'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 26
Entre Deuses & Mortais


Notas iniciais do capítulo

Olááá, leitores que ainda me acompanham! Vejam quem se ergueu das profundezas e deu as caras após mais de um ano de hiato!
Eu esperaria ser espancada, mas as poucas leitoras que me restam estão desesperadas demais para até mesmo ousarem me agredir hehe.
Enfim, retornei firme e forte e espero permanecer assim, após um longo período de abandono das fics que tanto amo e às quais não me dediquei como deveria, por simples desânimo, preguiça e falta de inspiração. Pois bem, retorno com três novos capítulos, a começar por este, que foi reformulado e modificado trocentas mil vezes até chegar a esta forma final que vos apresento.
Espero, de coração, que tenham um bom entretenimento. Precisei dividir a resolução da história dos deuses em três capítulos, pois não consigo ser sucinta e escrevi um documento com mais de 25.000 palavras hehe. Então, retorno amanhã, à noite com a segunda parte.
Boa leitura!



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03h00min

Pátio de carga e descarga: agrupamento de caixotes à esquerda do caminhão de reciclagem

 

Deuses?!— perguntou a voz sonolenta e rouca de Bobby, entre os ruídos estáticos da ligação – Egípcios?! Vocês só podem estar brincando!

— É, Bobby, eu bem gostaria que tudo não passasse de uma anedota, mas não é esse o caso... – Gancho respondeu. Coçou a cabeça, como usualmente fazia em situações altamente estressantes – O que é que você sabe sobre eles?

Bem, depende... De quem estamos falando? Espero que não se trate do panteão inteiro...

— Até o momento, cinco. Ísis, Osíris, Néfts, Anúbis e Hórus.

Deus do céu! Eu normalmente não me preocuparia com eles, mas se a situação os aponta como culpados, terei de rever meus conceitos— Bobby soltou um longo bocejo, então se ergueu de uma cama que rangia e puxou uma cadeira num movimento brusco – Bom, resumindo, Ísis, Osíris e Néfts são irmãos. Os dois primeiros são casados; Néfts era esposa de Seth, o quarto irmão e deus da guerra, cuja alma jaz no submundo. Como sabem, lendas são mutáveis e variam. A versão mais difundida da história diz  que Seth assassinou Osíris por inveja e ciúmes do relacionamento do irmão com Ísis. Seth era apaixonado por ela...  

“Osíris governava como faraó; foi ele quem ensinou ao povo egípcio as técnicas de agricultura e domesticação de animais. Seth governava o deserto, o que não era de seu agrado. Ele queria ascender ao poder e usurpar o trono do irmão. E assim o fez. Acabou por enganá-lo e trancafiá-lo num sarcófago, que lançou ao mar. Dizem que o pranto de Ísis pelo marido morto criou o Rio Nilo. Por dias e noites ela procurou pelo amado; quando encontrou o cadáver, concebeu um filho com o mesmo: Hórus.”

— Mas que doentio! – resmungou Regina, enojada – Não bastava o incesto, ainda são adeptos de necrofilia?

Bobby continuou. Folheava páginas.

— Ísis manteve o filho escondido de Seth até que o menino crescesse e lutasse pelo trono que era seu por direito. Osíris foi ressuscitado e, como deus do submundo, encarregado de julgar as almas dos mortos. Seth acabou por ser morto e Hórus foi elevado à posição de representante dos deuses. Acreditava-se que os faraós eram a encarnação de Hórus sobre a Terra.

— E quanto a Néfts e Anúbis? – perguntou Regina, agarrada a um Grammy que a aquecia.

Anúbis é fruto do romance de Néfts e Osíris.— respondeu Bobby, aparentemente coçando a barba. Houve a sucção de um abridor numa tampa e logo em seguida ele tomou um gole do que imaginei ser cerveja – Quando Osíris foi morto, Néfts deu total apoio a Ísis, voltando-se contra Seth. Anúbis nunca representou perigo, foi ele quem preparou o corpo morto do pai, criando a primeira múmia. Era ele quem introduzia os mortos ao além e protegia seus túmulos. Se querem saber minha opinião, é com Ísis que precisam ter cuidado; ela é versada em magia. Os outros... bem, acredito que não há com o que se preocupar, além de força sobre-humana.

Gancho vincara a testa, confuso.

— Tá, Bobby, mas se o vilão da história é Seth e o cara tá morto, por que os bonzinhos resolveram passar para o outro lado? 

Talvez a mesma história de sempre: eles não são mais cultuados pelos humanos, precisam de energia para manter-se vivos e imortais. Se orações não suprem essa energia, eles a conseguem praticando canibalismo.

Estremeci. A imagem de uma pilha de corpos numa bandeja perpassou minha mente como um flash.

— Algum palpite para a preferência por criancinhas? - indaguei, tentando não pensar que elas pudessem estar mortas.

— Crianças primogênitas, mais especificamente – completou Regina.

Bem... vocês conhecem a história dos primogênitos... Eu diria que se trata de uma vingança, mas daí a terem preferência por crianças... Não sei o que pensar.

— Okay, Bobby, mas como a gente mata essas coisas?! – Zoe não parava de torcer uma mecha de cabelo. O fato de terem marcado os primogênitos a aterrorizava.

Vocês não vão gostar...— Bobby ainda revirava páginas e praguejou quando alguma coisa caiu – Segundo registros antigos, deve se encravar uma estaca no coração do deus ao mesmo tempo em que se entoa um cântico de envio ao submundo. Mas esta não é nem a parte mais difícil... A estaca precisa ser feita da madeira de uma tamareira, uma tradicional árvore egípcia, e não vai ser nada fácil encontrar uma. A madeira tem que vir de uma tamareira que dá frutos e... bem, segundo meu livro de botânica, essa árvore demora de cento e cinquenta a duzentos anos para produzir as primeiras tâmaras...

— PUTA QUE PARIU! – berrou Regina e Grammy pulou de susto – Onde diabos vamos arrumar uma tamareira anciã?!

Na África, eu diria, mas talvez seja possível localizar uma pelas proximidades.

— Agradeceríamos se fizesse isso, Bobby, nosso acesso à internet foi bloqueado – disse Gancho.

E vai ser questão de tempo até bloquearem as linhas telefônicas também...

— E o cântico, Bobby? – questionei, quando ninguém pareceu se lembrar de perguntar.

Proveniente do Livro dos Mortos e entoado em língua original.

— OI?! – esganiçou-se Regina, e Grammy tapou os ouvidos de modo a poupar-se de sua entonação alterada – Como se qualquer um de nós fosse fluente em egípcio antigo!

— Isso é o de menos, Regina! – resmungou Killian, revirando os olhos como se recusasse a acreditar que essa fosse a maior preocupação dela -  Por favor, Bobby, me diga que você tem o livro!

Bem que gostaria... Eu diria para procurarem numa biblioteca, mas duvido que qualquer uma delas possua um exemplar tão específico.

— Na melhor das hipóteses encontramos a versão PDF na internet – sugeriu Grammy.

Sinto informar, mas nenhum dos feitiços do livro foi divulgado na rede... São mandingas muito poderosas, sabem? Poderosas demais para circularem livremente por aí.

Ante as expressões desanimadas e desesperadas, tive uma iluminação.  

— Uma biblioteca normal não teria um exemplar, mas e se fosse a biblioteca de uma universidade?!

— É isso! – Gancho abriu um sorriso – A biblioteca da...

— ... faculdade de Egiptologia! – completei.

— Ah, garota, é isso aí! – Regina me deu um tapa no ombro que quase me atirou por cima de Zoe.

— Regina, quer parar de gritar no meu ouvido?! – ralhou Graham, livrando-se dos braços dela, que estavam ao redor de seu pescoço.  

— Ui, foi mal, nervosinho! – ela lhe mostrou a língua – Ih, olha lá a Alexa! Deu merda!

De fato, Alexa vinha aos trancos e barrancos com um Ian agarrado ao seu pescoço. A senhora Delgado vinha logo atrás, correndo tão desajeitada quanto uma gazela reumática para alcança-lá.

— Por que diabos vocês desaparecem sem dar satisfação?! – guinchou Alexa, alto o bastante para Bobby escutar e perguntar o que estava acontecendo.

— O que foi, Alexa?! – assustado, Gancho a amparou, pois ela estava com a aparência de quem ia desmaiar.  

— Liam! Liam e os policiais desapareceram!

***

03h17min

Conexão Marysville – Seattle: 21 km da Universidade de Seattle; 20 km do QG

— Seu namorado é um tanto possessivo, não? – ia dizendo um Dean irritadiço, de narinas infladas.

Killian o agarrara pelo colarinho, ameaçando matá-lo caso algo me acontecesse. Sentada no banco traseiro do Impala, tentava não rir da expressão do loiro. Digamos que a ameaça surtira efeito: ele realmente parecia esforçar-se em não me colocar em risco, até dirigia dentro do limite de velocidade.

— Um pouquinho. – respondi – Ele... não lida muito bem com meus atos heróicos.

— Pois devia! – retrucou ele – Ele não é seu dono!

— Olha só quem fala! – Zoe lixava as unhas; o som da lixa parecia atuar como uma espécie de mantra, acalmando-a – Mas sou obrigada a concordar, Ruby. Killian é muito superprotetor, eu me sentiria sufocada nesse relacionamento.

