O Colar do Parvo escrita por Marko Koell


Capítulo 6
O depoimento




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Matheus me levou para casa, depois daquele doce beijo, que ainda fazia com que eu me sentisse na lua, mesmo sem estar mais o beijando. Jamais que imaginaria que alguém como ele, seria tão delicado e ao mesmo tempo tão decidido. Sem sombra de dúvida ele corria atrás do que queria e sempre conseguia. Não falamos nada o caminho todo para casa, o que para mim, devo confessar, era árduo. Eu não sabia se era recíproco o que eu estava sentindo por ele.

Já no portão de casa, ao estacionar o carro ele olhou para mim. Seus olhos azuis cintilavam com a luz da lua.

– Amanhã te vejo na escola? – disse ele.

– Se eu não morrer, tenha certeza que sim! – eu respondi – Pensando bem, eu preciso ver.

– Ver o que?

– Qual é a hora do depoimento! Estou com mandado e, eu ainda não sei que horas eu tenho que estar lá. – eu disse com desanimo.

– Não precisa temer, porque em primeiro lugar você não teve culpa de absolutamente nada. Eles, provavelmente querem saber o que houve, sendo que algumas pessoas disseram que era o ônibus que estava em alta velocidade.

– Eu ouvi algo assim, mas ter que relembrar aquele dia enquanto eu ainda luto todos os dias para esquecer, machuca.

– Kayo, eu estarei sempre com você. Espero que isso possa valer à pena. – disse ele suavemente.

– Eu também espero que sim!

Por fim, ele me deu mais um doce beijo. Então eu saí do carro e ele se foi. Eu fiquei ali durante um curto tempo, vendo o carro dele desaparecer até que os faróis vermelhos traseiros sumiram ao virar a rua. Entrei em casa.

No meu quarto, ao deitar na cama eu relembrava dele me perguntando se eu tinha algum motivo para não beijá-lo. Não vou mentir que algo passou na minha cabeça, que nem mesmo Aline receberá dele um beijo daqueles. Tão doce, tão deliciado, tão incrivelmente apaixonante.

Acabei adormecendo e para variar, sonhei com Matheus. Estávamos num imenso jardim com árvores a todos os lados e muitas flores. Parecia cena de um filme romântico. Eu estava deitado em seu peito, e ambos olhávamos o céu azul com poucas nuvens. Eu podia sentir a presença dele e eu acreditava que estávamos juntos ali. Eu tinha certeza de que ele tivera o mesmo sonho, mesmo ele, nunca ter me contado. Mas de repente, algo ficou muito estranho.

Eu pude ver no céu um ponto escuro que ia ficando cada vez maior. Logo o sorriso no rosto de Matheus sumiu. Senti o meu coração bater mais forte e Matheus começou a arfar também. O ponto negro no céu crescia a cada momento. Era como se uma espécie de portal começasse a formar ali. Nós dois levantamos. Eu olhei para ele e depois para o céu. Ao voltar o olhar em Matheus percebi que ele não estava mais lá. O céu agora já estava todo escuro. Como se o dia simplesmente virasse noite. Começou a ventar e eu sentia frio. Um leve enjôo, uma náusea.

A grama parecia secar e as folhas das árvores começaram a cair. Era como se toda a vida daquele belo lugar simplesmente se esvaísse.

Aquela escuridão repentina e o sumiço de Matheus me deixou louco. Lembro apenas que eu comecei a correr e então vi uma luz cortar o céu e em seguida ouvi um barulho rouco que fez com que a terra tremesse. E então, eu acordei.

Já era dia quando meus olhos abriram. Minha mãe estava do meu lado me acordando.

– Acho que teve um pesadelo, apenas isso. – disse ela – Vamos! Você tem que ir a escola.

– Mas não é hoje que tenho que ir a delegacia? – eu disse ainda sonolento.

– Isso é apenas de tarde, meu filho. Agora levante.

Mais um dia duro na minha vida. Acordar, ir à escola, a tarde ir à delegacia e lembrar-se de tudo o que nos últimos quatro meses tento esquecer. A única coisa que compensava e que com toda certeza qualquer desventura que pudesse acontecer, seria eu ver Matheus.

Já na escola, meu pai havia me dado um dinheiro para comer algo no intervalo e disse que viria me buscar. Entrei e logo o avistei. Lá. Com ela. Aline.

– Bom dia! – eu disse a turma deles, Matheus me fitou.

– Bom dia!

– Bom dia!

– Bom dia, Kayo. E então se divertiu ontem, você foi embora cedo. – disse Aline.

– Estava com dor de cabeça, enfim...

