era isso que eu estava dizendo... Saia daí, Freya, antes que seu nariz também fique entupido.

— Regina, não vamos estressar o Graham – Ingrid interviu, pois o clima ficava tenso quando os dois começavam a discutir – Nós devíamos pensar no que fazer no próximo fim de semana, quando ele estiver curado da gripe e Ruby estiver livre dos trabalhos acadêmicos.

— Que tal um piquenique no sábado?! – sugeri, animadíssima.

— Ruby, piquenique com esse clima feio? – Regina torceu o nariz. A temperatura caíra e os dias amanheciam nublados, mas eu não via motivos para que o clima arruinasse nossos planos.

Dei de ombros, ao que Freya opinou:

— Ei, devíamos fazer um retiro nas montanhas! A Lua vai estar favorável para limpezas.

— Ai, Freya! – Regina riu e balançou a cabeça – Pelo visto, eu mesma terei de planejar a nossa programação.

— Não, Regina, na verdade Freya está certa – Graham concordou vigorosamente, como se entendesse daquelas coisas – Nosso estado vibracional deve estar afetado com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, devíamos nos beneficiar dessa energia.

Regina ia responder com uma provocação, mas desistiu quando o viu deitado no colo de Freya. No fim das contas, ela se importava muito com a felicidade do nosso amigo.

— Bem, se fazem tanta questão... – ela se limitou a responder, sorrindo brevemente sem que mais ninguém percebesse.

Comemos com fartura e eu acabei me excedendo. Regina era uma exímia cozinheira e suas habilidades gastronômicas rendiam pratos saborosos com os mais simples ingredientes. Desta vez, nem Freya se fez de rogada. Graham estava sem apetite, mas beslicou um pedaço de carne flambada e disse que era a melhor que ele já tinha comido.

— Uau! Eu acho que nunca fui tão bem alimentada na vida! – comentei, largada em um sofá. A minha barriga estufara, mas ainda havia espaço para a sobremesa.

Ingrid perguntou a Regina onde ela aprendera a cozinhar. Ela já mencionara que havia sido com Cora, mas eu não imaginava a bruxa velha de avental, orientando uma adolescente no modo certo de segurar a faca.

— Ah, Ruby, lembre-se de que nós tínhamos uma vida normal – a Rê esclareceu, perdida em lembranças distantes – Além do mais, embora nós tivéssemos empregados, a minha mãe gostava de cozinhar ela mesma – ela fez uma pausa pensativa – Olhando agora, penso que talvez ela usasse essa desculpa para justificar suas experiências alquímicas na cozinha. Me lembro de ter visto uma fumaça azul escapando de um bule de chá; ela não me disse o que era, mas cheirava esquisito.

— Regina, talvez Cora estivesse te preparando para o futuro! – Ingrid falou, derramando calda de caramelo em sua taça de sorvete – Pense só, talvez você não visse muito sentido nas coisas que ela fazia, mas no fundo percebesse que havia um propósito.

— Eu não havia pensado nisso... Cora era extremamente discreta com a magia, não me admira que Mary e eu tenhamos levado tanto tempo para descobrir. Em todo caso, há uma lista de coisas que eu nunca compreendi quando mais nova. Por exemplo, não entendia por que a minha mãe cismava em se expor para a luz da lua usando apenas um conjunto de lingerie cor púrpura.

Nós rimos imaginando a cena. Eu nunca vira Cora fazer nada esquisito enquanto vivia na pensão. Suponho que, para que ninguém desconfiasse dela, ela se mantivesse reclusa e afastada. Nem mesmo seu quarto tinha indícios de sua verdadeira identidade; aos domingos, ela me convidava para tomar chá sentada em um conjunto de poltronas de capitonê que, segundo ela, eram uma herança ancestral. Sempre achei que Cora fosse uma senhorinha de posses que, por ocasião do destino, perdera tudo que era seu por direito.

— Veja só, ela gostava mesmo de você! – Regina torceu o nariz quando eu contei sobre as tardes de chá – Suponho que ela projetasse em você a função de filha.

— Bem, não sei... Éramos mais como amigas. Na verdade, eu era a única quem realmente dava a ela alguma atenção.

— Hum, mancomunando com o demônio – desaprovou Graham, contendo um espirro.

— Na verdade, foi proveitoso – disse Regina – Nós não a descobríriamos se não fosse a Ruby.   

Eu meio que a condenara a um terrível destino, mas ela própria assinara a sua sina ao barganhar com o demônio.

Saciada, me permiti uma hora de ócio para relaxar. Regina disse que ia descansar sua beleza, enquanto Ingrid obrigou Freya a ajudá-la com a louça. Vi Grammy lançando olhares à Beauchamp mais nova, que os retribuía sem o menor constrangimento.

— Hum, acho que tem alguém apaixonado... – provoquei e Grammy, que não demonstrava sentimentos facilmente, enrijeceu no sofá e fingiu não saber do que eu estava falando – Graham, no que diz respeito à discrição, você sai perdendo.

— Hum, eu não queria que fosse tão evidente – sua risada saiu fanhosa e ele assoou o nariz ruidosamente – É obvio que não vamos passar de um caso febril e temporário. Não sei porque você se anima tanto com essas coisas.

— Porque você é meu amigo, oras! – abaixei a voz, embora Freya não prestasse atenção à conversa – Grammy, você talvez não tenha nenhuma chance com a Regina, mas é inegável que Freya esteja atraída por você.

— Eu não estou me iludindo... Ela ainda ama o tal Killian Gardiner— ele estava revirando os olhos, imitando o modo como Freya pronunciava o nome – Na outra noite ela estava me falando dele, um babaca que se achou no direito de destruir o relacionamento do irmão.

— Bem, acho que Freya teve uma boa dose de culpa nisso, afinal, ela se apaixonou mesmo estando noiva. Em todo caso, não faria mal se você investisse...