Fui obrigada a concordar, mas dei o assunto por encerrado. A última coisa de que precisava era de pessoas dizendo o quanto Gancho podia ser teimoso em suas tentativas de me poupar dos riscos. Havia coisas mais importantes com as quais me preocupar.

Como tivesse sido eu a sugerir que procurássemos o livro na Universidade, insistira terminantemente pra que Zoe e Dean me levassem com eles. Ansiava em escapar da aura ruim daquele parque. Assim que alcançamos a rodovia, respirei aliviada. Tentava me conectar à internet, mas o sinal ainda era muito instável.

— Será que dá pra você parar com essa maldita lixa? – pediu Dean, não muito afável. Zoe o fuzilou com o olhar e, provocando-o, passou a lixar mais rápido.

Tentei desviar o foco para mim, visando evitar uma possível briga.

— Vocês acham que há tamareiras nessa floresta? – referia-me à floresta pela qual a estrada atravessava. Não esperava encontrar tamareiras por ali, mas não consegui pensar noutro assunto.

— Se bem entendi, tamareiras são provenientes do deserto – Zoe virou o pescoço para me olhar –, de forma que não nasceriam numa floresta boreal.

— Esperemos que o velho Rumplestiltskin resolva esse problema – disse Dean – Nem quero pensar no que faremos se não encontrarmos o tal livro. Hey, Ruby, como é que você sabia da Faculdade de Egiptologia?  

Zoe respondeu, antes que eu o fizesse.

— Meu querido, a Ruby é uma universitária! É de se esperar que ela tenha cogitado seguir carreira nessa área.

— Por quê? – questionei.

— Você é uma pesquisadora, oras. Tem perfil de historiadora!

Nunca pensei por esse lado...

Dean me olhou pelo retrovisor.

— Tem certeza de que eles guardam documentos históricos lá?

— É de se esperar que sim, Dean! – respondeu Zoe, de forma grosseira. Ao que eu fui mais gentil em minha réplica.

— É uma hipótese... Penso que egiptólogos não podem exercer sua profissão sem estudar a fundo os achados arqueológicos da história do Egito. Então, sim, talvez tenham uns papiros antigos contendo os feitiços.

O loiro se mostrou confuso.

— Peraí, não íamos atrás de um Livro dos Mortos?

— Acontece que os egípcios não escreviam livros, Dean! – retrucou Zoe e, embora não pudesse ver sua expressão, imaginava que estivesse revirando os olhos – Santa ignorância!

— Cale a boca, eu não perguntei a você!

— O Livro dos Mortos é na verdade uma coletânea de papiros, Dean – expliquei, lembrando-me do que Bobby dissera quando o interpelei com inúmeras perguntas sobre o livro – Os egípcios escreviam encantamentos e orações, que depositavam junto às múmias para que a alma do morto seguisse caminho ao submundo.

— Aah! – fez ele – Em A Múmia, o livro era realmente um livro.

— Era um filme, Dean! – falou Zoe, mais impaciente do que de costume – Óbvio que precisaram criar um livro de aparência sinistra para dar mais emoção às ações.

— Mas que droga! Pare com essa maldita coisa! – ele agarrou a mão de Zoe bruscamente, atirando a lixa pela janela. Preparava-me para intervir na briga, mas a ruiva não se afetou nem um pouco. Ao invés, apanhou outra lixa.

— Não faz mal – ela lhe disse – Tenho mais cinco de reserva.

***

03h40min

Universidade de Seattle: fronteira ala leste – floresta

— Não acredito que estamos fazendo isso – murmurei. Não me sentia confortável agindo como fora da lei.

— É por uma boa causa! – justificou Zoe, tornando a apanhar a lixa de unhas – Me dê sua mão, não tenho mais o que lixar.

— Dean está fazendo sinal. Vamos!

Ela ainda revirou os olhos antes de descer do carro. Dean me ofereceu a mão quando escalei o pequeno muro; havia um amontoado de arbustos e plantas do outro lado, o que dificultava um pouco a descida. Zoe resmungou ao arranhar uma das pernas, mas saltou o obstáculo com a rapidez de um profissional. 

Metido num uniforme de vigia noturno, Dean caminhava em ar de confiança pelas vias desertas da Universidade de Seattle.

— Como exatamente você roubou esse uniforme? – questionei, curiosa, pois a ação levara apenas quatro minutos.

— Foi simples: disse ao cara das câmeras de segurança que estava com um problema no carro e que ele podia pegar a ruiva se me ajudas...

— O QUÊ?! – explodiu Zoe e instintivamente lhe tapei a boca. Ela se livrou da minha mão e enfiou o indicador no ponto entre os olhos de Dean – Como ousa me tratar como moeda de troca?!

Eu e minha boca...

Impacientando-se, Dean agarrou a mão da ruiva e a arrastou caminho afora, ameaçando amordaça-lá se fizesse escândalo.

— Eu desliguei as câmeras, mas isso não nos livra de topar com os outros vigias – ele disse entredentes, irritado – Fique quieta, pelo menos uma vez na vida! Ruby, tome a frente; finja que é sonâmbula, se alguém abordá-la.

— Ah, que ótima ideia, Dean! – falou Zoe com sarcasmo, soltando-se das mãos do loiro – Até parece que as pessoas são tão burras a ponto de acreditar numa asneira dessas.

— Ótimo, então devíamos dizer que a Ruby nos convidou a um ménage, tenho certeza de que soaria como uma desculpa plausível!

— Calem-se vocês dois! – interferi, antes que aquele falatório nos denunciasse – Dean, em que exata localização estão os vigias?

— Eu não sei, eles ficam se movendo! Apenas evite as vias principais, sim?

Segui em frente, tendo o cuidado de observar as esquinas antes de cruzá-las. O Departamento de História ficava alguns metros para leste, um prédio de aparência suja com uma fachada de tijolos cor de ferrugem. O fato de haver muitas árvores pelo caminho nos deixava em vantagem; nos esgueiramos pelas sombras das mesmas quando atravessamos o jardim principal que interligava as vias de acesso aos prédios. Nossa caminhada era atrasada pela necessidade de darmos passos pequenos e calculados, evitando produzir ruídos. Em compensação, o trajeto até o Departamento de História era curto, de modo que alcançamos o prédio em poucos minutos.

Dean nos fez parar sob um salgueiro antes de alcançarmos a entrada do prédio. Nos abaixamos por trás do tronco da árvore, observando.

— Vi uma vigia aí pela câmera – ele disse – Temos de esperar até que ela siga o final da alameda.

E assim o fizemos. A mulher passou tranquilamente pelo nosso esconderijo, assobiando o que me pareceu uma música natalina. Como Dean afirmara, seguiu a alameda, o que nos deu tempo de esgueirar até o prédio.

— Muito bom! Até aqui fomos bem sucedidos! – murmurou Zoe, muitíssimo satisfeita. Sua expressão alegre se desfez, porém, quando ela olhou para o loiro. Também o fiz, percebendo por seu semblante que havia algo de inconsistente em nosso plano – Dean, não vá me dizer que não roubou as chaves!

— Bem vi que estava esquecendo algo...

— Puta que pariu! – deixei escapar – A vigia está voltando!

— Cacete! – resmungou Dean – Corram!

Em desabalada carreira, alcançamos a esquina do prédio bem a tempo de sair das vistas da mulher; subindo a alameda – que terminava no Instituto de Ciências Biológicas – ela passou a centímetros de onde nos encontravámos, ocultados por um agrupamento de arbustos.  

— Caralho! –  Dean soltou a respiração, que prendera durante a corrida – Essa foi por pouco!

— Vamos – disse Zoe –, pelos fundos!

Nos mantendo próximos à parede de modo a não sermos notados, alcançamos a parte traseira do prédio, na qual havia uma área de convivência com mesas de guarda-sol azul turquesa, cercadas por um bagunçado e amplo jardim. 

A porta dos fundos era relativamente simples, dissera Dean, com uma...

— ...fechadura circular facilmente violável. Zoe, grampo.

— Você devia carregar seus próprios grampos, pra variar – a ruiva resmungou, retirando um grampo do meio das madeixas (que, aliás, estavam perfeitamente arrumadas, apesar do vento).

O Winchester mais velho era absurdamente exibido quando se tratava de demonstrar suas habilidades criminosas. Com movimentos quase teatrais, enfiou com destreza o grampo na fechadura, destrancando-a em questão de segundos. Ele sorriu afetadamente, notando que eu me impressionara. O pensamento de que um alarme poderia nos denunciar só me ocorreu quando a fechadura se abriu com um clic; felizmente, a única coisa a fazer barulho foi uma corrente. O sorriso de Dean se desfez com a mesma rapidez com que surgira. Ele enfiou a mão pelo vão entreaberto da porta, tentando alcançar o trinco da corrente; Zoe e eu nos entreolhamos, a ruiva refreando uma risada, enquanto eu lançava olhares ocasionais pelos arredores, esperando ser pega a qualquer momento.

— Zoe, elástico – pediu Dean, erguendo a mão grande e áspera. Ao que Zoe se voltou para mim, repetindo o mesmo gesto.

— Ruby, elástico.