– Que pena! O bom foi que Matheus te levou, ele disse que queria conversar com você. Espero que tenham conversado. – disse ela parecendo bastante irônica.

– Sim conversamos Aline, não é mesmo Matheus? – eu o indaguei.

– Bom dia também. E eu conversei sim, e é um assunto pessoal Aline, nem tente descobrir sobre o que se trata. – disse ele – E digo mais, terei outros assuntos a tratar com o Kayo e, por favor, não fique no meu pé. Você sabe o quanto eu odeio isso. – disse ele, ríspido.

Aline ficou sem ter o que falar. Os outros dois que estavam com eles desviaram o olhar.

– Desculpa se quero participar da sua vida! – disse ela.

– Para participar da minha vida, não precisa ser um grude e saber o que faço ou deixo de fazer...

– Eu já entendi Matheus! – disse ela, saindo da turma.

– E vocês dois? Vão querem saber de alguma coisa também?

– Não, estamos indo já! – disse um dos meninos e então saíram.

– O que foi isso? – eu perguntei.

– Existem certas coisas que devem ser cortadas logo no início.

– Que tipo de coisas?

– Antes que vejam demais! Vamos entrar?

– Vamos! – ele jogou uma piscadela para mim e entramos na escola.

– E então me diga, como foi sua noite? – perguntou ele.

– Acho que foi normal, como todas as outras.

– Normal? – indagou ele incrédulo.

– Estou brincando, - eu disse rindo – eu tive um pesadelo, - eu não queria parecer bobo em dizer que tinha tido um belo sonho romântico com ele, e que aquele sonho, se tornou um pesadelo – mas não quero não falar sobre isso. É mais um de meus pesadelos, estou acostumado com eles.

– Bem se esta acostumado com eles, então eu creio que deva se desacostumar.

– Por quê?

– Porque eu quero que você comece a sonhar comigo, e acho que isso seria o principio de tudo.

Ele acabou me deixando encabulado, e se eu tivesse um espelho na minha frente, com toda certeza eu veria meu rosto todo avermelhado de vergonha. Ele não precisava dizer que eu teria que sonhar com ele, pois eu tinha certeza que sonharia.

Matheus então parou e avaliou o pátio da escola, e vendo que não via ninguém me lascou um sutil beijo.

– Está louco? – eu disse.

– Por você! – disse ele lançando outra piscadela para mim – Agora preciso ir para a sala, tem trabalho de classe hoje para apresentar. A gente se vê depois.

Rapidamente ele subiu a escada e eu fui atrás dele, mas infelizmente, acabei por entrar em outra sala.

Certo de que as aulas seriam chatas, eu olhava para o relógio a todo o instante. Obviamente o fora que ele tinha dado em Aline me fez bem, assim como aquele beijo no pátio da escola. Mas o que mais me intrigou foi à forma como ele tratou Aline. Eu jamais esperaria que ele pudesse ser tão rude. No entanto eu entendi perfeitamente quando ele disse “que algumas coisas devem ser cortadas”, talvez agindo assim, o fato de todos verem a nossa aproximação, jamais iriam dizer que éramos namorados. Alias estranho eu dizer isso, sendo que ele ainda não havia me pedido em namoro, e muito menos eu a ele.

As minhas divagações ao ar me visaram perder toda a aula de História, e até mesmo a troca de professor. Eu rapidamente percebi que todos me olhavam, tentando entender o que se passava pela minha cabeça, e eu até nem ligaria e continuaria pensando em Matheus, se não fosse pela professora de matemática ter me chamado a atenção.

Intervalo. Até que enfim e ao ver Aline e perguntar de Matheus, ela grossamente disse que não sabia dele. Um dos dois amigos dele chegou a mim e disse que ele teve que ir embora, pois a mãe dele parecia estar doente. Fiquei sem entender, mais meu pai sendo médico, logo saberia o que tinha acontecido. Aquilo me deixou mal, tanto pela mãe dele, quanto ele não estar ali e por Aline. Eu a vi chorando com umas amigas quando o intervalo acabou.

No final da aula, eu recebi uma mensagem no celular. Era de Matheus:

Anjo, eu peguei teu número na agenda do meu irmão, fiz mal?
Boa sorte hoje lá, à noite passo na sua casa e conversamos melhor.

Ass: M.T

Gostei do “anjo”. Fiquei no portão esperando pelo meu pai que tardou a chegar. Sem muita pressa chegamos rápido a delegacia que estava vazia. O índice de criminalidade na cidade era quase que ridícula de tão pequena, trabalho de uma ótima prefeitura, talvez. Fomos recebidos por um oficial, que vestia o uniforme do estado.

