If i remember escrita por Just a writer


Capítulo 2
She's not a bitch




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/517021/chapter/2

– Joguinho do capeta – a enfermeira loira reclamava pela décima terceira vez, enquanto jogava Flappy Bird no celular.

Os médicos do hospital estavam preocupados comigo. Achavam que se eu passasse muito tempo com Dawn Hansen, não conseguiria reatar minhas outras amizades do meu passado esquecido. Então o que fizeram: a minha “querida” enfermeira Betty, sempre vinha me fazer companhia na hora do almoço, na esperança que eu conseguisse me enturmar com outros que não fossem a Dawn.

– Acho que seus pais vão vir essa tarde – Betty comentou enquanto guardava o celular no bolso.

Aquela noticia tinha me dado esperanças. Eu tinha ficado surpreso que ninguém viera me visitar depois que eu acordei. Tinham me dito que os meus pais estavam numa viagem.

E o prêmio pais do ano vai para... Senhor e senhora Rowe. Ah, me desculpem. A família Rowe foi desclassificada por negligencia ao filho.

Betty ficava olhando o relógio de pulso dela a cada cinco minutos, talvez torcendo pra acabar a meia hora de folga dela e me deixar sozinho com Dawn. Ela foi a única pessoa no hospital que não via as horas pra começar a trabalhar, ela quase rezava pra folga dela acabar e voltar ao trabalho. Quando acabava o turno de alguma enfermeira ou médico, não sei, dava pra ouvir um grito de Aleluia vindo dos corredores. Mas voltando a Betty, por dentro, eu também esperava que o horário de almoço dela também acabasse para que eu pudesse conversar com Dawn. Ela era a única com quem se poderia ter uma conversa amigável. Claro, também tinha outros pacientes ali na sala com a gente, o mais conhecido era o Jerry. Aquele velho sempre contava historias de quando ele foi para Nova Orleans. Quando ele começava a contar, ele não parava, nem mesmo pra mijar.

– Muito bem – Betty se levantou da cadeira e pôs as mãos no bolso do avental. – Tô indo, caso tenha algum problema, é só apertar o botão... ah, você já sabe do protocolo todo. E por favor... – ela falou pro Jerry, que olhou para ela com pouco interesse – Se tiver que mijar, por favor, me chama. Não agüento ficar trocando os seus lençóis toda hora – Betty puxou o celular e saiu da sala.

– Vaca – murmurou Dawn depois que a enfermeira saiu. – Ela ta aqui pra que, afinal de contas?

– Vai saber – eu peguei um pedaço de bacon. Eu tinha deixado a minha bandeja de comida no pé da minha cama, para o caso de ainda sentir fome. – E ela não é uma vaca. Ela só não gosta de ficar aqui.

– Era pra ela ta falando com você – Dawn socou o travesseiro debaixo da cabeça dela. – E por que você ta defendendo ela?

– Por nada – respondi mastigando o bacon.

– Por nada – Dawn disse com um tom sarcástico. – Sei, nada. – a garota afundou o rosto no travesseiro.

– Por que esse ódio pela Betty?

– Por nada – a voz dela foi abafada pelo travesseiro.

Sinceramente, eu não sabia os requisitos mínimos para ser odiado por Dawn Hansen. Acho que ser a enfermeira Betty é um desses requisitos.

Peguei a bandeja de comida e pus na mesinha que tinha do lado esquerdo da minha cama. Peguei as minhas muletas que tinha ganhado no dia anterior e me levantei, com certa dificuldade, e fiz o meu caminho até a janela mais próxima. E fiquei ali, com a cara colada no vidro, observando os carros das famílias dos internados entrando e saindo do hospital. O estacionamento do Hospital Memorial de Red Hill não era muito grande, e se você achasse um lugar pra estacionar, podia se considerar um sortudo. A ala para os médicos era ainda menor, com somente dez vagas. Eu gostava de ver os carros, eu pensava que talvez que dentro de um deles estavam os meus pais, e com eles a expectativa.

Era difícil ficar quieto, sabe, os meus pais poderiam me contar sobre quem eu era. Acho que com isso eu poderia ter certeza sobre as minhas escolhas, e como eu continuaria a ser. E meu maior medo era de eu ser um babaca na minha outra vida. De vez em quando, penso se as outras pessoas que tem amnésia pensaram a mesma coisa que eu. No tempo que tava no hospital, eu meio que criei um mantra: se um dia eu fui um merda, não serei mais.

– Sabe, ficar aí babando na janela não vai fazer os seus pais aparecerem – disse Dawn enquanto se preparava pra sair da cama.

– Mas não é motivo pra mim não olhar – eu sai da frente da janela, encostei as muletas na mesinha, e me sentei na cama.

– Se eu fosse você, - ela roubou com rapidez uma fatia de bacon e começou a mastigar – Estaria muito puta com eles. Mas que tipo de pais são esses que não vem visitar o filho que está no hospital?

– Não sei.

– Meus pais sempre vinham me visitar no hospital em Nova Orleans, depois que um raio me acertou – disse o velho Jerry.

– Viu Rowe? Até o Jerry tinha visitas em Nova Orleans – insinuou Dawn.