— Não tenho! 

— Como não? Você é uma caçadora!

— Pesquisadora – corrigi – E não estou acostumada a cometer atos ilegais. 

— Shhh! – fez Dean e nos calamos, alarmadas – Estou pensando, fechem a matraca!

— Você me assustou! – Zoe fez menção de bater nele, mas refreou o movimento, provavelmente para evitar fazer barulho.

O loiro se abaixou, desamarrando um dos sapatos. Retirou o cadarço, amarrando uma das pontas à corrente. Com a outra ponta amarrou a maçaneta, fechando a porta em seguida. Bastou girar a maçaneta para que o trinco da corrente se movesse, desengatando a mesma. Dean escancarou a porta, sorrindo de uma orelha à outra ao nos dar passagem.

— Eu teria feito em menos tempo – provocou Zoe, ao passar por ele. Até me esqueci de que ela era bruxa e poderia ter aberto a tranca sem grandes esforços.

Enfurecido, o Winchester contorceu a cara numa expressão de zanga misturada com impaciência.  

— E por que não o fez?! Aliás, não foi pra isso que eu te trouxe comigo?!

— Seu método me pareceu mais didático – retrucou ela, muitíssimo satisfeita em sua vingança – e a Ruby com certeza apreciou seu esforço.

Ele ainda ia dizer algo, mas se calou ante a minha expressão de “cale a boca e não discuta”.

Adentrei a vaziez da escuridão. Zoe praguejou alto ao trombar com a solidez de algo que se encontrava em seu caminho; se questionava quanto a acender as luzes ou se limitar ao facho difuso da lanterna do celular.

— Talvez devesse considerar facilitar nossas vidas, balbuciando um encantamento qualquer – sugeriu Dean, às minhas costas. Recolocava o cadarço com fúria, apoiando a lanterna entre o queixo e a omoplata.

— A solução mais viável nem sempre é a mais correta, Dean – respondeu ela, por fim considerando que não era seguro acender as luzes, ainda que estivessemos fora das vistas dos vigias.

— Desde quando se importa em optar pela solução mais correta? Nem parece a Zoe que eu conheço.

— Você não me conhece! Ruby, essa é sua área, onde é que ficam os documentos?

— Na biblioteca, suponho. Ou em acesso restrito, já que material de importância histórica requer manutenção específica. 

Ela assentiu, sugerindo.

— Devíamos nos dividir, agiliza a busca. Isto aqui é mais como um depósito, não?

Nos encontrávamos no que parecia uma coletânea de garagem entulhada com bazar de quinquilharias; uma sala mediana, com uma única passagem de ar. Provavelmente, era onde amontoavam as traquitanas descartadas como artefatos de importãncia histórica. Expliquei isso a Dean e Zoe, ao que esta murmurou um comentário sobre mofo, e aquele fez menção de furtar um conjunto de castiçais de ferro fundido, mas desistiu ao encontrar meu olhar de objeção.

A porta do depósito dava para um corredor estreito que se bifurcava. Dean tomou a esquerda, enquanto segui com Zoe pela direita. De teto baixo arqueado, o passadiço era amplo e suas paredes frias de lajota passavam a impressão de que se adentrava um longo túnel. De um lado e outro do corredor, pesadas portas de carvalho começaram a dividir espaço com artefatos decorativos e imitações desbotadas de pinturas famosas.

— São as salas de aula – eu disse – A biblioteca deve ficar no piso de cima.

— Pensei que tivesse dito que fez um tour pela universidade – falou Zoe, em ar de indignação por eu não saber me localizar.

— Pela universidade, eu disse, não pelos prédios.

As salas eram identificadas por plaquinhas plásticas de cor amarelada e um quadrado de vidro em cada porta permitia um vislumbre de seu interior. O piso superior era quase uma réplica do térreo. Após uma série de auditórios de História Geral e pelo menos meia dúzia de saletas antigas para o estudo de Monarquia Egípcia, topei com um par de portas duplas à esquerda de uma réplica de Faraó em tamanho real. Laboratório de Mumificação, indicava a mais próxima, enquanto a subsequente se identificava como Arquivologia.

— Tá legal, eu fico com as múmias! – exclamou Zoe, com a mesma animação de quem tirava folga numa quarta-feira.

Fiz biquinho.

— E por que é que eu tenho de ficar com os arquivos? – não sou lá muito adepta de estudar anatomia em cadáveres (principalmente se somam milênios de conservação), mas a ideia de ver de perto uma múmia me parecia mais interessante do que um bando de arquivos embolorados.

Você é a pesquisadora. Eu sou investigadora sobrenatural, múmias fazem parte do meu ramo de pesquisa.

— Ah sim, claro, como é que eu pude me esquecer... – resmunguei, encaminhando-me para as portas da Arquivologia que, surpresa nenhuma, estavam trancadas – Uma ajudinha aqui?

 É claro que Zoe já arrombara a fechadura do laboratório, de modo que abanou a cabeça quando se encaminhou em minha direção.

— Por que é que vocês não carregam seus próprios grampos, hein?

***

04h09min

Arquivologia: seção de História Egípcia, corredor 46597, armário 55, gavetas 01 a 27

 

A climatização da Arquivologia deve seguir os padrões de temperatura do Pólo Norte. 

— Deve ser por isso que os alunos de História são fanhos – pensei em voz alta, lembrando-me de um grupo de calouros que me abordara no jardim, certa vez. Na ocasião, me pareceu que eles estavam tirando sarro da minha cara; era apenas um caso conjunto de nariz entupido.

Soltei um pigarro. Devia me lembrar de adicionar pastilhas para a garganta na lista de Apetrechos Básicos para Caçada. Me ocupava em analisar gavetas na seção de História Egípcia. Basicamente, o conteúdo das mesmas se dividia em textos antigos e ilustrações explicativas. Estranhamente, as gavetas 05 e 06, que, conforme indicavam, deviam conter a coletânea de orações para a vida após a morte, estavam vazias. Imaginei que tivessem sido realocados para outra sala; um cofre, talvez, considerando-se o seu valor.

— Por que é que essa caçada tinha de ser tão complicada? – suspirei, endireitando-me, as pernas dormentes após passar um longo tempo agachada. Alguém bafejou no meu pescoço e gelei quando um par de lábios sussurrou em meu ouvido. 

— E aí, bonitona?

— PORRA, DEAN! – me contorci numa posição de defesa, após saltar quase meio metro – Cacete, quer me matar?!

Ele se aproximara sem emitir ruídos. Gargalhou.

— Foi mal! É por isso que não se mantém as costas para a porta, você devia saber.

— Caralho, achei que fosse um dos vigias. Cadê a Zoe?

— Entretida com a múmia do refrigerador. Ela quase parece esperar que a coisa vá criar vida.

 - Fascinante! – massageei meu pescoço, de modo a aliviar a tensão – Temos um problema: os papiros não estão aqui. Imagino que tenham sido removidos para um local mais seguro, longe das mãozinhas descuidadas dos calouros.

— Ah! Bom, sem problema. Que tal mandarmos Zoe nessa missão enquanto... – ele agarrou minha mão e amaciou a voz numa fajuta tentativa de me seduzir –  ...você e eu damos um passeio pelas redondezas?

— Francamente! – guinchei, reativa – Faça o favor de manter seu xaveco barato longe da minha pessoa! Ora essa, que audácia!

— Ah, não se afete! – ele fez biquinho – Funcionou com a Regina. E com a Zoe. Muito embora tenham sido elas mesmas a tomarem iniciativa.

— Meu nome não é Regina, muito menos Zoe. – me afastei, seguindo o corredor até o fim, para em seguida virar à direita – Por falar nela, por que não vai verificar se ela precisa trocar saliva?

— Prefiro beijar uma múmia de cinco mil anos!     

Ri.

— Não foi o que pareceu, naquela manhã em Burkittsville, quando você praticamente se atirou sobre ela.

— Não sei do que está falando. Olha, ilustrações do sexo primitivo!

Só fiz revirar os olhos.

A Arquivologia não era apenas uma sala de arquivos, era uma disciplina obrigatória na carga horária dos alunos, de modo que as estantes e armários de documentos dividiam espaço com uma lousa digital e um pequeno agrupamento de carteiras. Notei rabiscos numa das mesas e, ao aproximar-me, observei que eram símbolos hieroglíficos; entre eles, a cruz ansata. Havia um nome em letras garrafais em meio à transgressão de desenhos: Brendon Toth. Não me parecia muito inteligente se denunciar assim...

— BU! – alguém tocou as pontas dos dedos em minhas escápulas. Me arrepiei até a alma, repetindo a posição de defesa que assumira há pouco.

— DEAN, QUE CACE...  

— Olha a boquinha!

— Damon?! Que diabos faz aqui?!

Antes que ele pudesse responder, Dean deslizou em posição de defesa, uma arma em riste, apontada para o peito de Damon.

— Quem é esse aí?!

— Dean, abaixe a arma, é só o idiota do Damon.

— Idiota? Lindinha, assim você fere meus sentimentos... – ele botou uma mão no peito, fingindo exagerada indignação.

— Como foi que me achou? 

Damon sorriu de lado. Segurou meu queixo de forma afetiva.

