InFamous: A Tirania de Rowe escrita por Thuler Teaholic


Capítulo 20
Não há um terceiro


Notas iniciais do capítulo

Ta aí, um capítulo bem grandinho pra compensar esse tempo todo sem postar.
Em minha defesa, eu tenho escola e técnico, é difícil encaixar a escrita entre eles.
Mas, chega de falar de mim
Esse capítulo está grandinho e tem vários POVs, eu até pensei em fazer ele mais longo, mas... não

As coisas estão bem sérias, digo, BEM sérias.



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Yasmine e Mariana dançavam lentamente no telhado de um prédio qualquer, banhadas pela lua do fim do inverno.

Ambas estavam com os corpos muito próximos, simulando uma luta. Mary segurava o pulso de Yasmine e o esticava delicadamente, posicionando sua outra mão logo após o cotovelo da condutora de tinta.

— Nessa posição, eu ponho seu braço sobre meu ombro. — Fez o que dizia. — E daí, eu posso chutar seu pé de apoio com meu calcanhar e te derrubar no chão.

— Mas assim, eu posso fazer isso. — Girou o pulso preso e libertou a mão sem resistência da amiga, levando-a com suavidade ao rosto da condutora de água, tapando seus olhos. — E seus olhos estão grudados com tinta.

Mary fechou os olhos e pareceu ponderar por um segundo antes de prosseguir com o treinamento.

— Então, minha reação seria atingir seu lado com o cotovelo. — Fez isso, muito devagar e de olhos fechados. Yasmine recuou, interpretando a recepção do golpe abaixo da axila direita, inclusive se dobrando um pouco. — Girar o corpo e te atordoar com um tapa. — Rodou nos calcanhares e roçou a mão no rosto da condutora com a delicadeza de quem tenta tocar uma pétala que erra pelo ar. — E, daí, eu saltaria para trás — Afastou-se alguns passos e passou a mão pelo rosto, livrando-se do adesivo imaginário.

Yasmine saltou para perto, com o braço direito bem junto ao corpo, e simulou um chute vertical de baixo para cima. Mary desviou para o lado e borrifou água em seu rosto, sorrindo.

— Acho que já simulamos o bastante por hoje. — Disse baixo.

Yasmine retribuiu o sorriso e baixou o pé estendido como um machado sobre a cabeça de Mariana, que conseguiu bloquear o chute com ambos os braços.

Era isso que a condutora de tinta estava esperando, disparou contra o peito desprotegido da adversária, assustando-a e conseguindo penetrar suas defesas com o chute, mas sua perna passou reto através de uma bruma errante que serpeava para trás.

— Essa foi quase! — Mariana ofegou enquanto refazia sua forma física. — Se você não fosse tão econômica, teria ganho. — Sorriu arrogante, passando os dedos pelo orvalho no cabelo. — Deve ser difícil para você conduzir tinta... — Uma esfera verde berrante voou na direção de seu rosto, mas ela formou um escudo de água e dissolveu o disparo. — Um poder prático, mas limitado.

Uma saraivada de disparos coloridos fustigava a condutora, mas o escudo tratava de rechaçá-los. Yasmine disparava cada vez mais rápido, se aproximando, enquanto Mariana recuava a passos lentos.

— Já está ficando cansada? — Yasmine perguntou, sem diminuir o ritmo dos disparos. A condutora de água não dava sinais de fadiga atrás de seu escudo saturado de tinta.

Depois de minutos exaustivos, as reservas de Yasmine se esgotaram. Mariana sorriu presunçosa, sem desfazer o escudo. — Já está vazia? — Balançou a cabeça, em uma reprovação desdenhosa. — Uma pena que você não consegue drenar a tinta que está em minha água, não? — A condutora de tinta não replicou com um insulto, como fazia de costume, ao invés disso, soltou uma sonora gargalhada.

— Minha tinta na sua água? — Encolheu-se, ficando a menos de um metro do chão, e arremeteu contra Mariana, preparando um uppercut. A condutora de água viu e voltou a se proteger com o escudo. — Ou sua água na minha tinta? — Desferiu o golpe com a palma aberta, atingindo o escudo diretamente.

Quando sua mão atingiu a barreira, espinhos coloridos foram disparados do outro lado com a potência de uma escopeta, atingindo Mary com força e lançando-a para trás, fazendo com que deslizasse pelo cascalho no chão.

Yasmine não conseguia ver se a adversária estava ferida, pois a mesma estava coberta de tinta. A condutora de tinta sorriu indo até a Rebelde caída, com as botas triturando as pedrinhas molhadas.

— Teve o bastante? — Perguntou, levantando uma sobrancelha. Mary se levantou lentamente, mantendo os olhos fechados firmemente, e abriu as mãos que pendiam ao lado do corpo. A vitória precoce de Yasmine amainava lentamente enquanto a condutora de água respirava profunda e lentamente.