– Eles vão vir – falei com certa irritação. – Uma hora eles tem que vir... – sussurrei para mim mesmo.

Esperei uma resposta de Dawn, mas ela não falou nada.

Eles esqueceram mesmo de mim? – pensei. Uma parte de mim achava que Dawn estava certa, e eu deveria ficar puto com eles. Mas eu estava cansado demais para ver a minha razão e a minha esperança se digladiando. Para minha sorte, o pessoal do hospital tinha deixado alguns quadrinhos para mim ler, caso eu ficasse entediado. Estiquei a mão e peguei um, o folheei sem o mínimo de interesse, somente para afastar qualquer pensamento da minha cabeça.

Naquela tarde, eu sonhei. Era o primeiro sonho que eu tive. Quero dizer, não me lembro de nenhum outro sonho antes deste. Eu estava num parque, e o sol brilhava suavemente atrás das folhas e dos galhos das árvores. A minha visão era um pouco embaçada, então não deu para distinguir nada. Ouvia o barulho do riso de crianças e os brinquedos de ferro ranger. Era tudo muito familiar pra mim. Olhei para baixo e vi as minhas pernas, eu estava vestindo uma calça jeans escura e um tênis preto com três listras brancas nos lados.

– E então? Já se decidiu? – uma voz feminina com um tom doce sussurrou ao meu ouvido.

Eu olhei para o lado direito, e vi quem tinha falado comigo. Era uma menina da minha altura, com longos cabelos loiros e uma pele branca como a neve. Mas eu não conseguia enxergar o seu rosto, somente os contornos. Nós estávamos sentados no topo de um morrinho, observando as coisas acontecerem ao nosso redor.

– E aí? Como vai ser Rowe? – a menina deu um tapinha no meu ombro.

– Como vai ser o quê? – perguntei. A garota gargalhou.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha direita com os dedos.

– O que você vai fazer depois de terminar a escola. Então, o que vai ser Rowe?

– Me desculpa, quem é você mesmo? – pus uma perna em cima da outra, fazendo um quatro.

– Você ta bem Evan? – ela abraçou os joelhos e deitou a cabeça sobre eles.

– Não, sério. Quem é você? Eu não me lembro do seu nome – a minha visão estava embaçada, mas deu para perceber ela piscando.

– É Harriet. Qual é, Rowe. Você ta me assustando – Harriet recuou um pouco.

– Me desculpa. Não era a minha intenção – tentei ser o mais calmo o possível, para não deixá-la mais nervosa.

Continuamos observando a paisagem a nossa frente em silencio. Harriet não se mexia nem um centímetro, era como se uma estatua estivesse me fazendo companhia. A brisa fresca batia contra nossos rostos, e jogava os cabelos loiros de Harriet para trás. O sol acentuava aquele dia perfeitamente, como se ele falasse: Hoje, irei ser a coisa mais bela nesta parte do mundo. Mas ele perdia feio para Harriet. Eu não via seu rosto, mas seu corpo eu via claramente. A pele branca combinava com seus cabelos loiros um pouco ondulados, Harriet era magra, mas não em demasia, e seu busto não chamava a atenção. Ela vestia uma regata laranja, com um short jeans claro.

– O que você vai fazer depois da escola, Harriet? – perguntei. Com um sobressalto, ela virou o rosto para mim.

– Já te falei – o tom de voz dela era calmo. – Vou viajar pelo mundo. O que? Quer ir comigo?

– Não. Tenho que resolver algumas coisas ainda – tipo, saber quem eu sou. Simples assim.

– Ta bom. Mas você ainda não me respondeu. O que você vai fazer depois da escola? – ela perguntou.

– Não sei. Acho que vou descobrir mais sobre mim – olhei para o parquinho abaixo do morrinho.

– Boa sorte com isso. Que a Força esteja sempre com você.

Quando ia olhar para Harriet, tudo se dissolveu na escuridão.

Eu senti uma mão sacudindo o meu ombro esquerdo, me chamando pelo nome.

– Evan. Evan, acorde. Você vai querer ver isso. – a pessoa insistia.

Abri os meus olhos lentamente, deixando os meus olhos se acostumarem à luz. A revista em quadrinhos estava jogada aberta em cima do meu peito, e pequenos pedaços de arroz em volta da minha barriga. Olhei em volta, e percebi a presença de alguém ali. O doutor limpava a lente dos óculos redondos com a camiseta branca e havia um sorriso cheio de dentes em sua boca. Olhei um pouco mais pro lado e vi duas pessoas. Uma era uma mulher um pouco magra, com curtos cabelos castanhos caindo sobre os olhos de cores esverdeadas. Sua boca era fina e o nariz comprido. Ela vestia uma blusa azul marinho esportiva com uma camiseta preta por baixo. Do lado esquerdo dela tinha um homem grande, com cabelos negros curtos, os olhos eram azuis escuros com uma boca pequena e uma barba por fazer grisalha.

– Quem são vocês? – perguntei sonolento. Me arrastei até conseguir me sentar, deixando as cobertas sobre as minhas pernas.

A mulher soltou um gritinho abafado e começou a chorar no ombro do outro homem.

– Evan – o medico negro pôs a mão sobre o meu ombro. – Esses são seus pais.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!