— Ruby, eu gostaria, mas o meu estado de saúde não me permite... – ele foi pego por uma intensa crise de espirros e eu precisei saltar para o lado para evitar ser alvejada pelo catarro – Além disso, não sou bom com interações sociais e minhas relações são desprovidas de afeto.

— Você é um ótimo amigo! – contestei, indignada. Quando eu o conhecera, ele não era muito afetivo, mas isso estava mudando.

— Pois então, o mesmo não vale para a minha vida amorosa. De qualquer forma, só faço parte do grupo porque Gancho e os outros me impediram de sair.

— É mesmo? Você não queria ser nosso amigo?!

Ele deu de ombros, um tanto incomodado.  

— Bem, queria... Mas, bem, você sabe... Crescer em um lar de órfãos me preparou para perdas. Eu nunca quis me apegar a ninguém, mesmo na vida adulta.

Graham passara boa parte da sua juventude em Boone, na Carolina do Norte. Ele não falava muito sobre o assunto, mas eu sabia que fora deixado no orfanato enquanto ainda bebê. A minha vivência enquanto órfã de pais me permitia sentir empatia; para Graham, no entanto, a vida fora muito menos generosa, afinal, eu fora criada pelos meus avós.

— Ah, eu entendo. Você ficou lá muito tempo, né?

— Dezoito anos! – ele suspirou longamente, evitando contato visual ao olhar para o teto – É, é muito tempo... Você acaba adquirindo maturidade muito cedo, sabe. Quero dizer, aos dez anos eu já sabia que eu mesmo tinha de fazer por mim, pois as chances de adoção naquela idade já eram muito pequenas.

— Hum, você não manteve nenhum amigo dessa época?

— Ah não, as outras crianças iam sendo adotadas, enquanto isso eu ia ficando. Eu era sempre o mais velho, fui sendo esquecido. Depois disso, é natural que uma pessoa não queira criar vínculos.

Eu sorri, pois nas últimas semanas Graham se tornara meu amigo mais próximo. Talvez ele mesmo não tivesse percebido, mas criamos um laço que beirava a irmandade.   

— Você acabou criando.

— Forçadamente, que fique claro! – ele ergueu o indicador como se quisesse parecer indignado, mas estava sorrindo – Além do mais, eu me atraí pela comida da Regina, lá no orfanato as opções não eram fartas

— Ah, você bem que encontrou outras motivações – ofereci a ele um olhar significativo, ao que ele assentiu com bastante satisfação.

— Não vou negar, a Regina é bem gostosa!

— Sou mesmo! – e lá estava ela, empertigada em uma postura de poder e botando as mãos na cintura. As orelhas de Graham enrubesceram – Mas você sempre pensa com a cabeça de baixo, não é?

— E você não ia descansar a beleza? – questionou Grammy, tentando mudar de assunto.

Regina apanhou o Grimoire da família Mills, que deixara sobre a mesinha de centro. Ela o abriu e se pôs a folhear as páginas tranquilamente.

— Ia, mas não permitem ócio a uma mulher com a minha ocupação. Imaginem que o vice-prefeito estava questionando a minha ausência. Eu disse a ele que a minha catapora ainda não estava curada e que lidaria com as minhas obrigações em home-office.

— Regina, você não estava de recesso?! – me exasperei e ela fez um gesto de indiferença com a mão.

— Não, eu disse aquilo por desencargo de consciência. Na verdade, Gancho falseou um atestado, então eu preciso parecer acamada.

Ai, ai, não se podia esperar menos de Killian, ele era um pilantra. A Regina estava procurando um feitiço que a deixasse doente, mas não encontrou nenhum. Se limitou a fazer uma maquiagem que imitava olheiras e pústulas na pele, então, enfiada em uma camisola, entrou em videoconferência com o vice-prefeito.

Por mais que eu quisesse ficar para ver sua encenação, precisei ir ao encontro de Killian. Ele estava vivendo em outro endereço, falseando uma vida para disfarçar seu negócio de caçadas. Sua nova residência, ele me contara por telefone, ficava em um prédio de apartamentos que pertencia a uma linhagem familiar. Ele fizera mistério, de modo que o que eu estava para encontrar era surpresa.

Saí para o ar seco de uma Seattle nublada, esperando que mais à noite as nuvens contribuíssem com uma chuvinha. Quando o GPS buscou o endereço que Killian me passara, indicou que eu estava indo para Chinatown. Sorri, já imaginando o que me esperava. Como o trânsito estivesse fluindo, levei em torno de cinco minutos para chegar ao marco histórico do bairro asiático: um arco de Paifang – estilo arquitetônico característico da China –, que se elevava sobre a rua como se fosse um portão.

Dirigi ao longo de uma avenida movimentada, coalhada de letreiros chamativos. Passei por uma lanchonete de noodles, um mercado de produtos importados e o que me pareceu uma loja de jogos. Dois minutos depois, a voz no GPS indicava que eu chegara ao meu destino: um prédio cinza de quatro andares, que era um híbrido de comércio e residencial.

Saltei do carro. Parara em frente a um bazar de quinquilharias. Killian não me indicara o número do apartamento. Imaginei que o bazar fosse de propriedade da família, mas bem quando eu ia entrando para perguntar por Gancho, notei o estúdio de tatuagem que ficava ao lado.

Ah, se eu bem conhecia Killian...

A fachada era vermelha e branca. O letreiro em caracteres chineses se destacava em dourado, uma tradução em inglês logo abaixo: Chung Tattoo Studio. Entrei, um tanto hesitante. Um rock que me parecia da Mongólia preenchia o ar e uma garota falava rapidamente em mandarim no telefone. Ela era a recepcionista; tinha um dos braços coberto por tatuagens em forma de mandala e um piercing de argola no nariz.

— Jones, ela chegou! – berrou em direção a um corredor, antes de voltar ao telefone.

Imaginei que, com a música alta, ele não escutara, então me sentei em um sofá vermelho e fiquei observando as molduras nas paredes. Havia pinturas em aquarela e um mostruário de desenhos para tatuagem. A garota desligou o telefone e se dirigiu a mim.