— Fui fazer uma boquinha e senti seu cheirinho. Vim verificar se estava bem, já que também identifiquei a presença de uma bruxa – lançou a Dean um olhar desconfiado – e de um caçador.

O loiro retribuiu o olhar com tal ferocidade que, não fosse eu estar entre os dois, já teria metido uma bala em Damon.

— Ruby, quer me explicar quem diabos é essa pessoa?

Abri a boca para mandar Dean calar a boca e caçar algo útil para fazer, mas Damon se adiantou na resposta.  

— Damon Salvatore, líder dos vampiros CSC. CSC significa Consumidores de Sangue Chinfrim, não acho que esteja familiarizado com a sigla. Significa que meu clã não se alimenta de pessoas puras e inocentes, como a minha amiguinha Ru aqui. E, aliás, não precisa se preocupar, cara, Ruby e eu só compartilhamos a merenda. – ele se virou para mim, rugas de expressão na testa franzida – Não sabia que tinha trocado de namorado, o que aconteceu com o moreno ignorante?

Dean tentou conter uma risada, que saiu com o som de um pigarro.

— Cala a boca, Dean! – voltei-me para Damon – Eu não namoro essa pessoa! E pra sua informação, o moreno ignorante é meu noivo!

— Aah, desculpinha, não quis ofender.

— Mas que ele é ignorante, ah se é! – Dean sorriu largamente, ainda se contendo.

— Aah o que o Gancho diria se soubesse que a senhorita mantém amizade com um vampiro? – Zoe adentrou a sala repentinamente, assustando-nos.

— Não ouse contar a ele! – me esganicei, pensando no que aconteceria se a ruiva sequer cogitasse a hipótese de falar demais – Damon não faria mal a uma mosca.

— Não vamos exagerar, não é, Ruby? – ele me deu tapinhas no ombro. Foi então que notou minha vestimenta de Halloween – Quem diria, Edna Moda virou a Bruxa Má do Oeste e agora se dedica a estudar pergaminhos embolorados.

— A Bruxa Má do Oeste era verde – corrigiu Zoe, passando por nós para examinar de perto uma série de gavetas na seção de Arqueologia.  

— E você, que tipo de bruxa é? – questionou Damon, examinando-a de cima a baixo.

— Uma bruxa morta, se não se afastar de você!

Pulamos os quatro de susto.

— Éd! Cacete, fale baixo! – ralhou Damon, ao que Éden apenas sorriu com escárnio. Em ar de proteção, passou um braço pelos ombros do namorado, como que para mantê-lo longe de Zoe, evitando que a mesma o enfeitiçasse.

— Quem diria! – riu a ruiva, me lançando um olhar surpreso e provocativo – Ruby burlou a regra de ouro do Gancho ao se envolver com a tribo vampírica.

Eu devia matar Zoe! Damon e Éden imediatamente antipatizaram com ela: torceram o nariz quase ao mesmo tempo e Éden emitiu um muxoxo de insatisfação.

— Quem é a mosca morta? – perguntou a mim.

— ME CHAMOU DO QUÊ?!

— Cacete! Falem baixo, porra! – berrou Dean, contradizendo sua própria fala.  

— Olha aqui, rapaz, é melhor tirar essa garota daqui antes que eu enfie as unhas nos olhos dela! – ameaçou Zoe, erguendo um dedo na direção de Éden. Dean imediatamente se postou ao lado da afetada bruxa, como que para contê-la caso tentasse atacar Éden.  

— Vocês ouviram a ruiva, melhor irem caçar corujas no mato e nos deixar fazer nosso trabalho.

— E perder a diversão? – exclamou Éden – De jeito nenhum!

Damon me deu um tapinha no ombro.

— Diz aí, qual é o caso?

— Hum, crianças primogênitas sequestradas por deuses egípcios num parque de diversões.

— Um parque de diversões?! – se esganiçou o vampiro, feito uma criancinha feliz por ir ao circo; quase nem pareceu ter se preocupado com os primogênitos em si – Que incrível, estamos dentro!

— Nada disso! Meu namorado e o cunhado dele têm tendências assassinas quando avistam vampiros.

— Ah, meu Deus, que encantador! – Damon se indignou, revirando os olhos – E está noiva, você diz?

— Eu sei o que está pensando! Qualquer caçador ia querer dar cabo de vocês, não só o Killian.

Como uma confirmação do que eu acabara de dizer, Zoe lançou a ambos Damon e Éden um olhar feroz; em contrapartida, Dean apenas arqueou uma sobrancelha, parecendo decidir se eram confiáveis ou não.

— Que seja! – resmungou Éden, desgrudando-se de Damon e vindo em minha direção – O que procura aqui, afinal?

— Pergaminhos antigos, pertencentes ao Livro dos Mortos – cocei a cabeça, preocupada – Mas não estão aqui, alguém os removeu para outro lugar...

— Não estão aqui? E essa agora! – Zoe resmungou, irritada – Onde essa merda pode estar? Revirei o Laboratório de Mumificação e não encontrei mais do que artigos cientifícos sobre anatomia e técnicas de conservação e exumação de cadáveres.

Éden pigarreou, empertigando-se como alguém entendido do assunto.

— Documentos antigos são, com frequência, levados à sala de PCR no subsolo.

— PCR? – perguntou Dean.

— Preservação, conservação e restauro – explicou Éden, indo sentar-se à mesa do professor, na qual havia um laptop – Vez ou outra são levados para exibição no Museu de História Natural. Todo o acervo da Arquivologia se encontra registrado num inventário. Seja qual for o caso, terei a localização dos papiros em segundos... isto é, se a minha chave de acesso ao sistema não tiver sido desativada...  

Eu a encarei com expressão interrogativa. Ela sorriu.

— O que foi? Cogitei me formar Arquivologista, até me dar conta de quão tediosa é a profissão... Que sorte a minha, ainda tenho acesso ao inventário! Hum... os papiros que você procura se encontram na seção de História Egípcia, corredor 46597, armário 55, gavetas 05 e 06.

 - Você é deficiente auditiva ou o quê?! – perguntou Zoe com grosseria – Ruby já disse que os papiros não estão aqui! 

— Não é o que consta no registro – replicou Éden, mantendo a compostura – Se tivessem sido movidos, o responsável teria de declarar a localização dos mesmos.

— Se não estão aqui, foram extraviados! – sugeriu Dean, lançando para cima a lanterna que tirara do vigia – Simples assim!

— Por que alguém roubaria papiros embolorados? – questionou Éden.

— Para impedir o envio dos deuses ao submundo... – sentei-me à carteira estilizada por Brendon Toth, fixando o olhar nos símbolos que ele desenhara – Foi um aluno. Alguém que se sentou nesta sala e tramou um extermínio em massa. Alguém que invocou e tomou controle dos deuses. Alguém que planejou os mínimos detalhes... – percorri com o dedo médio as bordas desvanecidas da cruz ansata, meus olhos tão fixos no desenho que minha visão embaçara. E então, como um flash de memória, pensei ter visto grandes mãos masculinas em lugar de minhas mãos; calçadas em luvas brancas, elas analisavam com cuidado uma série de hieróglifos estampada em um papiro carcomido pela metade. Pisquei e a imagem desapareceu no mesmo momento – Foi Brendon Toth...

Ergui a cabeça. Os outros quatro me encaravam em silêncio, parecendo um tanto assombrados.

— O que foi? Tive uma intuição... – e, como ainda me fitassem de modo estranho, me apressei em acrescentar – Além do mais, esta é a única carteira rabiscada de símbolos egípcios... me parece óbvio que tenha sido...

Damon se mexeu.

— Hum, talvez eu devesse dar uma olhada nas gavetas vazias... Você poderia me mostrar?

Ouvi Dean cochichar algo a Zoe quando alcancei com Damon a seção de História Egípcia. O vampiro arreganhou a gaveta 05 e enfiou a cabeça dentro dela, inspirando profundamente.

— Argh! Cheira a formol e mofo de sepultura!

— Já esteve em uma sepultura antes? – perguntei, divertida, tentando ignorar os cochichos; talvez fosse minha imaginação, mas soavam preocupados.

— Fui enterrado vivo no início do século 19, por uns paspalhões que não sabiam como me matar. Três dias eu passei sob a terra, pensando morosamente na impossibilidade de morrer... Hum... vou farejá-los, com sorte ainda se encontram no campus...

Quando Damon saiu inspirando o ar como um cachorro farejador, retornei ao restante do grupo fingindo não notar o estranhamento que se estabelera entre nós. Dean tornava a brincar com a lanterna, lançando-a para cima, enquanto Éden fechava o laptop e examinava as unhas. Zoe foi a única a retribuir meu olhar; ela me ofereceu um sorriso alegre e, eu diria... esperançoso...

— Uff! – as narinas de Éden haviam se dilatado – Mas que cheiro... ai que horror! Alguém se entupiu de torta de abóbora no jantar...

Refreei uma gargalhada. Dean se encontrava a três estantes de distância, fingindo estar entretido com o conteúdo das gavetas. Pensei ter visto suas orelhas assumirem um tom de vermelho. Foi salvo pelo retorno de Damon. 

— Perdi o faro! – anunciou ele, mais alto do que deveria – Um cheiro horrível de torta de abóbora má digerida mascarou meu olfato...

