Ópera Jeunes escrita por Gardella


Capítulo 2
Umbigo


Notas iniciais do capítulo

"Ó beleza! Onde está tua verdade?" (William Shakespeare)



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Encostado na sacada eu observava o belo sofá surubão que mobiliava minha varanda. Jazia nele um corpo feminino, perfeitamente bem modelado e coberto pelo amanhecer que acontecia acima de nós. O clima estava úmido, uma brisa quente passava envolvendo o meu corpo. Quanto a ela, sua pele era parda, seus cabelos negros e cacheados. Na boca carnuda ainda repousava o batom vermelho carmim, suas pernas longas e magras traçavam o caminho majestoso até seus pés. Que belos pés! A descendência egípcia não lhe podia ser negada diante de tais membros. As unhas não deixavam a desejar: todas bem feitas numa francesinha impecável, mesmo a do dedo mindinho que costuma ser lamentável. Seu peito subia e descia num vai e vem silencioso. Seus seios pequenos de bicos inchados carregavam com si o fardo das auréolas amarronzadas. A barriga era inexistente, quase negativa, e eis que nela estava a coisa que mais me chamou atenção.
Seu umbigo. Como explicar a repulsa que eu sentia por aquele estranho botão que me levava diretamente para o inferno? Era como estar olhando para os olhos do capeta. Uma coisa esdruxulamente retorcida para fora, sentia-me dentro de “O Oitavo Passageiro”. Eu o vira pela primeira vez a quase quatro horas atrás e, no entanto, lá estava eu, fitando-o continuamente, tentando entender a presença de tamanha deformação em uma criatura tão maravilhosa. Por que ela não o tirava de lá? Seria falta de dinheiro? De certo que não, afinal ela era uma modelo famosa, inclusive já se sabia que seu nariz não era natural por inteiro.
Eu estava profundamente incomodado com aquela aberração dentro de minha casa, fui obrigado a cobri-la com uma manta para conseguir cortar o efeito da hipnose. Decidi que quando ela acordasse eu não deveria estar lá. Era imprescindível que ela se sentisse abandonada, deixando-a indisposta a voltar, poupando-me a desilusão de olhar para aquele corpo-estranho novamente.
A cidade na qual resido tem algumas desvantagens para pessoas noturnas como eu. Apesar de sua beleza pitoresca, é muito difícil achar estabelecimentos abertos antes das seis horas da manhã. Enquanto esperava o sol estabelecer-se por completo, sentei-me na longa e deserta escadaria perto de minha casa. Os barulhos eram poucos, podia ouvir minha própria respiração, as folhas sendo jogadas de um canto para o outro pelo vento e, é claro, os primeiros passos dentro do convento. O convento ficava no fim da travessa onde eu estava. A parede que dava para a rua tinha uma grade que funcionava como área de ventilação, e era também o lugar em que as crianças lá criadas mais gostavam de ficar. O lugar estava vazio, isso me chamou atenção. Fui atraído pela ausência de gritos infantis que eram costumeiros na região. Sentei-me no outro lado da rua, aos pés das portas trancadas de uma pequena mercearia, usando a minha espera por um bom café da manhã como desculpa para minha seção de indiscreta observação.
A grade me dava uma área de visão de aproximadamente três metros de largura. As paredes do convento permaneciam milagrosamente brancas desde que eu me mudará para a minha atual residência, sem que eu a tivesse visto sendo repintada uma só vez. O chão de pedra parecia especialmente frio e impessoal mas o caso peculiar é que havia uma menina, vestida de noviça, sentada de frente para mim. Sua feição infantil estava imóvel e seus olhos vidrados na fumaça que saia do meu charuto. Ela não emitia sons nem fazia movimentos, apenas apreciava os desenhos formados pelas temporárias nuvens brancas.
Não sei quanto tempo se passou até o momento em que as portas se abriram atrás de mim liberando um cheiro maravilhoso de café e croassant, mas, depois disso, meu dia ficou deveras enfadonho. Poucos minutos após eu me levantar da calçada e pedir uma xícara de capuccino, uma madre extremamente gorda apareceu dando ordens à garota.
Eis outra questão muito misteriosa para mim. Não entendo como pode haver uma freira gorda. Elas acordam cedo para trabalhar, comem uma miséria por ter a gula como pecado, rezam e estudam o dia inteiro e ainda assim vemos grandes e largos hábitos. E eis ai o mistério da nossa fé.
Nos dias que passaram não me privei de ir para festas, sequer pensei no que acontecera por incríveis duas semanas, até que avistei na rua duas turistas cuja uma delas tinha o umbigo tão saltado para fora quanto a minha modelo rejeitada. Tal fato remeteu-me diretamente para o rosto da jovem noviça. Foi assim que pus-me de pé às quatro horas da manhã seguinte e dirigi-me à frente da grade.