— Venha, aqui são todos surdos!

Fui atrás dela enquanto ela rapidamente se deslocava até o fim do corredor. De cada lado do mesmo havia um par de salas. Killian estava na segunda sala do lado esquerdo e virou a cabeça quando a garota entrou. Havia um cara deitado numa maca e Gancho tatuava o braço dele. Arregalei os olhos em surpresa, enquanto Killian sorriu abertamente.

— Ah, achei que fosse demorar... Estou quase acabando, por que não mostra a ela o lugar, Susie?

A garota deu de ombros, me puxando para fora.

— Sou Susie, minha irmã é dona do estúdio – ela começou tagarelando – Killian disse que sabia desenhar, então Hallie deu a ele uma chance... Eu não me arriscaria com ele ainda, no entanto...

— Como você sabia quem eu era?

— Ele nos mostrou sua foto, disse que são noivos – ela abriu a segunda porta à direita. Vi uma moça parecida com ela, porém um pouco mais velha. Estava com os cabelos escuros presos em um coque e tatuava alguma coisa complexa nas costas de uma mulher loira – Essa é a Hallie. Diz “oi”, Hallie!

— E aí, beleza? – ela me cumprimentou animadamente, desviando a atenção do trabalho.

Nas outras duas portas estavam Louis e Kevin, dois irmãos que Susie disse serem seus primos por parte de pai. Louis me cumprimentou do mesmo jeito que Hallie, enquanto Kevin mal percebeu que Susie falava com ele, pois era de sua salinha que vinha a música alta.

Nós saímos para a calçada e ela apontou para o bazar.

— Esse é o bazar do vovô Larry. Ele é um velho legal, mais muito obcecado... E aqui é a loja de pipas da tia Cassie. Não aconselho que entre lá agora, ela vai querer ler sua sorte na borra de chá e há gente que fica muito perturbada com as previsões.

Ela estava apontando para uma loja atarracada do lado direito do estúdio. A fachada era colorida e pela vitrine eu pude ver uma pipa de dragão no mostruário.

Susie continuou tagarelando quando entramos novamente no estúdio. Ela se sentou ao meu lado no sofá, concentrada em explicar sua árvore genealógica. Eu me perdi em alguns momentos, até que fui salva pelo telefone. Dali a pouco, o rapaz que Gancho tatuara veio até a recepção. Estava com ar bastante satisfeito e notei que era parecido com Kevin e Louis.

— Viu, Susie? Não ficou ruim – disse ele, mostrando o leão chinês em seu braço.

Bem, para um iniciante, até que Killian se saíra muito bem.

— Ah sim, logo veremos se você amanhecerá sem um braço... – Susie comentou a esmo, antes de se voltar para o telefone.

— Ruby, esse é Hector – Gancho apresentou, capturando meus lábios em um rápido beijo – Ele é meio que meu mentor.

Hector era alto, parrudo e de cabeça raspada. Tinha olhos que sorriam e uma barba comprida no queixo. Conversamos por uns instantes, até que ele se afastou para preparar a sala para seu próximo cliente.

Me despedi de Susie e Killy tomou o lugar do carona quando entramos no carro.

— É um ótimo disfarce! – falei, animadíssima, pois gostara do pessoal do estúdio e já estava doida para conhecer Larry e a tia Cassie – Não sabia que aquele seu contato era descendente asiático... É a Hallie? 

— Não, é a irmã dela, a Kyra... Bem, ela é uma caçadora. Eu salvei a vida dela uma vez e ela estava me devendo.

Lancei a Gancho um olhar desconfiado, pois, sabendo o quanto ele fora mulherengo, imaginava que tivesse se envolvido com a tal Kyra. Ele apenas riu da minha expressão, dizendo:

— Ela era uma amiga, Ruby. Aliás, nem isso. Ela era fria e reservada; não compartilhamos muita coisa, mas quando eu cobrei a dívida, ela fez o melhor que podia.

— Você cobrou por salvar a vida dela? Por que não me cobrou quando salvou a minha?

— Ela disse que algum dia eu devia cobrar, pois se sentia endividada comigo – Gancho deu de ombros – Bem, não me fiz de rogado... Em todo caso, aquele detetive Babineaux não vai desconfiar de nada caso vier me investigar.

— Não mesmo – assenti – Eu queria ter visto seu apartamento.

— Ah não, está uma bagunça! Ainda não terminei de me instalar, mas os Chung me receberam de braços abertos...

Eu apenas sorri. Aquela mudança faria bem a ele, era distração suficiente para que não ficasse o tempo todo pensando em Amos.  

— E então, já encontrou um carro?

— Não... August queria que eu comprasse um jipe, mas não é a minha praia.

Bem, um jipe até que seria útil... Como Dean tivesse aconselhado que Gancho aposentasse o Impala, ele mandara o carro para Bobby consertar o motor e resolvera mantê-lo como veículo de coleção ou, como dissera, transporte para ocasiões especiais.

Estávamos a caminho de uma concessionária de veículos antigos, pois Killian queria a minha opinião, já que não conseguia se decidir. Na verdade, ele não estava lá muito disposto a abrir mão do Impala.

— Veja pelo lado bom, ao menos você mantém o carro em boas condições por mais algumas gerações da família – eu opinei e o vi concordar com a cabeça.

— Foi o que Liam disse.

— Por falar nele, como ficou a questão do pai de vocês?

Gancho coçou a cabeça, sua expressão era de irritação.

— Bem, Alexa se manteve inabalável na opinião de que não devíamos custear os gastos médicos. Liam acabou confessando que já ajudara o nosso pai outras vezes, meio que por desencargo de consciência. É claro que a Alexa não gostou nadinha...

— Puxa! Ele mantinha contato com seu pai sem que ela soubesse?

— Mais ou menos isso. Os dois meio que brigaram feio, então Alexa achou que seria bom que eles passassem uns dias sem se ver. Liam vai passar a noite de hoje no QG, mas me disse que, depois que Archie verificasse sua casa, iria para lá se tudo estivesse bem.