Zoe abriu a boca para caçoar de Dean, mas foi interrompida pela brusquidão de Éden ao se levantar.

— Vem vindo alguém! Está subindo a escadaria!

— Puta merda! – exclamou Dean, alarmado – O que a gente faz?

— É óbvio, não é? – retrucou Éden – Nos escondemos!

O som de passos abafados percorreu o ar, ao mesmo tempo em que um tilintar de chaves se fez ouvir. Nos encondemos por trás das altas estantes da seção de História dos Povos Ceramistas, torcendo para que ninguém resolvesse consultar as gavetas de Técnicas de Manuseio do Barro. Houve movimentação na fechadura da sala ao lado, a porta rangendo ao abrir-se.

Quem foi que deixou esta porta destrancada?!— perguntou uma voz grave de homem, em ar de desconfiança – Gavin, faça-me o favor de subir até aqui!

Passos pesados e apressados ecoaram pela escadaria.

Pois não, professor?

Esta porta estava destrancada! É sua obrigação, como chefe dos vigilantes, verificar a segurança das salas de arquivo e pesquisa.

Tem certeza de que estava destrancada, professor? Foi Malcom quem a trancou; confiaria minha vida a ele.

Bem, então reveja seus conceitos... Que isto não se repita! Mande subir os homens!

Agachada ao meu lado, Éden sussurrou.

— Devem ter vindo buscar acervo para exposição... Se o olfato de Damon perdeu os pergaminhos, significa que estão muito longe... Podemos localizá-los, mas vai levar um tempinho.

— Fala sério! – retrucou Dean, indignado – Vocês são vampiros, o que aconteceu com o faro apuradíssimo que tanto se gabam de ter?

— Nos dê um alvo humano e o encontraremos até no inferno, mas não é o mesmo com objetos... Lembrem-se, sangue é nossa religião! Por falar nisso, você tem um belo pescoço...

Pensei ter visto Dean estremecer quando Éden estalou a língua. 

— Será que há uma transcrição dos pergaminhos na biblioteca? – perguntei a ela, esperançosa – Em língua original, digo.

— Pode ser... Mas, a julgar pela movimentação de pessoas no prédio, garanto que estamos presos aqui por mais alguns minutos...

— Onde é a biblioteca? – perguntou Zoe, as pernas esticadas no chão e o tronco recostado à parede.

— No piso de cima, à esquerda. Mas teríamos de passar pela sala ao lado para alcançar a escadaria.

— Você é uma vampira – eu disse, e ela me encarou como se dissesse “Bem observado, Ruby!” – Já vi você e Damon saltarem do terceiro andar, bem poderiam se esgueirar pela janela e alcançar o andar de cima sem serem vistos.

— Ruby, não dá para abrir a janela por fora sem atrair a atenção dos vigias – Damon replicou – O máximo que podemos fazer é nos esgueirar pelo corredor.

Os dois esperaram o momento propício, saindo porta afora o mais silenciosamente que conseguiram.

— Ótimo, assim ficamos livres deles! – vibrou Zoe, contorcendo o nariz logo em seguida – Ah, Dean, que nojo! Vá dar um jeito na sua disfunção intestinal!

— Tenho coisas mais importantes com as quais me preocupar! Não temos tempo, trate de fazer uma mandinga voodoo para nos levar de volta ao parque, tão logo aqueles dois retornarem com o maldito livro.

Zoe inspirou profundamente, como que munindo-se de toda paciência que conseguia reunir em poucos segundos.

— Winchester, eu por acaso tenho cara de Harry Potter?! Por que diabos você cogita a hipótese de que eu saiba aparatar?!   

— Você é uma bruxa! Todas as bruxas que enfrentamos se locomoviam em questão de segundos...

— Shh! Falem baixo! – sibilei, ouvindo passos se aproximarem, bem como o irritante tilintar de chaves – Zoe, a porta!

Num movimento rápido, ela girou a mão no ar, a fechadura se trancando com um estalido seco. Veio a voz abafada do professor.

Pedirei que os senhores usem luvas e máscaras durante o manuseio, senhores. Esta documentação requer extremo cuidado, tratam-se de escritos de 4.000 anos de idade...

 Um segundo depois, a chave cutucava a fechadura, girando duas vezes para destrancá-la. Três pares de pernas entraram, as luzes se acendendo por toda a sala. Instintivamente, Zoe, Dean e eu prendemos a respiração, aguardando. Uma gaveta se moveu, o professor depositando seu conteúdo sobre a mesa.

— Aqui, senhores, o riquíssimo registro médico dos egípcios. Trata-se de uma série de recomendações e instruções acerca do tratamento de doenças. Como disse, é perfeitamente cabível que seja exposto juntamente à ambas as múmias.  

Depois do que me pareceram séculos e uma série de explicações acerca das crenças médicas no Antigo Egito, dois pares de pernas deixaram a sala, batendo a porta bruscamente ao passar. Ouviu-se um arrastar de cadeira, seguido de uma digitação acelerada. O professor murmurava consigo mesmo, como se incapaz de suportar o silêncio. Dean gesticulava para mim, tentando dizer algo; demorei a entender que ele queria que eu espiasse o professor, estando mais próxima da lateral da estante que nos ocultava dele.

Era um homenzinho simpático, um pouco mais baixo do que nós três e de cabelos ruivos muito ralos. Ele tinha rugas de expressão na testa, comuns a qualquer figurão culto acostumado a pensar demais. Zoe cochichara algo no ouvido de Dean e este, por sua vez, me transmitiu o recado, envolvendo minha orelha com as mãos em concha.

— Zoe acha que ele pode ter envolvimento com os deuses. Viu como ele é sabido? Aposto como passou a vida inteira lendo sobre os deuses e acreditando no poder do Livro dos Mortos.

— Bom... considerando que ele se encontra de terno e gravata, descarto a possibilidade de ter estado no parque. – cochichei de volta, imitando seu gesto – E, bem, ele ainda estaria lá se tivesse pretensão de participar do plano diabólico egípcio de dar cabo dos primogênitos...

Ele assentiu, fazendo cara de quem concordava. Virou-se para falar a Zoe, enquanto o professor, erguendo-se, tornou a abrir gavetas. Foi então que, num tom desesperado e descrente, descobriu a falta dos arquivos das gavetas 05 e 06.

— Burke! – chamou, parado à porta – Foi você quem removeu os pergaminhos da seção Egípcia para a PCR?

— Pergaminhos? – perguntou outra voz de homem, esta mais baixa e sonolenta – Não. Que eu saiba, nenhum documento foi para a PCR esta semana.

— Bem, eles não estão na gaveta... – a voz do professor soava tão cheia de urgência que ele teria de ser um ator digno de Oscar para estar fingindo – Chame Gavin! Depressa!

“Não foi ele”, disse silenciosamente para Dean e Zoe. Os passos pesados de Gavin ecoaram pelo corredor, a porta tornando a se abrir de estupefato. Foi então que Gavin, em ar de culpa, dirigiu-se ao professor:

— Pois não, professor?

— Quem foi que trancou esta sala na sexta-feira?

— Malcom, professor... Algum problema?

— Uma coleção rara de pergaminhos desapareceu desta sala, Gavin! Sob a sua supervisão! Agora, o que é que você espera que eu faça?

— C-como assim desapareceram? Não podem... não podem simplesmente ter desaparecido...

— Mas é claro que não, Gavin! Foram extraviados!

— Acalme-se, Atum! – disse a voz de Burke, tentando soar plácida – Alguém pode ter se esquecido de registrar a saída dos documentos para a PCR, vou verificar.

— Por que é que alguém roubaria pergaminhos, professor? – perguntou Gavin.

— Eu não sei, Gavin! São apenas documentos de valor histórico! Alguém poderia tentar vendê-los, suponho...

— Quer que eu verifique a fita de segurança, professor?

— Por favor!

Gavin se afastou em direção à porta, mas ocorreu ao professor um pensamento, porque ele repentinamente perguntou:

— Gavin, Brendon esteve aqui na sexta-feira?

— Esteve sim, senhor! Ele queria vê-lo, professor... Disse a ele que o senhor estava na Convenção de Arqueologia em Israel... Algum problema, professor?

— Brendon entrou nesta sala?

— Não, ele... o senhor não acha que Brendon...

— Eu não estou insinuando nada, Gavin, mas nós dois sabemos que Brendon sempre teve inclinação a burlar regras... Não vejo porque ele roubaria arquivos sem permissão, mas... Isto fica entre nós, Gavin! Pelo menos até que...

Senti uma vibração no bolso. No segundo seguinte, o ringtone ecoou em alto e bom som pela sala, denunciando a nossa posição. Enfiei a mão no bolso, enquanto Atum e Gavin disparavam em direção à música, este último sacando o revólver.

— Parados! – berrou ele, erguendo a arma. Me encolhi feito um gatinho assustado: Gavin tinha dois metros de altura e um corpanzil que bem poderia esmagar ossos.    

— Zoe, faça alguma coisa! – alarmou-se Dean, me arrastando junto ao recuar, ele próprio apontando sua arma para Gavin.

— Largue a arma, rapaz! – ele rosnou, caminhando à frente do professor, de modo a protegê-lo – Há mais dois vigias do lado de fora, estão cercados!