Lá estava ela, com seu hábito de noviça, sentada no chão frio, distraída olhando para uma formiga que passava carregando uma folha com o peso muitas vezes maior que o dela própria. A menina não notara a minha presença por algum tempo, quando o animal finalmente sumiu de sua vista, ela virou tão abruptamente a cabeça que não deu tempo para eu desviar meu olhar. Deixou então que o seu próprio fosse levado da fumaça branca que me cercava até a ponta de meu charuto. Coloquei-me de pé por instinto e, por pura e inexplicável atração, andei até ela, parando apenas quando impedido pelo metal. Seus olhos não estavam assustados pelo fato de um estranho estar olhando-a sem disfarces ou pudor, pelo contrário. Levantou-se e pôs-se a um passo de distância permitindo que eu visse o caminho de seu olhar. Da ponta de meu charuto passou para minha boca, subiu rapidamente pelo meu nariz e mergulhou enfim nos meus olhos, ultrapassando a minha retina e tocando a minha alma. Suspendeu a mão tocando em minha bochecha e disse:
– Pensei que tinhas me abandonado.
Fiquei consternado pela tamanha estranheza da cena. Nunca fui religioso ou conspirador mas, a partir desse dia, passei acreditar em destino. Passei semanas indo encontrá-la ás quatro da manhã e fugindo aos exatos quarenta e cinco minutos das cinco horas. Não entendei-me mal, não havia malícia em nossas conversas, apenas poesia, arte e história. Não a apresentarei agora, deixe-mos isso para adiante no texto, no momento só posso dizer as coisas que ela me transmitiu. Eu logo descobri o motivo de nos darmos tão bem, ambos éramos apaixonados pela beleza, cada um de sua maneira. Ela me contou sua história, disse-me que fora deixada na porta da igreja ainda quando bebê e cresceu junto às freiras esperando pela adoção ou pela vocação. Confessou-me que a vocação lhe faltava, apesar de ver na vida religiosa uma extrema nobreza, faltava-lhe fé. Confidenciou-me ainda que, apesar disso, parecia-lhe que essa seria sua única opção.
– Por que diz isso?
– Tenho doze anos de idade, há aqui mais de vinte crianças para a adoção.
– Ainda não compreendo.
– Ninguém quer adotar uma criança já crescida, eles querem ter o prazer de vê-la crescer, criar e educa-la.
– Pois estão absolutamente equivocados. Não há nada melhor que conhecer alguém já pronto e descobri-lo aos poucos.
– Para amigos ou companheiros talvez. Não tiro a razão dos pais, minha hora já passou, aceito minha missão, tornar-me-ei freira pois é essa a vida que me foi destinada.
– Tens apenas doze anos, ainda tem tempo.
– Não tentes me iludir, isto é ainda pior. Se desde pequena eu tivesse sido criada com a verdade, não passaria meus aniversários com tanto pesar.
– O que queres dizer?
– Passei toda a minha infância tendo como a idade minha inimiga de adoção, eis que no dia que lhe vi pela primeira vez estava completando meus doze anos de vida. A fumaça que saia de seu charuto formavam belas imagens, e é isso, somente isso, que me dói a alma.
– Não entendo.
– As belas imagens, a privação que terei de tê-las. Meus olhos só são presenteados com belas imagens sacras, dessas vejo a todo tempo, mas se eu pudesse, conheceria as belas imagens de todo o mundo.
E foi nesse dia que eu percebi que encontrara minha alma gêmea. Quando falava de sua buscas por algo que lhe acalentasse o olhar, sentia como se fosse a correspondência de um espelho.
Em minha adolescência e vida adulta conheci muitas mulheres, algumas delas cheguei a debater assuntos profundos, mas foram raras as que me apaixonei, todas superficialmente. Com essa pequena noviça eu me sentia completo como jamais pensei que me sentiria. O amor e afeição que me ligavam a ela não passava de puro narcisismo meu, no entanto não estava disposto a abrir mão disso, seja por egoísmo ou por auto-enganação.
Conversamos ainda um ou dois meses mais até que eu lhe fiz a pergunta que mudaria de vez a minha vida:
– O que me diz de ser adotada por mim?
Parecerei equivocado e muito provavelmente serei mal visto. Muitos pensarão que foi um absurdo pega-la como filha. Pro diabo com isso! Não chego a me importar com tais julgamentos pois tenho consciência que, muito provavelmente, o juiz de minha sentença nunca sentiu algo igual ao que eu senti. Não era paixão ou amor carnal, solidão ou necessidade de uma boa conversa. O melhor modo que tenho de explicar o tamanho da minha urgência é por maneira figurativa. Imagine que antes de nascer, Deus tenha cortado um pedaço de mim, um braço direito para mim que sou destro, tendo assim eu crescido adaptado a sua falta, sem lamentar por não possui-lo. Pois em certo ponto de minha vida, Deus devolve-me esse membro, em pura perfeição e com a capacidade de facilitar minha vida de maneira que eu jamais houvera sonhado. Pois assim era como me sentia, ela era meu braço, não cabia a mim nega-lo ou deixa-lo para outra pessoa que jamais o apreciaria como eu.
Logo eu dei entrada nos papeis, arrumei minha casa para ela com esmero, separei um quarto e mandei que lhe pintasse todo de branco. Coloquei uma cama e só. Achei justo que ela mesma mobiliasse o lugar, dessa forma se sentiria em casa. Avisei para os amigos e anunciei que daria um tempo nas festas e encontros sociais, enfim viraria homem de família e precisava de tempo para cuidar e conhecer minha nova filha. Eu era só alegria, ela também. Comprei-lhe uma boa máquina fotográfica, o melhor computador, um celular, roupas provisórias e contratei-lhe bons professores para que fosse culta e amiga dos maiores intelectuais, eu lhe previa um grande futuro. Enfim chegara o dia em que ela se mudaria para a minha casa. E essa enfim seria nossa casa, o nosso lar.


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