– Boa tarde, o que seriam de vocês? – disse o velhote.

– Sou o pai de Kayo Rangel, ele veio dar seu depoimento sobre o acidente de ônibus.

– Ah, sim! Teria o mandato em mãos? Documentos seus e do garoto, por favor.

Meu pai então tirou da maleta seus documentos e os meus, junto com o mandato e entregou-os ao policial.

– Eu já volto, um momento. – disse ele.

Na espera eu pude ver que meu pai estava muito apreensivo. Não dei muita bola aquilo, já que ele sempre parecia ficar assim quando se encontra em momentos estressantes. Cerca de cinco minutos depois o policial voltou e pediu para eu o acompanhar, e pediu delicadamente que meu pai esperasse. Confesso que aquilo sim me preocupou. Meu pai parecia estar me entregando num batedouro. A sensação foi horrível.

Segui por um corredor estreito, cheio de portas até que o policial pediu para eu entrar numa sala. Nela uma mesa retangular no centro e três cadeiras, havia um bebedouro ali, uma grande janela com uma cortina cor creme amarrada de forma que a luz do sol pudesse entrar. Sentado numa das cadeiras, um homem velho, de terno e gravata preta me fitava com certa repulsa.

– Sente-se garoto! – disse o velho. Então sentei. O outro oficial saiu da sala.

O homem segurava uma pasta e começou a avaliá-la. Depois de alguns tortuosos minutos ele começou a falar.

– Você é o senhor Kayo Rangel, correto?

– Sim.

– Está com dezessete anos completo, correto?

– Sim.

– Mora na rua Alexandre Pinheiros, numero cinqüenta e sete, no bairro Alameda, correto?

– Sim.

– Bem Kayo, você esta aqui pelo ocorrido no dia 27 de março de 2005, cujo o ônibus ao qual você estava sofreu um acidente, ocasionando a morte de cinqüenta pessoas. Certamente, que nem eu, nem os oficiais presentes nessa delegacia ou qualquer pessoa do mundo o esta culpando pelo acontecido, no entanto existem famílias que querem saber o porquê do ocorrido. Foram feito laudos e laudos e, não conseguimos indicar sequer um motivo para que aquele trágico acidente acontecesse, onde você é o único sobrevivente. Logo, eu pergunto o que você se lembra daquele dia?

A pergunta mais difícil de todas, o que responder? Comecei a suar frio.

– Eu não lembro ao certo, eu estava ouvindo musica no celular e eu acho que adormeci.

– Kayo, obtivemos informações de que virão o ônibus passando pela rodovia em alta velocidade. Alguns motoristas disseram que dentro do ônibus estava uma zona. Mesmo assim você acha que adormeceu?

– Sim.

– Kayo cinqüenta pessoas morreram, talvez por irresponsabilidade do motorista do ônibus da sua escola. Tem que nos ajudar a entender o que houve. Felizmente você foi o único sobrevivente, tem que se lembrar de algo.

– Eu não sei o que pode ser tão importante, já aconteceu. Não? Porque reviver o passado? – eu disse agoniado.

– Sim, aconteceu e eu preciso entender o porquê que aconteceu. Famílias perderam pessoas queridas ali, tem que ter tido alguma razão. – disse ele engrossando a voz.

– Mais eu não sei de nada! – eu dizia constantemente. Aquilo já estava me irritando e por mais que eu não quisesse chorar, eu sentia que alguma coisa úmida começava a brotar dos meus olhos.

Eu entendia que era frustrante para qualquer um quando eu dizia que não lembrava. O que de fato foi verdade, o que eu omitia de todos é que momentos antes eu senti que algo de ruim fosse acontecer. Mas eu também não tive culpa disso, não é normal ver ambulâncias andando pelas estradas, quanto que, na verdade, não havia nenhuma. - Como não se lembra? – dizia ele aos berros.

A pressão de ter que dizer algo que eu não sabia como tinha acontecido me tirou a paciência, e aquele policial conseguiu sentir isso.

– Eu não sei, eu não sei... – eu dizia quase que sufocando.

– Mas precisa saber de algo, moleque! – disse ele se levantando e ríspido – Eu vou dar uma volta, quem sabe você consiga se lembrar de algo. – terminou ele dizendo ironicamente.