Como uma ilustração do que ele acabara de dizer, a porta se abriu com um baque. Dois homens deslizaram para dentro,  as armas apontadas para nossas cabeças.

— Zoe! – eu e Dean dissemos juntos e a ruiva, finalmente reagindo, ergueu uma mão ao mesmo tempo em que murmurava um feitiço em latim.

No mesmo instante a arma de Gavin foi convertida em galinha, que, numa confusão de penas, saltou de suas mãos e voou por cima de nossas cabeças. Escandalizando-se, ele arregalou os olhos e começou a buscar palavras para expressar o que acabara de acontecer, mas Zoe, adiantando-se, gesticulou no ar como se manuseasse um chicote, lançando Gavin para cima do professor. Os dois desabaram no chão, desacordados, enquanto os vigias que nos cercavam pelo outro lado não conseguiam se mover, enrijecidos por algum feitiço que Zoe lhes jogara. Galinhas se debatiam em suas mãos, em lugar dos revólveres que portavam. Zoe tocou a testa de cada um com ambos os indicadores; seus olhos reviraram e eles desabaram no chão, desacordados. As três galinhas novamente se converteram em armas, que Zoe recolheu.

— Merda! – xingou a ruiva, seu cabelo um tanto alvoroçado, como se a magia o tivesse atingido – Eu não devia denunciar meus poderes assim, vou ter que lhes apagar a memória...

O Winchester encarou a ruiva em ar de assombro, então converteu a expressão numa careta de indignação, balançando a cabeça.

— Anos de convivência e você nem se deu ao trabalho de nos informar que é capaz de apagar memórias?!

— Dean, não comec... – ela ia dizendo, mas foi interrompida.

— Quanto trabalho nos seria poupado se você simplesmente alterasse as lembranças dos envolvidos!

— Dean, não é assim que...

Ele a interrompeu novamente, interpelando-a com a cara vermelha a centímetros da dela.

— Você não ousou apagar memórias minhas e de Sam, ousou?

— Eu não uso esse feitiço, a não ser que extremamente necessário. – esclareceu ela, afetada – Para sua informação, alterar memórias vai contra a ética bruxa, sendo um ato punível por lei e...

— Sei, sei, fascinante, mas não temos tempo para leis da macumba! Tranque a porta, vou atrás daqueles dois sanguessugas! – ele enfiou o revólver na parte de trás das calças e, saltando por cima dos vigias, saiu em passos apressados.

— Ele só está assim por inveja – debochou Zoe, sorrindo abertamente – É incapaz de aceitar que eu tenha vencido quatro homens de uma vez... E agora, que é que a gente faz?

— Devíamos procurar informações sobre Brendon Toth. Se foi ele quem invocou os deuses...

— Ruby, você viu algo quando se sentou naquela carteira...

Fui pega de surpresa. Ela não me encarava de forma acusatória, mas afirmativa. 

— ...não viu? – acrescentou, diante da minha hesitação em responder.

— Eu... como sabe?

— Ah, Ruby, todo mundo percebeu, até o Dean, que conviveu comigo por anos sem notar nada anormal à minha volta. Você ficou toda estática, de olhos fixos e expressão vazia, como se estivesse num transe.

— E o que está sugerindo? – Não sabia mais o que pensar. Madame Olzon dissera que eu não era vidente, mas o fato de ter algo oculto na minha aura levantava suspeitas.

— Não sei, o que você viu?

— Duas mãos masculinas manipulando um pedaço de papiro gasto. Achei que fosse imaginação, mas por um segundo eu tive certeza que era Brendon... eu era... Brendon... Mas não faz sentido faz? Eu apenas intuí que fosse ele...

— E não é a primeira vez que acontece, é? – ela arqueou uma sombrancelha, agora sim num ar acusador.

— Bem, que eu me lembre sim... Não sei onde quer chegar, perguntei à Madame Olzon e ela afirmou que não sou vidente...

— Madame quem?

— Deixe para lá, explico outra hora.

Zoe agarrou minhas mãos quando fiz menção de me afastar. Toda aquela história envolvendo minha intuição me deixava confusa e alarmada.

— Olha, Ruby, eu frequento círculos de magia e misticidade desde que me entendo por gente. Sei reconhecer um dom quando vejo um. Essa sua intuição bem poderia ser uma mediunidade que, desenvolvida, abrirá seu terceiro olho para o extracampo místico. E vou lhe dar algo em que pensar: uma garçonete se vê às voltas com um caçador sobrenatural, salvando vidas indiretamente, mentindo para a família e sustentando uma vida dupla. O que é que a move, senão o desejo de ir além do real?

Franzi a testa, balançando a cabeça sem entender.

— Não sei, o que está sugerindo? Você pode ser mais direta?

— Estou dizendo que agora, neste momento, você está fazendo o que deve fazer. Esse é seu lugar, Ruby, sempre foi! Você acredita que encontrou o Killian por um mero acaso?

— Acho que não. Quero dizer, de todas as pessoas, logo eu fui ser atacada por um lobisomem...

— Exatamente! Vocês se atraíram! Era seu papel cruzar o caminho de Killian! Alguma coisa se abriu quando vocês se encontraram, romperam a monotonia de uma vida vazia e sem sentido. Você pode estar destinada a algo grande...

Ia perguntar que algo grande era esse, mas Damon bateu à porta, assustando-nos.

— Abram, somos nós!

— E então? – perguntei, tão logo eles entraram – Encontraram?

— Nah! – fez Damon – Eles transcreveram todo tipo de coisa inútil, mas não os papiros. Sinto em dizer, mas vocês estão fudidos!

— Quem são esses aí? – perguntou Éden, seu olhar desfilando de um homem para outro.

— Uou! Vocês nocautearam Gavin, um professor e dois vigias?! – Damon arregalou os olhos, abismado.

— A Zoe foi incrível! – exclamei – Derrubou os quatro sozinha.

Éden torceu o nariz quando Zoe orgulhosamente ajeitou os cabelos, sorrindo como uma Miss.

— O que é que nós vamos fazer sem os pergaminhos? – Dean surgiu alarmado, o nariz sangrando.

— O que houve? – questionei, assustada.

— Ah, nada, só tivemos de lutar com os caras que vieram buscar peças para o museu e um professor agrediu esse aí com um cinzeiro – Éden claramente não se importava com Dean, sentimento do qual Zoe partilhava, pois ignorou as queixas do loiro.

— Não nos resta mais nada a não ser retornar ao parque e descobrir outro meio de dar cabo desses deuses – disse ela – Ruby, você tinha recebido uma ligação, quem era?

— Na pressa de lidar com os vigias, até me esqueci de verificar – apanhei meu celular, o nome de Killian se encontrava na tela. Ele já me enviara umas trezentas mensagens, esperando notícias – É o Killian, o que eu digo?

Dean estava largado em uma carteira, o sangue escorrendo em um filete pelo seu rosto.

— Que estamos fudidos e que é melhor ele mover o traseiro e encontrar outro meio de nos salvar! – ele se voltou para Zoe, suplicante – Faça o favor de estancar esse sangramento, mal consigo respirar.

Ela revirou os olhos. O nariz de Dean fez um crec e ele soltou um ganido de dor, mas no segundo seguinte não havia mais sangue. 

— Obrigado! – ele disse polidamente – Agora, escutem aqui, estava pensando que esta história está mal contada... Um garoto entra aqui e rouba papiros, invoca uns deuses sequestradores de crianças e marca todos os primogênitos com uma cruz. Qual é, afinal, o objetivo?

— Eu não sei, Dean, e não devíamos nos preocupar com isso! – irritou-se Zoe, sentada ao laptop – Temos de ir atrás dos pergaminhos. Encontrar Brendon é nossa missão agora.

— Tá, e como podem ter certeza de que foi Brendon? – Éden cruzara os braços – Dada a facilidade com que entraram nesta sala, qualquer um poderia ter levado os papiros.

— Até onde eu sei, vocês dois já estão mortos, de modo que não precisam se preocupar. Por que não vão viver suas vidas, ou melhor, suas mortes, e nos deixam lidar com nossos problemas?

— Zoe! – ralhei – Toda ajuda é bem vinda! Dean, o que está fazendo?

— Talvez o tiozinho saiba ajudar! – justificou o loiro, chacoalhando o professor de modo a acordá-lo. Tanto eu quanto a ruiva censuramos sua ação com olhares indignados – Que foi? É nossa melhor aposta!

Fui obrigada a concordar. 

— Devíamos levá-lo conosco... – sugeri e Zoe me lançou um olhar mortal no mesmo momento, sua cabeleira ruiva se eriçando como se ela estivesse prestes a me atacar.

— Não mesmo! – chiou, erguendo o indicador – Eu já burlei uma lei e estou prestes a burlar outra, não me forcem a praticar atos ilegais!

— É por uma boa causa! – falei, imitando a expressão que Killian fazia quando queria convencer alguém a fazer algo. 

— Que se dane! Eu não vou fazer!

— Existe uma espécie de Azkaban para bruxas transgressoras?

Ela balançou a cabeça.

— Não, mas eu poderia ter meus poderes limitados, até revogados, a depender da gravidade do crime.

