Ruína escrita por Aislyn


Capítulo 5
A Cruz e A Espada




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Doeu tanto ouvir Seiji dizer que não me deixaria ir embora... Como eu ficaria ali? Não existia nada que eu pudesse fazer, simplesmente não era uma opção. O que dizer para ele? Eu seria covarde se saísse dali outra vez sem explicações e tinha quase certeza de que ele sucumbiria aos seus vícios, medos e àquele vazio se isso acontecesse. E se eu apagasse tudo da memória dele? Também não adiantaria... Ele continuaria vivendo da mesma maneira. Não tínhamos poderes para manipular um humano a ponto de fazer com que a natureza dele mudasse, e a de Seiji era autodestrutiva.
Tentei ficar em silêncio, trocando carinhos e beijos, sem ao menos saber direito o que estava fazendo. Nunca imaginei que era tão fácil me entregar a um sentimento humano, sequer sabia que um ser celestial conseguia sentir tantas sensações ao mesmo tempo como aquelas que eu sentia. Eu estava viva realmente... Minha existência que só se resumia a batalhas, agora podia provar de uma sensação que dava muito mais contentamento.
Finalmente eu entendi o que aconteceu naquele beco e porquê eu o trouxe à vida... Ele era a parte que faltava em mim, aquilo que tanto busquei dia após dia, a resposta para existir que eu nunca havia compreendido. Eu não queria saber como era possível...

– Hey... Precisamos conversar – criei coragem e grudei a minha testa na dele. Queria olha-lo nos olhos o mais próximo que conseguisse. – Você precisa entender que eu não posso ficar aqui.

– Não... – Ele se levantou bruscamente e sentou-se na cama, me olhava com um ar de dúvida, como se não acreditasse no que eu disse. – Eu não vou permitir!

– Se fosse pela minha vontade apenas... Receio não poder explicar. É algo muito maior do que nós dois.

– Você é minha – ele disse sorrindo. – O destino a deixou ao meu lado naquela noite e eu te perdi uma vez... Não vou perder de novo.

– Ah, Seiji...

Nem precisei olhar sua aura ou ler sua mente para saber no que ele estava pensando. Ele jamais entenderia, a não ser que eu mostrasse a verdade. Com um temor imenso dentro de mim, me levantei e fiquei em pé diante dele. Cerrei os olhos e fiz com que minhas asas surgissem, assim como o halo dourado que me envolvia sempre que eu as abria. Quando em minha forma celestial eu não envergava armadura, trajava um vestido branco que ia até as coxas, braceletes prateados, uma tiara brilhante cingindo a cabeça e sandálias brancas amarradas nos tornozelos.
Eu fiquei surpresa com a serenidade dele ao ver tudo aquilo, parecia que ele até sabia o que eu era. Um pouco em dúvida, ele se aproximou de mim e tocou minhas asas. Seu sorriso encantador surgiu, vi que ele queria falar, mas não conseguia. Estava feito, eu não podia recuar.

– Entende agora? – Perguntei com pesar. – Viu a magnitude disso tudo? Acha que se fosse a minha vontade eu sairia realmente do seu lado?

– Você é meu anjo da guarda – ele falou com convicção. – Foi assim que me trouxe noite passada...

– Eu não sou sua guardiã – lamentei. – Sou um Arcanjo, guerreira... Eu sirvo para lutar contra seres que tentam destruir a humanidade. Minha existência se resume apenas a erguer uma espada e atacar, nada mais. Encontrei você por um acaso, até hoje não sei como tudo aconteceu.

– Parece que estou sonhando – Seiji afastou-se e foi até uma gaveta, onde pegou um cantil que continha bebida e o abriu. – O que vai acontecer agora?

– Não sei – fiz com que minhas asas sumissem e assumi a forma humana. – Mas preciso que você largue isso... Não vou permitir que jogue sua vida fora a cada gole, a cada droga que consome! Ao menos isso você tem que tentar fazer por mim.

– E o que você vai fazer por mim? – Ele colocou ênfase no “você” e me olhou como se estivesse me desafiando. – Aliás, o que você pretendia desde o começo?