Assenti. Archie ainda não voltara ao QG quando eu saí, imaginei que a sua investigação estivesse dando trabalho.

— Eu espero que tudo se resolva... – disse – Mas e o seu pai, como ele está?

— Estável. Mas o médico nos disse que ele precisa urgentemente de cirurgia, então Liam e eu concordamos em pagar. Não vamos assistir à ruína do velho, embora ele tenha causado a nossa... – ele se voltou para mim, parecendo um tanto amedrontado – Isso é um problema pra você? Disse ao Liam que todas as despesas seriam por minha conta, para que ele ficasse bem com a Alexa.

— Killian, ele é seu pai apesar de tudo. Eu acho digno que você queira fazer isso – ofereci a ele um sorriso, pois era o melhor que eu podia fazer em sinal de suporte.

— É, de qualquer forma, ele vai pagar atrás das grades... – ele fungou como se estivesse emocionalmente abalado, mas não deixasse transparecer – A essa altura, Archie já deve ter retornado ao QG. Ele me ligou e disse que não vira movimentação na casa do Chapeleiro, mas pretendia questionar os vizinhos.

Assenti, pensativa. Jefferson desaparecera sem deixar rastros e eu me perguntava o que é que ele estaria aprontando naquele momento. Queria perguntar a ele por que é que se aproximara de Liam, mas imaginava que a resposta fosse tão óbvia que ele fosse se recusar a me dizer a verdade.

— Ruby, o que foi? Você parece nervosa.

Notei que apertava o volante com força, meus músculos tensos. Relaxei, soltando o ar que nem notara que retera.

— Não brigue comigo... – comecei e Gancho pousou os olhos em mim – Eu sabia que Jefferson estava em Seattle, muito antes de o encontrarmos em Horrorland. Lembra daquela nossa briga, quando você ficou com ciúmes de Grammy e o mandou embora do QG?

— Aham.

— Bem, eu saí com Ruppy para esfriar a cabeça e encontrei Jefferson e Grace em uma praça.

Killian deixou escapar um suspiro. Parecia entre irritado e desapontado.

— Você não me contou para que eu não fosse atrás dele, não é?

— Justamente. Não queria que perdesse as estribeiras com ele.

Gancho apenas riu de nervoso, assentindo como se compreendesse. Eu esperava que ele fosse ficar muito bravo, mas imaginei que agora não fizesse tanta diferença. Arrisquei uma informação a mais:

— Tem mais uma coisa: Jefferson frequenta a Universidade de Seattle. Ele me fez algumas visitas enquanto ainda podia me ver...

Eu queria contar a Gancho que Jefferson era meu professor. Já bastava a quantidade de segredos que eu escondia dele. No entanto, vê-lo reagir com expressão de raiva contida me fez pensar duas vezes.

— Você o vê com frequência? – ele perguntou e eu abanei a cabeça, me assegurando de que o meu tom de voz fosse firme.

— Não. Acho que ele percebeu que não pode sair ganhando... Quero dizer, depois do que fizemos a Finnian, Jefferson ia querer garantir que não chegássemos até ele.

Gancho soltou uma interjeição como resposta, mas soou um tanto descrente. É claro que eu não podia convencê-lo de que Jefferson desistiria de seu foco de obsessão, mas, por ora, era suficiente para que Killian não desconfiasse de meus movimentos. Ele pegou uma mecha do meu cabelo entre os dedos.

— Prometa que não vai me esconder mais nada.

— Se você prometer que não vai se enfurecer quando eu lhe contar algo. Temos de trabalhar seu controle emocional.

Gancho riu, concordando. Eu fiz a promessa, mas cruzei os dedos.

***

Após me fazer ir a três concessionárias, Gancho ainda não conseguira escolher um carro. Graham tentava convencê-lo a comprar uma van, mas Killian estava decidido a adotar um veículo de tamanho menor.

— Arranje uma bicicleta, Gancho – debochou Zoe – Eu posso lhe dar um sininho e duas rodinhas.

Killian fingiu considerar a proposta.

Freya e Ingrid preparavam a mesa para o jantar, enquanto Archie fora buscar comida com Regina. Ela andava desejando um tempero mexicano e voltou carregada de tacos, burritos e quesadillas.

— Ah, Mary ia adorar se estivesse aqui – Regina comentou, dispondo a comida em pratos de servir – Ela não é tão ligada à cultura mexicana, mas é tarada por burritos. 

— Ah, Regina, e eu sou tarado por aquela sua torta de maçã, quando é que eu vou ganhar uma? – Graham ia enfiando a mão em um dos pacotes, mas Regina lhe deu um tapa.

— Tire as patas sujas daí! Francamente, e ele ainda se vê no direito de pedir tortas...

Grammy saiu resmungando, pois Zoe o mandou lavar as mãos e exigiu que ele usasse máscara.

— A Zoe pelo visto se acalmou... – Freya me disse, ao que eu concordei, embora notasse que a ruiva se mantinha um tanto pensativa.

Quando Gancho e eu voltamos para o QG, encontramos Zoe à flor da pele. Desde a nossa aventura em Horrorland, ela andava muito preocupada com os deuses. Às vezes se isolava para discutir questões pessoais com Toth, mas parecia ter feito uma série de combinados com ele. Era de Zoe a responsabilidade em lidar com a bagunça deixada pelos deuses: já que ela estava sendo receptáculo de Toth, considerava que era seu dever influenciá-lo a fazer o que era certo.

— Nós não estamos lidando com um simples caso sobrenatural, estamos lidando com o equilíbrio da Terra e até do Cosmos – ela esganiçara, exaltada – E então, se Seth retomar o corpo de Brendon, ele vai querer vir atrás de Clem para consumir o restante das forças dela, você já pensou nisso, Gancho?

Não, ele não pensara.

