Diário do Silêncio escrita por Vaalas


Capítulo 3
Eu Sou Um Alien




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“Sou livre para o silêncio das formas e das cores.” — Manoel de Barros.

Não vi Cassie nos outros três dias que se seguiram. A segunda-feira havia se tornado uma quinta tediosa e fria, dominada pelo silêncio abissal costumeiro.

Eu esperava, depois dos últimos dias, que a garota simplesmente houvesse me esquecido. Não era uma novidade, acontecia com mais frequência do que eu poderia contar nos dedos, as pessoas sempre iam e vinha, fazia parte da natureza humana.

Era de se esperar que quando ela descobrisse a surdez e os blá blá blá, fosse dar as costas e fingir nunca ter trocado bilhetinhos comigo. Era algo que dava medo nas pessoas, como se temessem me quebrar ou falar algo que pudesse ofender. Logo, estaria eu novamente mergulhado no silêncio, desta vez sem distrações — ao menos por essas duas semanas, até Josh e James finalmente voltarem de suas férias prolongadas.

Eu sou um alien super sensível, então se afaste ou eu posso resolver abduzir sua avó. Dê adeus aos bolos de fubá (risada maléfica).

Na verdade, admito que me minha surpresa foi tamanha ao sentir um toque nos meus ombros, e olhos castanhos esverdeados surgindo na minha frente.

Estava sentando sob a sombra de uma árvore solitária no campus escolar. Era lá que de costume eu aguardava minha mãe em sua demora secular — e sim, eu tenho uma mãe. A questão é que a história da minha vida não é complexa como as histórias por aí: minha mãe não me abandonou por eu ser surdo, não se drogou, prostituiu, morreu ou afins. Era simplesmente uma mãe comum, com problemas comuns, fã de novelas mexicanas e super empolgada em conseguir em ampliar seus dotes culinários, para que no fim não sejamos obrigados a pedir pizza de pepperoni.

Por algum motivo — talvez Cassie não soubesse que além de surdo, eu era o filhinho da mamãe e estava aguardando-a como um bom garoto — ela surgiu e se sentou ao meu lado, encostando-se também na árvore e me fitando como se eu fosse a coisa mais fascinante dali.

“Desculpe por segunda-feira, você sabe, que o professor tenha brigado com você. Não era minha intenção e não sabia que você era... Você sabe.” Li seus lábios, pela primeira vez conseguindo entender o que ela dizia. Isso, até ela continuar. “... mas, sei lá, você [...] então eu [...] não concorda?”

Assenti positivamente, não entendendo bulhufas do último assunto dito. Aliás, acho bom deixar claro que eu nunca fui excepcionalmente bom em leitura labial. Sempre consegui aguentar durantes as aulas e não me perder, no entanto, aquela garota simplesmente não falava devagar. A sensação que tinha era a de que ela só mexia a língua e nunca fechava a boca.

“E... Droga, você não está prestando atenção, né?” Voltei a realidade quando li isso no movimento dos seus lábios finos.

— Não. — falei.

“Sinto que seu forte não é leitura labial” sorriu, concluindo o óbvio — se bem que a culpa era dela, não poderia falar devagar devido às circunstancias? — “Elliot, você é um péssimo surdo.”

Ergui uma sobrancelha, desacreditando que li aquilo. Pera, só um instante, aquela garota estava tirando onda com a minha surdez de forma amigável? Isso raramente acontece, e não sei se considero isso uma ousadia ou uma piada não-estou-sentido-pena.

Ou aquela garota era idiota ou tinha um senso de humor agradável. E apenas para mostrar que aprovei a interação, permiti-me rir nasalmente.

— Obrigado. — respondi. Acho que ela conseguiu entender, com sorte.

“Prefere falar assim” gesticulou “ou por escrita?”

Sabendo que não aguentaria ela falando, puxei a mochila para o colo e a abri, tirando meu caderno e uma caneta. Não sabia se queria mesmo ter um bate-papo com aquela estranha garota. Veja, não conseguia parar de me perguntar o que ela queria, havia se passado três dias, então, porquê?

“Por aqui tenho a vantagem de poder dizer algo além do “sim” e “não”. O som da minha fala deve sair extremamente vergonhoso empurrei o caderno para ela, que leu com um traço curvado nos lábios.

“Por aqui a preguiça de escrever me domina e eu não falo muito. Você leva vantagem de dois modos. ”

Sorri mais abertamente com aquele comentário, notando que ela não escondia o fato de ser uma metralhadora ambulante. Vendo que ela aguardava a minha resposta, voltei a escrever.

“Por que está aqui falando/escrevendo comigo? Faz parte de alguma comunidade de caridade? ”

“Não, estou falando com você porque quero. É tão estranhoassim? ”

— Você não faz ideia. — falei em voz alta, torcendo para não estar gritando.

Havia algumas coisas que eu conseguia falar, porém eram tão poucas que quando a chance aparecia eu sempre tratava de usá-las. “Você não faz ideia” é uma, já que era a frase de efeito do galã — que usava um pote de gel de cabelo por cena — em uma novela mexicana das três. Minha mãe, que sempre se deixa levar pela onda, pegou a mania.

Quando digo que minha mãe tinha uma mania, era porque ela tinha A Mania.

Exemplo:

O carteiro: Sra. Hathaway, esse pacote é seu?

Minha mãe: Você não faz ideia.

O vizinho: Sra. Hathaway, não acha que está na hora de tirar esse maldito arbusto da minha propriedade?

Minha mãe: Você não faz ideia.

A babá: Sra. Hathaway, acho que Elliot engoliu uma moeda.

Minha mãe: Você não faz ideia.

Eu: ...

Enfim, há coisas que para mim a dificuldade em falar não é tão grande. Outros exemplos são: “Saia do meu quintal! ”; “Cadê seu maldito pai? ”; “O que eu fiz para merecer isso? ”; “Os detergentes estão mais caros. ” E etc. Mas não se enganem se pensam que minha mãe só me ensinou a falar coisas inúteis — veja, a VNFI (Você não faz ideia) foi bem útil agora —, sei gritar “Socorro, ele/ela morreu/está entalado (a). ” ou “Fui mordido por uma cobra de pupilas elípticas que variam entre verde e preto, seu nome é boca de algodão. ”

Mas enfim, voltando ao presente.

“E não é que você sabe falar? ” Ela disse devagar.

Fitei-a fixamente decidindo se daria a ela o sorriso de confiança ou não. Provavelmente não deveria ficar encarando-a desse modo, ela parecia ser legal, acho. Não mais legal que os gêmeos Josh e James, mas era legal sim.

Por isso decidir fazer o que sempre fazia. Apanhei meu caderno novamente e o rabisquei sem deixá-la olhar o que estava escrito, e assim que acabei, estendi a ela.

A pergunta era simples, porém carregava grande efeito. Ainda tenho o pedaço de papel daquele dia no meu caderno, portanto vou colar aqui, Diário Feio:


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Notas finais do capítulo

Hey, hey.
Bem, obrigada aos que estão lendo, os comentários são super animadores e me dão vontade de postar tudo o que eu tenho salvo de uma vez só c:
Esse tipo de imagem que pus no fim, em forma de mensagem do caderno, vai ter com bastante frequência nos próximos capítulos. E é só isso que tenho a dizer, acho.
Obrigada por lerem, até mais!