– Acha que sei? – Tentei conter o choro quando o vi beber aquilo de uma vez só. Eu começava a odiar aquelas emoções humanas, era horrível ter um coração que podia doer e o que era aquele nó na garganta quando eu prendia o choro? – Se quiser, eu vou embora... Infelizmente não posso fazer mais por você. Já lhe dei uma nova chance para consertar sua vida, continuar escrevendo sua música, fazendo seus shows. Eu lhe dei o dom da vida novamente, Seiji! E olha o que você fez hoje, quase morreu outra vez...

– O que quer dizer com “outra vez”?

– Nada – abaixei a cabeça, não conseguia encara-lo. – Por favor, não beba mais hoje... Nem amanhã. Você não precisa disso.

– Konayuki, me deixe então... Eu preferia ter morrido de verdade a saber que é impossível tê-la ao meu lado.

– Eu posso ficar essa noite com você...

– Uma noite não é eterna – disse ele com a voz embargada. – Vá em paz.

Eu não sabia mais o que dizer, ele tinha razão, não havia como eternizar uma noite. Eu o olhei uma última vez e sai dali, me teleportando rumo aos céus já de asas abertas. Só queria voar para o mais alto possível e reprimir a vontade de voltar lá. Teria sido mais fácil se ele tivesse me dado a chance de uma despedida, de um último beijo...
Tudo o que me restava era voltar para o Reino dos Céus, entretanto, eu tive a sensação de que meu lar era ao lado dele. E o que eu faria dali por diante? Sabia que outra vez pensaria nele todo o tempo... Avistei o topo de um prédio e pousei, precisava refletir antes de encarar a realidade.
Éramos dois estranhos, de mundos completamente opostos. Por ele eu havia pecado duas vezes e naquele instante tive consciência do que eu havia feito. Como ele conseguiria seguir em frente com aquela verdade? Algo me dizia que Seiji poderia enlouquecer de vez.
Minhas asas me levaram exatamente para onde minha vontade queria ir, já era noite e estava tudo escuro no apartamento dele. Abri a janela da sala e acendi a luz de um abajur, então, meu corpo congelou. Eu nunca tinha sentido aquilo antes, não era normal ficar sem ação... Ele estava debruçado na mesinha de centro da sala, havia cocaína sobre ela, comprimidos, copos vazios e garrafas pelo chão... Seus pulsos estavam cortados e sangravam muito. Concentrei-me e pude ouvir seu coração, estava batendo ainda, muito fraco. Ele havia sido rápido demais... Eu me aproximei e ajoelhei ao seu lado, não tinha coragem de tocá-lo.
Aquele então era meu castigo? Ao menos ele não havia sofrido tanto quando procurou a morte pela primeira vez...

– O que eu fiz? – Perguntei para mim mesma. – Pela primeira vez eu perdi uma batalha...

– E eu ganhei uma!

Uma voz ecoou pela sala, seguida de uma risada assustadora. Empunhei minha espada rapidamente e fiquei em alerta, sentia uma presença muito forte ali. Meus olhos se fixaram na sacada, saltei para perto da porta de vidro que estava aberta e ali eu vi surgir um homem bem vestido, longos cabelos negros, de beleza indescritível. Seu rosto de traços fortes estava voltado para mim, os olhos vermelhos ardiam em chamas me encarando com fúria. Como eu não havia percebido aquilo antes? Será que o sentimento que Seiji despertou em mim desde o início acabou me cegando para algo tão óbvio?

– Eurynomos... Há quanto tempo, hein? Mudou de corpo...

– Você atrapalhou minha refeição há um ano atrás – ele retirou do bolso uma cigarreira, isqueiro, pegou um cigarro e o acendeu. Após uma tragada, continuou. – Hoje eu vim terminar o meu banquete... Alguém tão depressivo e cheio de mágoas nos tempos atuais está muito fácil de achar, mas esse cara é imbatível! Me aproveitei disso é claro...

– Aquele vazio dentro dele! – Eu disse incrédula. – Você o alimentava! Como eu não enxerguei?