O velho saiu da sala e logo o desespero tomou conta de mim, aquilo não podia estar acontecendo comigo. Eu ali naquela sala pequena e sozinho. Eu tinha medo de estar numa situação como essa, e logo o ar começou a faltar. Eu arfava muito e meus olhos pareciam um chafariz de tanto que eu chorava. Eu levantei e andei por todos os lados da sala até que fui a porta, e percebi que ela estava trancada. Eu comecei a bater na porta pedindo para alguém vir me ajudar. Chamei pelo meu pai. Pela minha mãe. Por Matheus.

Foi então que eu senti que a sala ficou fria e a luz começou a piscar, como se a qualquer momento fosse queimar. O desespero começou a tomar conta de todo o meu corpo. Comecei a bater com mais força na porta e a pedir por socorro e então a luz apagou.

Da janela pude ver um feixe de luz irradiar a mesa, lentamente. Eu fiquei ali parado observando e tentando entender o que seria aquilo. E então eu o vi.

Ele estava diferente, parecia mais magro. Os cabelos um pouco maiores, sua pele não estava tão clara como antes, talvez pela falta de luz. Vestia as mesmas roupas daquele dia, um shorts vermelho com tênis e um blusão de frio cor gelo. Era Júnior, meu melhor amigo e irmão de Matheus. Ficou sentado na mesa me fitando com uns olhos tristes e percebi que queria dizer alguma coisa, mais parecia não sair som de sua boca. Alias sua boca parecia não mexer por mais esforço que ele fizesse.

Lentamente a luz foi voltando a reinar na sala e a imagem de Júnior foi desaparecendo como uma leve fumaça sendo levada pelo vento. Eu não senti medo, mais fiquei impressionado. Dei dois passos até a mesa e a porta abriu. Era o velhote que quando me viu ficou atônito.

– Mais o que houve com você? – perguntou ele preocupado.

– Como?

– Está sangrando... venha...

Saia sangue de meu nariz, de uma forma incalculavelmente incrível. Meu pai foi chamado e me colocaram deitado em um banco de madeira de três lugares que havia no corredor. Quando meu pai chegou, ele gritou com o policial pedindo para que ele se afastasse de mim.

– Eu estou bem pai! – eu dizia, mais ele parecia não ouvir.

– Pegue gelo, um pano... qualquer coisa. Vou levá-lo ao hospital imediatamente.

– Pai...

– Vamos me ajudem aqui com ele...

– Pai...

– VAMOS... – dois policiais me ergueram e me levaram até o carro de meu pai.

– PAI! – eu tive que gritar.

– O que foi?

– Quero falar com Matheus...

– Que Matheus?

– Como que Matheus pai, o irmão do Júnior...

Eu não consegui ter uma resposta, se meu pai ia ou não chamar por Matheus. Fui colocado no carro e chegamos ao hospital rapidamente. Depois de todos os procedimentos médicos básicos e não tão básicos, me deixaram numa sala para descansar. Eu olhava para o teto e via formas nele. Sempre via a silhueta de Júnior sentado na mesa me olhando.

– Meu Deus! O que houve com você? – era Matheus, ele fechou a porta e veio até mim, sentado na cama e me abraçando. Aquele abraço foi tão reconfortante.

– Eu não sei... na realidade meu pai fez mais alarde do que devia. – eu disse despreocupado.

– Mesmo assim, com essas coisas não se brinca. – disse ele agora segurando a minha mão – Seu pai ligou para o meu, e então ele me disse o que tinha acontecido. Minha mãe esta no andar de cima. Ela fuma que nem uma louca, os médicos suspeitam de enfisema.

– Que horror!

– Sim. Mais ela está melhor, só terá que se cuidar mais. Mas ela está bem, agora estou preocupado com você. Eu não consigo entender como você conseguiu fazer isso comigo.

– Fazer o que? – eu disse, com um sorriso contido.

– Me deixar tão loucamente apaixonado. Eu não sei explicar, mas eu me preocupo tanto com você... sempre me preocupei. Eu não sei como eu pude esperar tanto tempo pra ter você pra mim.

– Ah, Matheus. Não fale assim, eu fico sem jeito... e quanto ao que você disse, eu não sei o que responder, eu nunca consegui se apaixonar por mim mesmo...

A presença dele foi fundamental ali naquele momento, já que eu estava me sentindo sozinho e não sabia onde meu pai estava, e muito menos o porquê da minha mãe nem da minha tia não terem chego ainda. Matheus era paciencioso comigo, ficou ali do meu lado, ora me observando, ora me abraçando, ora me beijando. Engraçado era quando alguém batia na porta e ele corria para se sentar na cadeira ao lado da cama, sempre rindo, deixando as enfermeiras sem entender o motivo.

– Eu só sei que eu preciso estar do seu lado. Sempre!


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