Após o velório de Brendon, o corpo devia seguir para uma casa de cremação, onde suas cinzas seriam preservadas em um vaso canópico, a pedido do professor Alshayk. Obviamente, o corpo passara pela perícia, mas o médico legista não notara indícios sobrenaturais no mesmo. Embora os noticiários enquadrassem Brendon como fanático religioso, o professor Alshayk se assegurara de que ele tivesse um funeral honroso.

— ...e Toth me confirmou que, assim que o corpo de Brendon tornasse em pó, Seth não poderia fazer mais nada para tomar o mesmo – Zoe nos explicara, caminhando de um lado a outro enquanto seu cabelo se eriçava ante seu nervosismo – É claro que eu fui até lá para garantir que as coisas saíssem como o esperado, mas imaginem vocês que o carro funerário foi interceptado no caminho até a casa de cremação.

— Algum aliado de Seth levou o corpo – Killian dissera.

— Mas é claro, Sherlock Holmes! – a ruiva ironizara – Eu vou ter de contatar Hórus e Osíris. Toth está por dentro de todo o plano, mas ele diz que não fez mais do que prestar assistência... – ela suspirara profundamente, suas narinas dilatadas - Isso é um caso de bem-estar social, não posso permitir que os outros deuses trabalhem sozinhos para conter Seth.

— Zoe, deixe os deuses lidarem com a baderna! – a Regina aconselhara, mas Zoe não gostara, pois seus olhos se estreitaram e seu cabelo encrespou ainda mais – Hórus e Osíris dão conta, por que você insiste em se envolver?

— Porque eu me doei... Mas deixe para lá, vocês não vão compreender.

Como ninguém mais quisesse comentar, demos o assunto por encerrado. Agora nos servíamos da boa comida, conversando assuntos aleatórios. Quando chegamos à sobremesa (crepes de banana com calda de chocolate), Archie se dirigiu a mim e Gancho:

— Antes de vocês voltarem, eu estava comentando com a Regina que Jefferson se mudou de Everett. A princípio, notei que a casa estava silenciosa. Eu quero dizer, estava tudo fechado e sem nenhum movimento, e não havia carro na garagem. Então eu chequei com alguns vizinhos, assim como quem não quer nada. Fingi interesse na casa, como se quisesse saber se estava disponível.

— Não havia placa de “aluga-se”? – perguntei. Imaginava que Jefferson, embora fosse cheio de posses, não fosse se dar ao trabalho de comprar uma casa apenas para se aproximar de Liam.

Archie fez que não com a cabeça.

— Os vizinhos disseram que ele se mudou repentinamente, mas que provavelmente a imobiliária ainda não liberara a casa para outro locatário.

— Hum, você chegou a perguntar se eles conheciam o Chapeleiro? – Gancho mordeu um crepe e lambeu os lábios depois – Digo, talvez ele tivesse amizade com outro vizinho, ou alguma das crianças da rua fosse amiga de Grace.

— Eu não precisei perguntar. As pessoas com as quais conversei me disseram que Jefferson era antipático; em outras palavras, reservado e muito esnobe. Alguns nem mesmo sabiam que ele é um estilista reconhecido.

Gancho se mexeu desconfortavelmente no assento e me lançou um olhar.

— Como eu disse, ele se aproximou de Liam para colher informações a nosso respeito.

Assenti, enquanto Archie continuou:

— Liam me deu a chave da casa e eu verifiquei todos os cantos. Não encontrei nada suspeito e acho que não há perigo se ele e Alexa quiserem voltar para lá.

— Obrigado, Archie! Quando Liam chegar você pode dizer isso a ele – e Killian contou o que me dissera no carro, sobre Liam e Alexa resolverem dar um tempo.

— Bem, tudo haverá de se resolver, eventualmente – Regina fez carinho nos ombros de Killian, antes de recolher as embalagens vazias e levar os pratos sujos para a pia.

— Ruby, Jefferson ainda tenta contato com você? – Archie estava me perguntando, ao que eu me embaracei com a resposta, pois não estava esperando aquele questionamento – Penso que seria útil se nós soubéssemos por onde ele anda.

— Bem, ele com certeza tem meu contato, ainda que eu tenha trocado de número. Mas não, ele não me procura... – comecei, evitando contato visual, pois tinha certeza de que Archie perceberia que eu estava mentindo – Na verdade, antes de nós soltarmos Finnian, eu fiz um acordo com ele: em troca de o deixarmos em paz, ele tem de parar de prestar serviços a Jefferson. O Chapeleiro não vai mais ter acesso a informações por meio de Finnian.

Grammy soltou uma risada esquisita pelo nariz.

— Ruby, você acha que Finnian vai honrar o acordo? Não seja ingênua!

Dei de ombros, enquanto Killian concordava com Graham e Archie não manifestava reação. As garotas nada disseram, mas por suas expressões contidas eu pude perceber que pensavam o mesmo.

Depois que todo mundo dispersou, Regina me chamou em um canto da sala.

— Você tem de encontrar um meio de contatar Jefferson – falou – Não podemos comer mosca, temos de antever os próximos movimentos dele.

— Bem, Finnian tem de ser a nossa ponte – eu disse – Jefferson eventualmente voltará a dar aulas, mas eu preciso assegurar um canal de comunicação que não dependa da universidade.

Ela assentiu em concordância.

— Seria útil se eu pudesse me comunicar com ele através de uma bola de cristal ou coisa do tipo, mas duvido que Jefferson pudesse fazer qualquer mágica elaborada... – ela pôs uma mão no queixo, pensando – Como Finnian pretende manter contato, a propósito?

Eu não sabia. Finnian dissera que não podíamos nos arriscar a falar por telefone, uma vez que Jefferson o grampeara e sabia de todos os seus passos. Eu havia sugerido que arranjássemos celulares novos a que Jefferson não tivesse acesso, mas Finnian pareceu não confiar muito nisso.

— Bem, eu não faço ideia. Na verdade, estou achando que ele me passou a perna.

— Ele que não se atreva! – Regina ficou brava e estreitou os olhos como se estivesse prestes a fuzilar Finnian até ele virar torrada – Mas não podemos ficar nas mãos de Finnian, tampouco. Vou pensar em algo. Por ora, concentre-se em fazer Graham espirrar do modo certo.