– Simples... Todo celestial tem uma fraqueza humana, no seu caso foi o amor que teve à primeira vista. Algo tão tolo é a fraqueza de uma grande guerreira do Primeiro Front, inacreditável, não? – Ele falava em tom de deboche. – Eu sabia que não conseguiria derrota-la, então, deixei para devorá-lo quando o vazio o consumisse por inteiro. Tenho certeza que você estava cansada e sem forças aquela noite para não ter sentido minha presença lá no beco, mas eu também não estava na minha melhor forma – ele sorriu de um jeito sombrio. – Demorou um ano, mas enfim! E você me ajudou tanto... Agora me deixe terminar o que comecei, vá caçar alguns amiguinhos meus que estão à solta por aí. Você não pode fazer mais nada por ele... Consegue ouvir? O coração está parando! Mais algumas batidas e ele estará pronto para mim.

Eu precisava conter minha fúria antes que ela me cegasse. Seiji morreria se eu avançasse contra aquele demônio, entretanto, se eu utilizasse minha cura, ficaria vulnerável, com as asas abertas a qualquer ataque.
O poder de Eurynomos consistia em abrir um buraco no peito de uma pessoa depressiva e projetar um vazio insuportável que tomasse conta da vítima, fazendo com que fosse crescendo conforme ia sendo alimentado. Seiji era o alvo perfeito... Um cantor de sucesso, que não conseguia ser feliz mesmo após ter conquistado tudo o que desejava. Alguém com inclinação para a autodestruição, vulnerável a tentações como bebidas e drogas. E finalmente, um homem que mesmo rodeado por centenas de pessoas, se sentia sozinho e pensava que não havia lugar para ele no mundo.
Eu tinha menos de um minuto, então, segui meus sentimentos em vez da razão. Teleportei para o lado de Seiji e me abaixei rapidamente, minha mão tocou a sua testa e dela uma energia de coloração verde surgiu. Os cortes estavam fechando, mas ainda assim eu precisava dar novas forças para seu coração.

– Eu sabia que você faria algo estúpido!

O demônio surgiu atrás de mim, se eu tirasse a mão de Seiji e aquela conexão se perdesse, ele morreria. Eu não conseguiria me defender com a outra mão e por ser tão difícil usar poderes de cura para os outros, eu sequer poderia ataca-lo. Tentei conjurar um escudo energético, todavia, jamais seria forte o suficiente quando eu empregava toda a minha energia em Seiji.
Faltava pouco e com certeza Eurynomos sabia, assim, conjurou em sua mãos uma espada com a lâmina de fogo e me atacou. Senti a lâmina quebrar o escuro, e assim, cortou até a minha alma, como se me queimasse por completo. Não conseguiria descrever aquela dor, minhas asas haviam sido destruídas e a ferida ardia... Mesmo assim, não tirei a mão de Seiji, meu corpo seria o escudo dele. Tão logo a cura estar completa, usei parte da força que restou para me levantar e avançar na direção do demônio. Minha última vontade fez com que eu pudesse empunhar mais uma vez a espada que sempre me acompanhou, então, explodi toda a energia que eu tinha e ataquei. As lâminas se chocaram, entretanto, coloquei tanta força que a arma dele se desfez em cinzas, assim, precisei de um único golpe... Fui certeira. Ele caiu de joelhos e seu corpo começou a ser envolvido pelas chamas da morte final.

– Ainda assim eu venci!

Ele gritou e começou a rir de forma insana antes de ser consumido por completo pelo fogo e ter o corpo voltado a pó. Realmente a vitória não havia sido minha... Eu perdi minhas asas, aquela dor me consumiria e eu logo deixaria aquele mundo. Era a única forma de destruir o poder de um celestial, cortando suas asas. Eu não sabia o que seria de mim a partir dali, mas estava feliz por ter salvado a vida daquele homem. Só esperava que agora ele também se salvasse...
Alguns minutos se passaram, eu já não sentia mais a força da Luz dentro de mim, meu corpo havia se tornado mortal. Os cortes no lugar das asas sangrariam até que eu morresse... Então, aquele era o preço por escolher o amor. Aliás, eu ainda não compreendia bem o que era o amor. Será que significava abrir mão da própria existência pelo ser amado? Ou será que era muito mais?
Meus olhos teimavam em fechar, mesmo que eu lutasse para mantê-los abertos. Eu tentava respirar, me manter acordada, mas qualquer esforço parecia ser em vão. Aos poucos tudo escurecia, a dor por fim me consumia.


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