Ia dizer mais alguma coisa, mas foi interrompida pelos atos de Dean, que por fim arrastou o professor para o pé da mesa, colocando-o em posição sentada; o movimento brusco fê-lo acordar de vez e, apavorando-se, desatou a gritar tão logo percebeu o que ocorria.

— SOCOOOOO...

Dean o calou com um soco no nariz. Ele guinchou, agarrando o mesmo; debulhando lágrimas de dor, se pôs a xingar uma série de palavras indecorosas.

— Zoe, faça esse velho se calar! – gritou Dean, irado, pois tivera a mão mordida ao tentar silenciar o professor.

— Inferno! – a ruiva fez um gesto brusco no ar, resmungando um feitiço que soou como um palavrão. O professor continuou xingando, mas nenhum som escapulia de sua boca. Ao perceber o estranho acontecimento, começou a debater-se, como se esperando acordar de um pesadelo – Quieto, antes que eu o amarre também! 

Sua ordem teve imediata obediência. Com certeza, tratava-se de um feitiço. O professor se sentou ereto, os olhos vidrados na direção da ruiva, alheio ao sangue que lhe pingava das narinas.

— Certo – disse ela, sentando-se de frente para o professor – Agora vou devolver-lhe a fala e o senhor, obedientemente, responderá minhas perguntas.

Ele fez que sim com a cabeça, concordando. Zoe repetiu o mesmo gesto que fizera pouco antes e, cruzando as pernas, interpelou-o com seus questionamentos.

— Seu nome completo e formação?

A voz do professor parecia saída de um rôbo, como aquelas vozes sintéticas do Google. Ele falava pausadamente, a expressão impassível como a de um boneco.

— Atum Habib Alshayk, Doutor em Egiptologia, Mestre em História e Arqueologia. 

— O senhor é um professor nesta instituição, correto?

— Sim, professor e pesquisador.

— O senhor considera-se racional ou intuitivo?

— Racional.

— Sendo racional e um estudioso, suponho que o senhor não tenha crenças religiosas...

— Sou agnóstico, até o momento.

— Hum... então, o que representa a religião egípcia para o senhor?

— Um fascinante ramo de estudo e instrumento de trabalho.

— E nada mais? O senhor, conhecendo a religião dos egípcios a fundo, nunca encontrou fundamento nas crenças deles?  

— De forma alguma... Os egípcios eram sábios e promoveram uma série de feitos essenciais para a história da humanidade, mas, em quesito religioso, suas crenças eram infundadas...

— A existência de deuses, por exemplo, é um tópico que o interessa?

Pensei ter visto um breve sorriso formar-se nos lábios ressecados de Alshayk.

— Toda a minha vida eu me interessei pelos deuses. São um dos meus instrumentos de trabalho, historicamente falando. A crença em sua existência implicou em vários aspectos sociais e econômicos.

— Naturalmente – Zoe sorriu discretamente: a meu lado, Dean se encontrava aparvalhado, impressionadíssimo pelo poder persuasivo da ruiva – E o senhor, nem mesmo por interesse, digamos que por acidente, teria os invocado?

Eu achava bastante improvável que um senhor tão erudito tivesse tempo livre para convocar deuses para a ceia, mas nada disse.

— Invocado deuses? – o professor hesitou um instante, como se estivesse a revirar seu HD interno, de modo a checar a informação – Não, eu não o faria, nem mesmo por acidente, isto não é possível.

— Não? Pois o senhor terá de rever seus conceitos, porque, de fato, alguns seres da mitologia egípcia se encontram a pouquíssimos quilômetros daqui.

— Impossível. Deuses não existem, foram criados pelos egípcios para explicar os fenômenos da natureza.

— Quer dizer que sequer acredita na possibilidade de existência dos mesmos?

— Naturalmente que não acredito. Há um seleto grupo de crentes, mas não me encontro entre eles.

Zoe, Dean e eu nos entreolhamos. Se havia quem ainda acreditasse nos deuses, talvez suas orações fossem as responsáveis por invocá-los. Zoe verbalizou meu pensamento, indagando:

— E estes crentes oram aos deuses num altar?

— Naturalmente.

— É uma religião ou culto?

— Ambos.

— Tá bem, isso explica muita coisa – eu disse, um tanto pasma. Bem estava imaginando um bando de fanáticos sentados em círculo, entoando uma série de orações em egípcio antigo – Diria que invocaram os deuses inconscientemente, mas posso apostar que foi ao contrário.

— Eu também – concordou a ruiva, assentindo – Quem está por trás disso, professor?

— Um grupo de estudantes adoradores.

— Brendon Toth tem algum envolvimento?

— Sim, ele se encontra à liderança do grupo, como uma espécie de sacerdote.

— Ruby, agora a sua intuição me assustou – Dean me fitava, assombrado. Ignorando o comentário, busquei no Google o nome de Brendon, enquanto Zoe perguntava ao professor qual era seu nível de interação com o mesmo.

— Brendon é mais do que um aluno, foi meu pupilo, criei-o como a um filho. Ao tornar-se um universitário, no entanto, ele assumiu a responsabilidade pela própria vida. 

— Bem, então o senhor o ensinou boa parte do que sabe, não?

— Não, eu dei a ele as asas, ele decolou por si mesmo. Foi o aluno mais brilhante dos últimos tempos.

— Verdade? Suponho que ele teve uma carreira formidável enquanto aluno.

— Sim, fez parte de vários grupos de pesquisa e atuou como um monitor no Laboratório de Mumificação. Recém formou-se egiptólogo e ambiciona tornar-se um mestre e doutor, como eu.

Dean espiava por cima do meu ombro. Já localizara os perfis pessoais de Brendon e esquadrinhava as fotos, procurando informações relevantes. Aparentava ser um jovem comum, preocupado em atualizar o status com informações descartáveis e inúteis, como correntes imbecis de perguntas e trechos de conversas com amigos.

— Esperava que fosse um lunático, mas o achei tão monotóno quanto esperar ônibus na chuva – comentei, entendiada por uma série de selfies sem graça que ele tirara no espelho do banheiro.

— Bem que tem cara de doido – o loiro subitamente tomou o celular de minhas mãos, dando zoom num ponto específico de uma das fotos – Que é isso? Um pé de maconha?

— É só um bonsai, Dean – ri.

— O senhor não se opôs quando Brendon começou a cultuar deuses?  – questionou Zoe, ela própria fuçando o perfil do jovem em seu celular.

— Eu não sabia, de início. Ele falava deles com extrema adoração, verdade, mas só tive conhecimento de seus atos quando geraram consequências – respondeu a voz distante de Alshayk. Ele até aparentava estar dormindo, pois fechara os olhos – Mais de uma vez, Brendon colocou-se em risco de expulsão por realizar estranhos rituais em seu dormitório e tentar aliciar colegas para seu grupo de adoradores. Não fosse a minha influência na instituição, ele não teria finalizado os estudos. Me oponho quando ele arrisca colocar tudo a perder, mas o culto aos deuses, por si só, não me incomoda.

Acabara de topar com uma foto em que Brendon usava uma cruz ansata no pescoço. Atrás dele, um cenário no mínimo pertubador: uma série de estátuas egípcias em meio ao rebuliço de hieróglifos e símbolos riscados na parede.

— Hum, o senhor consideraria Brendon perigoso? – perguntei a Alshayk, mas ele só respondeu quando Zoe lhe dirigiu a pergunta. Estando enfeitiçado, só obedecia a ela.

— Não, Brendon sempre foi teimoso, mas perigoso nunca. Ele não faria mal a uma mosca.

— Esse tio é extremamente ingênuo – resmungou Dean, balançando a cabeça – Qualquer criatura que possua um cérebro é capaz de perceber o olhar psicótico desse garoto.

De fato, eu rezaria uma série de Pai Nossos e Ave Marias se topasse com aquele menino.

— O senhor suspeita que Brendon tenha furtado os papiros. Ele chegou a mencionar interesse pelos mesmos?

— Brendon se interessa por registros antigos, no geral. Vê neles um fundamento a suas crenças. Ainda assim, não vejo razão para que ele tenha levado os pergaminhos. Só posso imaginar que pretende orar aos deuses através dos escritos originais.

— Há outros papiros pertencentes ao Livro dos Mortos pelas redonzezas?

— Não, a Universidade os detém com exclusividade. Até onde sei, a coletânea de textos sobre vida após a morte mais próxima se encontra a quilômetros daqui, em Amsterdã.

— Só mais uma coisa, professor, qual o endereço de Brendon?

***

04h48 min

704 Belmont Street, Capitol Hill, Seattle: 3º andar, apartamento 66

 

— Bem, então estamos quites – eu disse, fiscalizando a gaveta de meias de Brendon Toth – Também não conseguimos o Livro dos Mortos.

COMO É QUE VOCÊS FORAM INCAPAZES DE CONSEGUIR ESSA MERDA?!— Regina berrou tão alto no meu ouvido que Zoe instintivamente encolheu ante o guincho da mulher.

— Os pergaminhos foram extraviados, Regina! – me expliquei, afastando o celular a uma distância em que meus tímpanos estivessem seguros – Viemos ao apartamento de Brendon Toth para tentar recuperá-los, mas duvido que estejam aqui.