Não pude evitar uma risada.

Depois que Gancho foi-se embora para a sua nova residência e Liam chegou no QG cumprimentando a todos, eu me dirigi até o dormitório para descansar a cabeça. Ruppy estava por ali brincando com uma lingerie vermelha, que eu imaginava que, ou fosse de Regina, ou de Freya. Qualquer que fosse o caso, uma das duas ia me matar quando descobrisse o estrago feito.

Dali a pouco Grammy apareceu me perguntando se eu tinha um creme hidratante. Me mostrou seu pescoço e percebi que sua pele estava cinzenta, fina e descamando.

— Deve ser o frio – constatei, entregando a ele o hidratante. Ele agradeceu e desapareceu no banheiro.

Fiquei deitada no dormitório escuro, ouvindo o som do chuveiro. Ruppy se enrolara como uma bola e respirava profundamente; eu comprara para ele uma cama, mas ainda assim ele preferia me usar como travesseiro. Na verdade, eu gostava da companhia. Agora que eu e Gancho não estávamos dormindo juntos, sentia falta de uma presença a mais na cama.

Comecei a pensar em Amos e naquele investigador. Por mais que Killian falseasse uma vida, eu não estava certa de que era suficiente. Nós éramos esquisitos e ele tinha um histórico. Precisávamos ser cautelosos.

Eu precisava de Jefferson.

Precisava me entender com Finnian, me fazer respeitar. Precisava, de uma vez por todas, ditar as regras do jogo. Mas isso era impossível, estando Finnian e Jefferson desaparecidos. O que é que eu podia fazer? Orar, talvez?

Foi então que uma luz se acendeu. Literalmente, pois Graham terminara o banho e viera se deitar.

— Foi mal, Ruby, eu esqueci que você estava aí! – ele se desculpou, me vendo deitada.

— Tudo bem, ainda não dormi... Grammy, como é que se invoca um arcanjo?

— Um arcanjo? – ele fez uma pausa, na qual bocejou longamente – Ah, Gabriel? Ruby, eu não sei invocar um anjo, quanto mais um arcanjo. Você devia perguntar isso a Zoe, ela deve saber.

Ele bocejou de novo e, antes que eu dissesse qualquer coisa, já estava roncando.

— Bem, não custa tentar – disse para mim mesma. Me levantei e ajoelhei ao lado da cama, depositando as mãos em posição de prece sobre o colchão. Limpei a garganta – Gabriel... Arcanjo Gabriel, receba esta oração. Peço uma orientação, um sopro de auxílio... Peço que venha ao meu encontro e que me guie, para que eu saiba vencer meus inimigos. Peço que me provenha os meios de contatar Jefferson e Finnian e que, por obséquio, me auxilie a lidar com eles.

Fiz uma pausa. Achei que Gabriel fosse gostar se eu usasse palavras bonitas. Pensei mais um pouco antes de concluir.

— Por último, peço que nos proteja e que não nos deixe esmorecer. Agradeço vossos ouvidos e vossa atenção – fiz o sinal da cruz e confesso que, por alguns instantes, aguardei, mas nada aconteceu.

Um vento forte chacoalhava as janelas e eu pensei ter ouvido um sibilo próximo à minha cama. Se parecia com o de uma cobra, mas podia ser o vento, ou os roncos falhos de Graham. Fiquei atenta, procurando a origem do som. Constatei que havia sido impressão minha e acabei por pegar no sono.

***

Fora uma noite esquisita. Primeiro eu sonhei com a Lady Gaga e ela estava tocando flauta, mas, em vez de música, produzia sibilos de serpente. Então ela largou a flauta e apareceu usando um imenso chapéu. Eu me vi diante de Jefferson, que escrevia palavras em uma lousa. Eu tentava ler, mas, por alguma razão, era incapaz de enxergar à distância.

Revirei na cama, acordando por breves instantes. Adormeci de novo e fui pega por outro sonho. Desta vez, eu cavava um buraco na terra com minhas próprias mãos. Dentro do buraco eu enterrava um espelho e uma pena de pavão, então me erguia e saía correndo, mas não sabia exatamente do quê.

Acordei e já era manhã. Minha cabeça estava pesada e eu sentia que não havia descansado propriamente, mas me forcei a levantar.

Liam, Regina e Zoe já estavam na cozinha, enquanto o restante ainda dormia. Conversamos rapidamente e Regina não deixou de notar que eu parecia exausta.

— Não dormi muito bem – falei – Fiquei sonhando uma porção de coisas sem sentido e ainda não sei o que fazer com relação ao Chapeleiro.

— Ruby, vá com calma. Você não deve se estressar à toa, nós damos conta de Jefferson.

— É, eu sei, mas não posso evitar me preocupar... Ontei à noite eu orei para Gabriel, mas acho que não coloquei fé suficiente.

Eu não era religiosa e não costumava fazer orações. Acho que estava esperando que Gabriel fosse brotar à minha frente, usando um manto branco e uma áureola prateada. Como isso não acontecera, eu presumia que ele não havia escutado a minha prece.

— Ruby, nem sempre eles respondem as suas orações de forma óbvia – explicou Zoe, nutrindo-se de pão com geleia de menta e hortelã – Você tem que estar atenta. Em todo caso, o que quer com Gabriel?

— Que ele me ajude com Jefferson. Em Horrorland, Gabriel me disse que estava me protegendo do Chapeleiro – expliquei – Bem, eu esperava que ele me desse um auxílio mais eficiente.

— Ah, bem, se você orou, a resposta há de aparecer. Mas não fique procurando, apenas esteja aberta.

Assenti. Enquanto dirigia até a universidade, me lembrei dos sonhos daquela noite, então me ocorreu uma coisa. Em Horrorland, quando a Lady Gaga nos convidara ao seu camarim, me dissera que Jefferson era o estilista que ia desenhar os chapéus de sua nova turnê. Depois Gabriel me confessara que a Lady Gaga fora uma ilusão criada por ele. Então, por que é que a falsa Lady Gaga mencionaria Jefferson se, na verdade, a verdadeira Gaga não contratara o Chapeleiro para estilizar seus chapéus?

