Olho Grego escrita por Lucena


Capítulo 2
Capítulo 2




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O primeiro mês foi o mais difícil. Alice teve que lidar com questões judiciais e burocráticas, ainda sobre a morte de seu pai. Ela vendeu seu carro, para pagar as despesas do velório, e para as despesas da casa, despediu a empregada, e trancou sua faculdade. Ela aproveitou que as aulas do semestre seguinte ainda não tinham começado. Não queria encontrar seu ex namorado, muito menos suas colegas que já deviam saber do rompimento. Certamente elas iriam olhá-la com um “Nós bem que te avisamos” estampado no rosto. Alice não precisava adicionar isso à sua lista de acontecimentos desagradáveis.

Os dias se passavam, pesados, arrastados, e deixavam pra trás toda uma vida... Uma vida que não existia mais. Um pai, um marido, um homem, que se perdeu, e se foi. Jamais voltaria. Quando esses pensamentos vinham à mente de Alice, ela os expulsava. Não tinha mais tempo pra ficar deprimida, ela tinha que cuidar de si e de sua mãe.

As visitas diminuíram após duas semanas da morte de seu pai. Um mês depois, já não aparecia ninguém. Alice gostava de ver que as pessoas gostavam de seu pai e se importavam com ela e sua mãe, por isso fazia questão de receber as visitas, e caso não estivesse em casa no momento da visita, fazia questão de ligar para agradecê-las. Mas sentiu-se aliviada por não ter mais que falar com as pessoas todos os dias sobre a morte de seu pai, sobre como se sentia, e como seriam suas vidas dali em diante. Ela queria ter a escolha de falar sobre isso quando quisesse, e não por ter que responder por educação.

Agora ela se ocupava com os cuidados da casa, não queria que sua mãe se esforçasse, pois desde a morte de seu pai ela estava muito fragilizada. Era uma casa grande. Grande para três pessoas, e agora parecia ainda maior sem seu pai. Alice chegou a falar com sua mãe sobre vender a casa e comprar outra menor para elas, mas Mabel se recusou, disse que apesar daquela casa ter sido o local de um acontecimento tão horrível, foi também onde ela viveu a maior parte de sua vida, a parte mais feliz de sua vida. Foi ali que ela descobriu que estava grávida de Alice, foi ali que Alice nasceu, que deu os primeiros passos de sua vida, disse as primeiras palavras. Foi ali que seu pai a ensinou a ler e escrever, a nadar, a rodar bicicleta... Cada parte da casa continha um pedaço de suas vidas. Ela não conseguiria deixa-la. Alice acabou concordando com a mãe. Elas enfrentaram dificuldades demais em tão pouco tempo, não conseguiriam enfrentar mais uma naquele momento.

...

No segundo mês as coisas pareciam diferentes. A dor estava ali, mas amortecida. Era como se ela tivesse criado uma barreira protetora ao redor de seus sentimentos. Alice evitava falar sobre seu pai, pois após um tempo percebeu que as pessoas já não se importavam mais. Ninguém queria ouvir sobre um homem que suicidou-se meses atrás e deixou esposa e filhas desesperadas. As pessoas seguem suas vidas, não se prendem ao sofrimento alheio. Dar apoio a quem sofre é bom, mas torna-se um fardo se for exigido repetidas vezes. Mesmo com sua mãe ela evitava o assunto. Era triste, mas sempre que falavam sobre ele elas sofriam, porque ao lembrar dele, lembravam também de sua morte. Não que elas não quisessem aceitar que ele morreu, mas sim como morreu.

Alice começou a procurar emprego, mas sabia que seria difícil. Estudou até o nono semestre da faculdade de medicina, mas isso não lhe faria conseguir nada. “Se ao menos eu tivesse terminado a faculdade!”, lamentou. Ser médica sempre foi seu sonho, desde criança. Quando aparecia algum pássaro machucado no jardim, ela tentava fazer uma tala em sua asa para ajuda-lo mas seu pai sempre o levava e dizia que cuidaria dele. Alice nunca soube se de fato ele havia cuidado dos pássaros. Nunca o questionara pois confiava muito nele. E quando ele voltava e dizia a ela que ia ficar tudo bem, ela acreditava sem hesitar.

Alice imprimiu seu currículo e foi leva-lo a uma perfumaria que estava com vaga para gerencia. Ela chegou à loja, e ficou empolgada. Seria maravilhoso trabalhar em um ambiente tão perfumado e repleto de beleza como aquele. Uma vendedora a abordou.

− Bom dia, meu nome é Beatriz. Posso ajuda-la?

− Bom dia. Ahm, meu nome é Alice. Eu vim pela vaga de gerente.

− Ah, sinto muito, mas a vaga já foi preenchida.

− Mas eu vi o anúncio ontem no jornal.

− Bem, já temos uma nova gerente há uns três dias. Com certeza esqueceram de retirar o anúncio. Mas eu acredito que vão abrir vagas para vendedoras.

Alice não sabia se se sentia azarada pela vaga de gerente ou sortuda pela de vendedora. Beatriz ficou olhando-a, esperando uma resposta.

− Onde eu coloco o meu currículo?

Alice foi levada até a gerência para ser entrevistada pele gerente que roubara seu emprego. Ela não estava preparada para uma entrevista, isto era incomum. Ela esperava levar seu currículo e ser chamada para uma entrevista agendada, mas eles não queriam desperdiçar tempo, tinham urgência.