Brendon Toth?! Quem diabos é Brendon Toth?! 

— Um egiptologista. Achamos que ele invocou os deuses por meio das orações originais do Livro.

 - Bem, ao menos temos uma pista... CACETE! EU NÃO IMAGINEI QUE ESSA SERIA MINHA MORTE!

Zoe parecia chocada por conseguir escutar Regina perfeitamente sem a ligação estar em modo viva-voz.

— Diga a ela para não se preocupar. Na melhor das hipóteses, oferecemos o Dean como sacríficio pela humanidade.

Dean desaparecera num dos cômodos da casa, de modo que não ouviu o comentário. Regina, por sua vez, soltou uma gostosa gargalhada.

Não precisa repetir, eu ouvi muito bem! Devíamos botar uma maçã na boca dele e estirá-lo nu numa tábua. Não ia ficar muito apresentável, mas é o melhor que nós temos.

 - Quem é que você quer estirar nu numa tábua?— perguntou a voz distante de Graham.

Não é da sua conta! Ruby, tratem de se apressar, eu não posso morrer sem me despedir de você!

Não seja retardada, ninguém vai morrer hoje— Gancho tomou o celular de Regina, que protestou, mas acabou cedendo – Oi, meu amor! Espero que esteja bem... Aqueles dois não a colocaram em risco, colocaram?

— Não, eles não...

Escute, eu quero que volte para o QG...

— Nem precisa terminar a frase, eu não vou me esquivar da situação como um cachorrinho amedrontado.

Você está grávida...

Grávida!— esganiçou-se Regina; imaginei que cruzasse os braços e balançasse a cabeça – Que falta de senso!

— Killian, eu não vou discutir! Daremos um jeito nisso juntos! Até daqui a pouco! – e desliguei antes que ele tivesse tempo de contestar. 

— Por que é que a Regina está tão afetada? – questionou Zoe, nas pontas dos pés para conseguir alcançar a prateleira mais alta do guarda-roupa.

— Gold não conseguiu a estaca. Aparentemente, não existem tamareiras anciãs nesse continente.

— E essa agora! Nós estamos fudidos!

Retornamos à sala do apartamento. De boca cheia, Dean me ofereceu um pote de salsichas em conserva.

— Olha só o que eu achei na cozinha! Ao menos ele tem bom gosto...

— Dean, nós não viemos aqui para comer! – ralhou Zoe, erguendo as sobrancelhas em sinal de irritação – Sabe de uma coisa? Eu me recuso a ser sua parceira na próxima caçada!

— Eu inspecionei a sala e a despensa! – retrucou o loiro, enfiando meia salsicha na boca – Encontrei um pernil mofado no congelador...

— Mofado? Bem, então ele não tem vindo aqui... Isso explica o cheiro das cuecas no cesto de roupa suja.

— ... e umas anotações esquisitas em hieróglifos – completou Dean, erguendo para mim um caderno com jeito de diário  – Ah, me esqueci, também encontrei bolas de papel na lixeira, talvez queira dar uma olhada Zoe, é uma pena que dessa vez você não tenha encontrado nenhuma pista.

— Cala a boca, Dean! – ela desdobrou uma folha grande e amassada – Mas isso... é uma planta de Horrorland, não é? Olha aqui a localização da pirâmide...

Ela se encontrava no centro de um pentagrama, representada por um quadrado com um X em cima. Cada uma das pontas da estrela apontava para um local específico do parque: o posto policial, o palco do show da Gaga, a barraca de salsichas, o trem-fantasma e o espaço vazio onde eu encontrara a tenda de Madame Olzon.

— Esse moleque tem planejado há meses! Olhem o diário, ele mantém registros há algum tempo – Dean tomou o caderno de volta, folheou e parou numa das primeiras páginas, na qual Brendon colara uma reportagem sobre Horrorland. Nova atração promete pregar sustos e agradar o público jovem, dizia a manchete – Diz aí que Brendon foi consultor da obra; foi ele quem indicou todos os detalhes referentes às pirâmides egípcias; foi ele quem concebeu a atração; foi ele o responsável por contratar os atores... Foi tudo ideia dele!

— Meu Deus do céu, é pior do que eu imaginava... – estremeci.  

 - A inauguração foi recente, faz cerca de um mês. O fato é que eles esperaram a proximidade do Halloween para começar o ataque às crianças.

— Vamos levar o diário! – disse Zoe – Talvez ele tenha detalhado o que tem em mente.

— Ele não é tão idiota assim! Em todo caso, talvez as passagens em hieróglifo ajudem em algo.  

— E o pentagrama? – perguntei – O que significa?

— Me parece uma zona de energia – respondeu Zoe, lançando a Dean um olhar questionador; ele assentiu, concordando – Vê só, a pirâmide é o centro de maior poder. Achávamos que todo o parque era uma esfera de atração sobrenatural, mas faz sentido que seja a área do pentagrama.

— Bem, então o demônio tem envolvimento, não?

— Aparentemente... Faz sentido, sabe? Toda aquela história de o parque se recuperar da crise e se tornar um sucesso... O que não faz sentido é que deuses e demônios estejam trabalhando em conjunto...

Suspirei, acomodando-me no braço do sofá.

— Eu já não estou entendendo mais nada! Dean, me passe uma dessas salsichas, estou morrendo de fome!

***

05h11 min

Conexão Seattle – Marysville: 19km de Horrorland

 

— “Que se proclame o vosso nome”... – resmunguei, fitando a tela do celular de testa franzida; tirara fotos das passagens hieroglíficas no caderno de Brendon e traduzira no Google: o resultado era uma série de frases fora de contexto e sem sentido – Que significa isso?

— Eu disse que esse moleque é doido! – Dean me olhou pelo retrovisor – O que mais tem aí?

— Nada que nos seja útil... alguns desenhos, símbolos egípcios e rascunhos arquitetônicos da pirâmide... 

— Zoe, o que é que nós vamos fazer? – questionou Dean, concentrado na estrada que circundava as montanhas. Vincara a testa em ar de preocupação.

— Eu não sei, Dean! – ela praticamente gritou, pois o loiro parecia achar que seus poderes eram solução para todos os problemas – Você espera que eu tenha uma solução milagrosa na ponta da língua?

— Ora, você é uma bruxa! – ele não parecia mais tão incomodado em usar a palavra bruxa— Faça um voodoo e desfaça a maldição da cruz!

— Eu não poderia, mesmo que tentasse! – explicou ela – Estamos lidando com criaturas detentoras de um poder extraordinário, centenas de vezes mais poderosas do que nós, reles bruxas.

— Reles bruxas? Você induz um velhote a lhe dar respostas e lhe altera as memórias, mas é incapaz de lidar com um bando de criaturas arcaicas que devora criancinhas?!

— Quer saber, Dean, eu não vou discutir, não estou com paciência! Ruby, me dê sua mão, preciso lixar algo antes que meus nervos entrem em crise!

Irritando-se no mesmo momento, o loiro ameaçou. 

— Recomece essa azucrinação e a  largo no meio da estrada!

— Pois largue! E não chore quando o terrível Anúbis lhe comer as tripas!

— Ora, pois sua presença é inútil, Zoe; já que, sendo uma reles bruxa, não pode nos salvar da perdição.

— Pare o carro!

— Zoe... – eu ia dizendo, pronta para acalmar os ânimos de ambos, mas Zoe tornou a comandar:

— Pare o carro, Dean!

— Me obrigue!

— PARE O CARRO!

— Zoe...

— PARE A MERDA DO CARRO, DEAN!

Ela certamente o persuadira, pois Dean acabou por executar a ordem. Zoe abriu a porta antes mesmo de o Impala parar completamente. Confusos, Dean e eu a vimos descer e sair correndo feito louca em direção oposta à do carro. Nos entreolhamos estupidamente, até que saltei porta afora, imitando sua ação.

— Espere, Zoe! – gritei. 

Dean foi inteligente, deu a ré e a alcançou antes de mim. Quando parei ao lado da ruiva, ofegante pela corrida, Dean já descia do carro e se encaminhava na mesma direção, pronto para arrastá-la de volta ao banco do carona.

— Sua louca, eu não falei sério quando disse que ia largá-la aqui – ele ia dizendo, mas Zoe sequer o escutou – O que foi?!

— A água – ela apontou um dedo trêmulo em direção a uma cachoeira. Ficava entre as montanhas, a pelos menos dois quilômetros de onde estavámos. Apesar da considerável distância, pudemos ver perfeitamente que não era uma cachoeira branca, nem transparente tampouco... mas vermelha.

— Céus... – foi tudo o que consegui dizer, enquanto Dean, estático, se manteve em silêncio.

— É sangue – sussurrou Zoe.

— Tá legal – o loiro finalmente disse, depois que nós três passamos cerca de um minuto observando –, eu não sou religioso, nem leigo tampouco. Então, se eu estiver certo e estiver enxergando direito, a conversão das águas em sangue e a marcação dos primogênitos significam... 

— ... que os deuses soltaram as pragas do Egito – completamos Zoe e eu, aterrorizadas.


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Notas finais do capítulo

Não se esqueçam daquele comentário para motivar a escritora. Amanhã tem mais!
Beijos da Mrs. Jones


PS.: Senti muita falta de vocês ♥



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