— Pode ter sido uma mensagem de Gabriel... – disse a mim mesma.

A Gaga me dissera que tinha um encontro marcado com Jefferson em duas semanas. Ela até mesmo demonstrara interesse em me contratar como assistente dele. Me lembrei que ela pedira meu contato e que eu chegara a anotar meu número em um pedaço de papel, mas, claro, nunca recebera sua ligação.

— Talvez Gabriel quisesse que eu entrasse em contato através de oração – raciocinei em voz alta – Talvez, na extensão de seus poderes, ele possa criar condições favoráveis para que eu manipule Jefferson...

Eu esperava que alguma coisa me confirmasse que eu estava certa, porém, nada aconteceu. Então pensei no sonho: a flauta da Gaga produzia sibilos de serpente. Pensei em Jefferson, o Flautista de Hamelin; aquele que sabia o que dizer e como dizer para influenciar as pessoas. Mas talvez o sonho não dissesse respeito a Jefferson... talvez... talvez o sonho fosse sobre mim.

Talvez, como a Lady Gaga, eu tivesse que ser uma ilusão criada para entorpecer a mente de Jefferson. Eu devia encantá-lo com a minha música, mas no fim estaria bancando a serpente. Talvez eu pudesse trabalhar com Gabriel, criando meios de enganar o Chapeleiro. E se eu conseguisse manipular Finnian da mesma forma, tanto melhor.

Estava cansada de estar sempre atrás, sendo pisada por homens de palavras ocas e corações carentes. Gancho estava sofrendo e Finnian cuspia sobre o restante das ruínas que ele ajudara a destruir.

— Não vou deixar por menos – prometi a mim mesma – Aqueles dois não perdem por esperar.

Na faculdade, após meu primeiro turno de aulas, passei pelo auditório da disciplina de Jefferson. A porta estava aberta e eu espiei para dentro, esperando encontrá-lo, no entanto, a única pessoa na sala era um zelador. Me virei para ir embora e topei com o Reitor Jeffrey Lee Harris, que estava parado bem atrás de mim.

— Senhorita Lucas – ele cumprimentou, com aquele seu sorriso brilhante e o tom de voz sedutor –, procurando por alguém?

— Ah, Reitor... Eu estava procurando pelo Sr. Bornofen, mas soube que ele cancelou as aulas da semana...

— Bem, suponho que quisesse tratar assuntos acadêmicos?

Franzi a testa. Ora, mas o que mais eu poderia querer com um professor? Certamente ele achava que eu era mais uma daquelas alunas apaixonadas por Jefferson.

— Eu esperava que pudéssemos discutir a minha situação na disciplina – expliquei, tentando soar verdadeira na mentira – Eu tive problemas pessoais e as minhas notas estão um pouco afetadas...

— Ah... Bem, é uma pena que o professor esteja ausente – ele balançou a cabeça com uma expressão consternada – Sinta-se aberta a me procurar, caso ele não resolva o seu problema.

Agradeci e vi o homem se afastando calmamente, cumprimentando professores e alunos no caminho.

— Que estranho! – resmunguei.

Por que diabos um Reitor iria se envolver com os problemas dos alunos? Talvez ele apenas estivesse sendo educado, afinal.

— O que é estranho?

Senti um arrepio na espinha. Me virei, dando de cara com os olhos azuis vibrantes de Damon. Ele sussurrara no meu ouvido e eu me assustei.

— Damon! Mas que merda!

— Desculpe, não resisti – ele riu. Estava enfiado em um terno azul-marinho e penteara os cabelos com gel – E então, não estou irresistível?

Ele deu uma voltinha, sorrindo como um ator de TV.

— Ah sim, Éden deve ter adorado! Aonde vai assim?

— Já fui! – ele passou um braço por meu ombro e saiu me puxando em direção à saída – Adivinhe quem vai trabalhar para a Google? Eles me adoraram!

Damon cursava administração de empresas. É, não combinava muito com um vampiro, mas ele já passara por uma centena de profissões ao longo dos séculos.

— Eu quero dizer, eles seriam loucos se me recusassem – ela ia dizendo, tão cheio de si que não era difícil compará-lo a Gancho – Ah, Ruby, seu amiguinho aqui fará fortuna, escute o que estou lhe dizendo... Enfim, por que é que você estava conversando com aquele Reitor e o que é que estava estranhando?

Expliquei o que acontecera e Éden pegou o final da conversa quando nos encontrou meio ao corredor.

— E por que é que você estava procurando o Engomadinho, vulgo, Caçador-Que-Tentou-Nos-Matar, se ele te persegue? – ela me questinou e eu expliquei rapidamente para que precisava de Jefferson.

— Uou, uou, uou, calma aí, mocinha! – Damon ergueu um dedo para mim, tal como se fosse um pai censurando a filha – Você está brincando com fogo! Diga a ela, Éden.

— Ruby, você está brincando com fogo! Não se pode confiar naquele homem.

— Como vocês o conhecem, afinal? – perguntei, pois eles não tocavam no assunto, mas mencionaram que Jefferson por muito pouco não matara Éden – São íntimos ou coisa assim?

Damon mentiu sem fazer o menor esforço, o que soou como uma piada.

— Nós o encontramos a esmo quando saímos para passear e caçar vagalumes no mato.

— Ah sim, obra do acaso, não?

— Pelo amor de Deus, Damon, ela é nossa amiga! – Éden revirou os olhos e enganchou meu braço com o seu – Aquele homem armou uma arapuca para nós e eu caí feito uma patinha. Felizmente, Damon chegou a tempo e Jefferson, que não é nada burro, saiu com o rabo entre as pernas quando percebeu que não era páreo para dois de nós.