− Alice.

− Sim.

A gerente olhou para ela, como se para calar-se. Alice sentiu um arrepio na espinha com aquele olhar e imaginou-se sendo subordinada daquela mulher. Não gostou da ideia. Ela continuou olhando o currículo de Alice.

− Pelo que vejo você não tem nenhuma experiência anterior.

− Na verdade não.

− 24 anos e nenhuma experiência.

− Mas acredito que não haverá problema, é só vender perfumes.

A mulher a olhou como se ela tivesse falado a maior estupidez do mundo e Alice arrependeu-se pelo que disse.

− Se você acredita que esse trabalho é só vender perfumes com certeza não está capacitada para o cargo.

Alice sentiu um nó no estômago, não estava preparada para aquela entrevista. Não sabia o que responder, nem se deveria responder.

− Fala inglês, tem noções básicas de informática, trabalhos sociais... Nada que a ajude muito para esta função.

Alice sentiu-se envergonhada. “Se não era qualificada para ser vendedora de perfumes, para o que mais seria?”, pensou. Nunca havia trabalhado na vida, não fez cursos porque estava focada em sua carreira como médica. Para que faria cursos de secretariado, administrativo ou gestão de pessoas? Mas afinal, era só pra vender perfumes! Qual a dificuldade daquilo?

− Eu entendo. – Disse Alice por fim.

− Mas você é bonita, parece ser educada, e precisamos aumentar nossa equipe de funcionários. Deverá aprender algumas coisas básicas, principalmente sobre os perfumes. Nós não só “vendemos perfumes” nós encontramos um aroma, uma fragrância especial para cada cliente. É uma arte. E você deverá ter isso sempre em mente. Vou pedir para que uma de nossas funcionárias lhe explique tudo. Você deverá chegar aqui amanhã às oito em ponto, sem atrasos! O expediente acaba às dezessete horas, e você terá pausa para o almoço de uma hora, intercalando com as outras funcionárias. Nós temos um uniforme completo: calça e blusa ¾ com a nossa logomarca. Você receberá um após sua preparação. O salário inicial é um salário mínimo, até o fim do período de experiência. Após a contratação, se houver, obviamente, você receberá outros benefícios adicionais, que somados serão o dobro do salário, e poderá ganhar também gratificações de acordo ao seu desempenho. Podemos começar?

Alice estava confusa. A gerente havia falado aquilo tudo muito rápido e naturalmente, como se fosse o pai nosso. Ela não conseguia lembrar da metade do que havia escutado.

− Podemos começar ou você tem algo mais importante pra fazer?

Ela soou ameaçadora.

− Sim, claro.

Alice queria sair dali o quanto antes, estava assustada com aquela mulher.

− Muito bem, me acompanhe.

Ela foi levada até a funcionária que a atendeu anteriormente. Beatriz recebeu ordens para explicar a Alice da maneira mais rápida e eficiente sobre como receber as pessoas e atende-las, as formas de pagamento, os produtos, e as regras básicas da perfumaria. Alice prestou atenção à tudo que lhe havia sido explicado e ficou repassando tudo em sua mente para que não esquecesse depois, não queria cometer nenhum erro, pois saberia que no primeiro deslize seria demitida. Apesar de precisar de uma funcionária imediatamente, aquela gerente certamente não toleraria nenhum erro.

...

− Mãe, você está em casa?

Mabel desceu as escadas.

− Onde mais eu poderia estar?

Alice ficou triste ao ouvir aquilo. Desde a morte do marido, Mabel evitava ao máximo sair de casa. Qualquer coisa que ela precisasse resolver, pedia para que Alice cuidasse.

− Eu consegui um emprego.

Mabel mostrou-se surpresa.

− Um emprego? Mas você não me disse que estava à procura de um.

− É que eu não queria criar grandes expectativas. Enfim, eu vou trabalhar em uma perfumaria, como vendedora.

− Isso é ótimo querida, mas você não acha que ainda é um pouco cedo? Não sei, nós ainda temos algum dinheiro para as despesas e enquanto isso você poderia procurar algo que realmente goste de fazer.

− Mãe, aquele dinheiro não vai durar pra sempre. Eu preciso trabalhar agora, para termos algumas reserva. E eu nunca vou encontrar algo que eu goste de fazer, porque o que eu quero fazer é ser médica, e só poderia ser se concluísse o curso de medicina, o que no momento não é possível. E como eu não tenho nenhuma experiência profissional, certamente não conseguirei um emprego melhor.

− Eu sinto muito filha. Sei o quanto você ama a medicina e quão difícil foi pra você ter que interromper seus estudos.

− Não se preocupe mãe, eu estou bem.

Mas na verdade não estava. Alice queria acreditar que não se importava, que encontraria algo para amar tanto quanto a medicina, mas sabia que isso seria impossível. Ela queria ser médica, ajudar as pessoas, salvar vidas. Esse sempre foi seu projeto de vida, seu sonho. E ela o havia interrompido. Agora restava a ela um emprego como vendedora de perfumes. Aquilo não era para ela. Ela não se encaixava ali. Fazer algo sem amor é pior do que não fazê-lo. Só nos dedicamos com afinco àquilo que amamos, ao que damos valor.


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