Ópera Jeunes escrita por Gardella


Capítulo 3
Ela


Notas iniciais do capítulo

"Quem possui a faculdade de ver a beleza, não envelhece." (Franz Kafka)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/524048/chapter/3

Francesca tinha olhos de jabuticaba. Sua pele era lisa como costuma ser a das crianças, suas bochechas rosadas e os lábios pálidos. Possuía uma brancura europeia, sobrancelhas naturalmente envergadas e grossos cílios negros que lhe davam um olhar poderoso. Ela era a criança mais doce que poderia existir... até tirar o habito.

Quando vi Francesca sair do quarto com roupas normais que eu mesmo havia comprado, levei um susto tão grande que a pobre menina se assustou. Seu cabelo, o qual eu nunca tivera oportunidade de ver, era longo, negro e se abria em largos cachos. Seu rosto de criança já não era tão infantil e, seu corpo... Ela vestia uma regata simples e uma calça jeans, no entanto suas formas estavam tão nítidas para mim quanto a de tantas mulheres que passaram por minha cama.

Meu embaraço fora deveras notado e deu margem a um silêncio sepulcral durante as minhas primeiras horas paternas. Quando se cansou de olhar para minha cara do outro lado da mesa, levantou-se e foi assistir televisão. Depois de um filme, muitos comerciais e o sentimento de que eu havia cometido um erro terrível, finalmente resolvi puxar algum assunto. Perguntei-lhe sobre o que almejava para o novo quarto. Foi certeiro como furar uma veia, a partir dai não paramos mais. Descobrimos muitas coisas em comum, passamos a frequentar teatro, cinemas de arte, apresentações e exposições. Ela adorava sair com os meus amigos e mesmo que fosse a única com menos idade nas festas, nunca pareceu deslocada ou desconfortável. A propósito, Francesca resolveu pintar uma parede do seu quarto, logo atrás da cama, de vermelho sangue. Seu gosto musical era divino, além dos muitos CDs que eu lhe comprava, colecionava também vinil e era o som de sua vitrola que preenchia a casa pela manhã.

Ela amava a sacada de minha varanda, a mesma que já apresentei anteriormente. Gostava ainda mais do nascer do sol, para o qual me acordava frequentemente com intuito de não permitir que eu perdesse o espetáculo. Acostumamos-nos a dormirmos lá fora, um enrolado no outro, após esse maravilhoso show da natureza. Como era bonito ver as coisas através de seus olhos. Francesca era a beleza em pessoa, quase um Midas em relação a isso. Tudo que passava por ela tornava-se mais belo, até mesmo eu. Provar-te-ei que eu, em todos os meus anos e procuras pela beleza, nunca cheguei perto da facilidade que ela tinha de alcança-la.

Em certo amanhecer do sol eu, sentado no sofá com um robe de seda vermelho, ela, deitada com a cabeça em meu colo deixando espalhar sua longa camisola de cetim branco por todo o sofá, fazia-lhe cafuné ao som do canto tímido dos pássaros ao horizonte. Interpelou-me Francesca, cujo os cabelos cheiravam a morango, o motivo de eu ter ido vê-la no dia de seu aniversário. Contei-lhe resumidamente a história, encerrando com a moral de que, meu repudio pelo feio me fez achar a mais bela das criaturas. Eis que após esse meu galante elogio, Francesca, minha Francesca, agora com treze anos e dois meses de idade, esperta como ninguém, iniciada em mais de cinco idiomas e uma artista nata, levantou-se de supetão lançando mão do longo tecido que a cobria, o qual despencou lenta e silenciosamente até o chão frio. Parou na minha frente e olhou para o próprio umbigo. Não me lembro da ultima vez a havia lhe visto nua, ou se já houvera alguma vez. Senti minha face enrubescer, meti meu rosto na xícara de chá que eu segurava e fechei meus olhos respirando profundamente o cheiro da cidreira. Quando os abri ela ainda estava lá, olhando para o próprio umbigo.

Não sou machista. Não me entenda mal. Francesca não era um caso clássico, ela era minha noviça imaculada. Pela primeira vez me arrependi de não obriga-la a usar burca ou de desvia-la do caminho cristão, de leva-la para tantas exposições e enche-la de tanta cultura, ou ainda de cria-la como filha quando na verdade via nela uma salvação, de abrir-lhe a mente e fingir por tanto tempo ser seu tutor quando na verdade era apenas um mero espectador de seu esplendor inumano. Eu queria levantar do sofá e cobri-la com dez mantas, ou melhor, dez mil! Queria coloca-la num hábito batido e manda-la de volta para o convento, onde ela se manteria a salva de mundanos como eu, com os olhos impuros e pensamentos pecadores. Ao invés disso eu coloquei minha xícara na mesinha a minha frente e me reclinei para observa-la.

Sua pele era sim de uma brancura indiscritível, seus ombros era magros e os braços roliços. Seus seios pequenos se sobressaiam graças a sua bela clavícula. Sua barriga não era lisa, mas ela não era gorda. Ela era uma falsa magra, cheia de curvas e um belo umbigo pequeno e fundo como todos deveriam ser. Não conservava um pêlo no corpo que não fosse na cabeça e mantinha as pernas sempre bem hidratadas. Ela tinha um brilho especial no olhar e na pele, o brilho vinha de sua aura. Eu a amava. A amava, pois amava a beleza e, afinal, o que é mais belo que o amor? Eu amava a amar.