— O que ele queria com vocês? – franzi a testa, sem entender por que é Jefferson daria algum tempo para que Damon atrapalhasse seus planos – Ele hesitou em matar você?

— Ele me torturou. Queria saber quem era a bruxa que enfeitiçara a minha lápis-lazúli – ela agarrou o pingente em seu pescoço, a pedra que a protegia da luz do sol. Damon tinha uma pedra igual no anel que usava – E não me pergunte por quê. Eu disse a ele que a pedra viera de um fornecedor e que eu não a conseguira diretamente de uma bruxa, mas ele não acreditou.  

Estranho. O que diabos Jefferson ia querer com uma bruxa? Talvez ele quisesse caçá-la? Mas quando é que alguma coisa relacionada ao Chapeleiro fazia sentido?

— Nós não queremos que você se machuque, amiguinha – Damon pegou meu queixo entre o indicador e o polegar – Mas, se for mesmo importante, nós podemos tentar rastreá-lo pelo cheiro.

— Ah, deixe para lá, não tenho nada com o cheiro de Jefferson...

Eles me convidaram a almoçar, mas eu disse que ia para casa. Estava a caminho do estacionamento quando um zelador atravessou na minha frente com o carrinho. Parei de supetão e estava prestes a xingar o indíviduo quando percebi que o conhecia. Era um idoso, o mesmo que eu já vira no hospital e que fora atropelado por Damon e Éden quando Gancho e Finnian se estapearam no corredor. Ele usava roupas muito justas e tinha uma barriga saliente que ficava para fora da blusa.

— Gabriel?

— Olá, queridinha! – ele cumprimentou, sua voz seca e fanha. Era um bom disfarce: eu não saberia quem ele era, caso já não soubesse que se disfarçava de zelador para me vigiar – Você é difícil de acessar...

— Bem, eu deixei a porta aberta, como Zoe orientou.

— Ah não, você é muito descrente! Eu teria de dançar nu na sua frente e nem assim você me enxergaria... bem, suponho que não seria uma atitude muito ética... – ele bateu uma palma na outra, animado – Ora, mas foram belas as palavras que você direcionou a mim, fiquei lisonjeado. É claro, você pode se esforçar mais da próxima vez, tente um pouquinho de fé e confiança.

— Não me julgue, não sou lá muito devota... – eu agarrei as mangas da sua camisa, visivelmente animada – E então, você pode atender a minha prece? Pode me ajudar com Jefferson?

— Ah sim! Eu devia ter trago uma auréola, assim passaria uma melhor impressão – ele olhou para ele mesmo e para o carrinho de limpeza, antes de continuar – Como sabe, sou um soldado de Deus, mas não tenho permissão para me envolver diretamente com meus protegidos... isto é, aqueles que oram para mim... Mas eu tinha de vir, não é? Ah sim, eu tinha! Para lhe dizer isto: não vá atrás de Jefferson— subitamente, ele ficou muito sério – Esqueça! Não é esse o caminho! Essa é a mensagem do Arcanjo, agora me dê licença.

— Espere aí – me coloquei na frente do carrinho, impedindo sua passagem – Isso é tudo o que tem para me dizer? Até onde eu sei, você e Jefferson têm um histórico, acho que é o momento de você me contar.

Ele revirou os olhos e ajeitou os fios de cabelo branco que escapavam de seu boné.

— Humanos, por que tão insistentes? Escute aqui, lindinha, eu sou um arcanjo e você me invocou. Não me leve a mal, mas não está em posição para questionamentos – ele juntou as palmas das mãos e me ofereceu um sorriso que tinha intenção de parecer sereno, mas ficou parecendo jocoso – O Arcanjo Gabriel lhe concedeu uma resposta. Agora, aceite-a sem reclamações e até logo, queridinha!

Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele desapareceu no ar com carrinho e tudo. Praguejei mentalmente. Gabriel não se dispunha a me ajudar e, mesmo que quisesse, não poderia interferir diretamente. Talvez eu devesse bancar a crente e aguardar maiores orientações através de sinais.

E embora algumas pessoas me desaconselhassem a ir atrás de Jefferson, eu não podia me permitir negar a minha intuição. Talvez fosse isso que as cartas estivessem dizendo. Enquanto um por cento dos fatores me orientavam a esquecer, os outros noventa e nove me encorajavam a insistir.

Suspirei. Teria de prestar uma visita a Dorothea, ela saberia onde encontrar Jefferson. Atravessei o estacionamento e estava a meio caminho do carro quando Cherry me alcançou.

— Um cara de capuz e óculos pediu que eu lhe desse isso – disse ela, me entregando um discreto pacote de papel – Não pude ver em detalhes, mas acho que era aquele jornalista que nos entrevistou no hospital.

— Ele disse alguma coisa? – perguntei, depositando o pacote sobre o capô do carro, meio em dúvida se devia ou não abrir.

Cherry negou com a cabeça. Ela era mesmo ingênua: saíra carregando um pacote de conteúdo duvidoso que um desconhecido entregara a ela. Talvez eu fosse ainda mais irresponsável, pois decidi rasgar o papel ali mesmo, no meio do estacionamento. 

— Ele só pode estar brincando! – exclamei.

Finnian me mandara um laptop infantil do Batman.

Cherry estava rindo. Eu abri a tampa em formato de morcego e uma música desafinada começou a tocar. Se parecia com aqueles antigos jogos de arcade Uma animação em pixels do Batman passou pela tela.

— Eu sou o Cavalheiro das Trevas! – a voz de jogo falou – Vamos lutar contra os vilões de Gotham City! Pressione enter.

Obedeci e o Batman desapareceu da tela, dando lugar às palavras: VAMOS COMEÇAR!


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Notas finais do capítulo

Quem adivinha qual vai ser o apelido de caçadora da Kyra?
No próximo capítulo teremos um caso sobrenatural. Dica: a criatura apareceu no capítulo da pirâmide.
Espero que os fantasminhas ainda estejam por aí acompanhando.
Até a próxima e beijinhos das Mrs Jones ^.^



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