Desejei que meus olhos fossem maquinas fotográficas para que eu pudesse fotografar cada uma de suas poses, cada gesto, cada minúsculo e imperceptível movimento. Queria tê-la assim, jovem e bonita, para sempre.

– Eu quero ver.

– Quer ver o que?

– Ela.

– Por que você iria querer vê-la?

– Você só me disse coisas ruins sobre seu umbigo, é necessário uma segunda opinião.

Refleti por alguns instantes e cheguei a conclusão de que sua afirmação tinha fundamento.

– Procure a foto na internet.

– Eu quero ver pessoalmente.

– Temo que isso não será possível.

– Por que?

– Será que você não prestou atenção na história? Eu a deixei aqui, sozinha, nunca mais liguei ou a vi. Sinto muito mas você não verá.

Tive medo de desaponta-la mas ela pareceu bem. Nunca mais tocou no assunto, voltamos para nossa rotina, não tão rotineira, sem muita dificuldade ou foi isso que me pareceu.

Duas semanas depois de completar dezesseis anos de idade, chegou de uma festa quase as três da manhã. A essa altura eu já não era só o pai mais dedicado do mundo mas também seu fã numero um e empresário. Empresário sim, pois a menina nascera com o dom de reproduzir nas telas e prender nas maquinas o paraíso que via diante dos olhos, e isso lhe rendia muitos milhões por mês. É claro que meus contatos, sua educação, e seu sobrenome, facilitaram bastante sua carreira, mas o que importa é que ela já tinha o futuro mais que garantido.

Chegara aos trancos e barrancos sem o menor pudor dentro de casa. Eu que já estava dormindo, acordei num sobressalto e fui verificar o que acontecia na sala. Francesca, minha Francesca, estava apoiada no piano de nossa sala, arqueada contra a madeira preta enquanto uma mulher, a qual me parecia familiar, lhe beijava o pescoço. O chão sobre meus pés desapareceu por completo, encostei-me na parede escondendo-me em uma pilastra mas não consegui tirar os olhos daquela cena. A mulher vestia azul marinho, não sei se era um vestido pois o tecido já estava deitado em cima do sofá. Minha Francesca, que saíra de branco, agora estava apenas com uma lingerie e seu Louboutin cruzado em torno daquela figura morena. A mão de minha filha se arrastava desde seu pescoço até chegar a base de sua cintura. Que bela cintura, fina, magra e, meu deus, o umbigo. Que diaba era essa minha filha. A danada havia esperado todos esses anos para arrastar aquela mulher para minha casa novamente. Não podia ser verdade. Acreditei ser apenas uma coincidência, eu não queria ver mais nada, porém precisava saber se era verdade.

Meus pés que a pouco não alcançavam o chão, parecia agora ter criado raízes. Meus olhos estavam secos pois já não os conseguia fechar. Onde estava a minha consciência? Será que ela algum dia existira? Eu assisti, imóvel, ao iniciar da minha filha. Veja como o destino se faz: a imperfeição me faz achar a beleza mais sublime e depois esta volta e a deflora. Achei justo, não intervir. Me doía vê-la sendo tocada por outra pessoa, mesmo que por outra mulher, mas sabia que aquela não era qualquer mulher. Por isso meus olhos brilharam, minha boca se enchera de saliva e minhas mãos suaram. Eu estava encantado, perplexo. O Louboutin saltitava sobre os ombros daquela figura amiga, os gemidos preenchiam a casa como sua velha vitrola. Não havia nojo, só fome, desejo, arte. Senti-me enrijecer, mesmo com o beijo grego. Ela me viu, ou ao menos olhou na minha direção. E gozou. Seu corpo tremia como numa convulsão ardente. Uma lágrima desceu de seu olho esquerdo e ela sorriu para mim. Francesca a jogou no sofá e antes de recomeçar a seção de corpo-a-corpo, ofereceu-lhe um whisky, o qual lhe fez desmaiar.

– Pai.

Eu gelei. Sabia que ela me vira mas, preferia acreditar que havia sido somente uma impressão. Ela derrubara a quarta parede, pior, eu agora percebera que nunca houvera uma quarta parede.

– Estou aqui, querida.

Silêncio.

– Venha ver.

Eu sai do meu nada discreto esconderijo e me posicionei atrás dela. Se não fosse o umbigo eu jamais reconheceria aquela mulher. Quantas plásticas inúteis na cara, pensei, por que não tirara aquela coisa grotesca de uma vez?

– É maravilhoso.

Meu cenho se franziu, minha cabeça se voltou imediatamente para Francesca.

– Como?
– É lindo.

Eu ri escandalosamente até que, ao olhar para ela vi sua expressão de seriedade.

– Esta brincando comigo?

– Não vês? Olhe mais de perto. Sua pele é levemente repuxada para fora, observe a uniformidade, as curvas.

Eu observei. Por duas longas horas foi tudo o que eu fiz, observei. Parei somente quando a mulher se mexeu, virando-se de bruços. Era uma obra de arte. Como eu não havia percebido isso antes? Levantei e fui para o meu quarto, dormi quase que de imediato anestesiado pela reformulação nos meus pensamentos. Quando acordei na tarde seguinte, continuei deitado relembrando o que acontecera. Chorei.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ópera Jeunes" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.