Mariana inspirou com força e, subitamente, toda a tinta que a cobria virou pó e flutuou errante pelo ar. Sua roupa estava coberta de furos e rasgos escandalosos e seus braços possuíam vários cortes fundos.

— É aqui que você perde, Rainbow. —Água escorria de seus dedos como de torneiras abertas. Yasmine cerrou os punhos com força e trincou os dentes, mas não se aproximou mais. — Devo considerar que você vai se render?

A condutora de tinta recuou de forma lenta e comedida. O rosto era uma máscara rígida de concentração, como o de um cão treinado que observa um petisco em seu focinho. —Não. Por acaso eu devo?

A condutora de água imaginou que se tratava de um desaforo, então sorriu.

Yasmine flexionou os joelhos, deixando o punho direito, que tremia de forma violenta e espasmódica, próximo do chão. — Vou dar mais uma chance para você jogar a toalha, Mary. — Dessa vez, a condutora sabia que não era uma piada. Suor brotava da testa da amiga e veias se retesavam em sua têmpora.

— Nada? — A condutora de tinta quis saber. — Quer continuar?

Mary bufou em resposta, a água que se empoçava aos seus pés começou a se revolver.

— Que seja, então. ­— Abriu o punho e um som horrivelmente abafado, como uma implosão, retumbou.

O cabelo de Yasmine ondulou quando ela ficou ereta. Os fios estavam, como tudo ao redor da condutora, absolutamente negros.

— O que você fez? — Mary perguntou, com uma nota de pânico bem contida na voz.

Yasmine sorriu, revelando os dentes alvos. — Eu não conduzo apenas tinta, meu bem, — Conteve uma gargalhada. — Eu conduzo cores!

Sorriu triunfante para Mary e imitou a postura de um arremessador de baseball. Deu um passo longo para frente e firmou os pés no chão, girando o braço e preparando uma esfera que brilhava com todas as cores em seu interior.

Death Grip! — A condutora de cores proferiu, lançando a esfera em uma velocidade vertiginosa.

Mary conseguiu preparar um escudo a tempo, mas o Death Grip o anulou, adentrando sua guarda e explodindo em seu peito. Foi um golpe duro, sem dúvida, mas ela já havia recebido piores. A condutora de água olhou para o próprio peito e só viu uma mancha disforme de cor indefinida. Tocou com a ponta dos dedos e viu que não era grudento, ou líquido, parecia mais uma estampa em sua camiseta repleta de furos.

— E agora? Se rende? — Yasmine perguntou, colocando uma mecha negra atrás da orelha.

Mariana não segurou a risada. — Tá brincando? Foi um bom golpe, mas eu não vou me render por causa de uma mancha na minha roupa!

Pela cara da condutora de cores, a resposta foi justamente a que ela estava esperando. — Na sua roupa?

Moveu os dedos e a mancha se alongou, correndo pelo corpo de Mary, cobrindo seus braços e envolvendo suas pernas, prendendo-a.

— Ótimo! — Bufou, irritada para Yasmine. — Agora estou imobilizada. Terminou?

A condutora balançou a cabeça na negativa e moveu o dedo indicador.

O braço direito de Mariana começou a se mover contra sua vontade, assim como seus dedos. A condutora de água acabou com a palma voltada para a própria cabeça.

— Tá, entendi! — Suspirou, derrotada — Você pode me imobilizar e fazer com que eu me mova contra minha vontade.

— Mas eu ainda não acabei. — Apertou o polegar contra o indicador. Mary sentiu um aperto sutil contra seu pulso, logo abaixo da palma.

Um suor frio e pegajoso brotou de suas costas.

— Me rendo. — Falou bem alto, sentindo o aperto em seu “ponto de pressão” diminuir. Depois de um tempo, conseguia se mover livremente.

Yasmine sorria, terrivelmente presunçosa. — Foi por pouco, eu quase fiz você atirar na própria cabeça. — Esfregou as mãos. — Qual minha recompensa?

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Lee estalou os dedos.

Uma, duas, três vezes antes de conseguir um foco de fumaça contínuo para acender seu cigarro amassado.

Tragou longamente e não soltou, deixando seus pulmões absorverem a fumaça.

— Isso ai não faz mal? — Reginald perguntou enquanto chegava de forma dramática.

Lee se virou para olhá-lo e no lugar do suposto amigo, encontrou um anjo que reluzia de forma deslumbrante.

Reggie fechou as asas heterocromáticas de vídeo e Lee conseguiu distinguir sua forma. O cabelo estava mais curto e arrepiado, com uma generosa dose de gel mantendo-o em forma. Ao invés das roupas largas que geralmente usava, trajava agora uma jaqueta de couro que poderia ter sido feita sob medida para ele, caindo como uma luva nos ombros estreitos do condutor.

Poderia ser qualquer um se não fossem duas coisas, os olhos perigosamente sagazes e as luvas, aparentemente novas, que usava. Com os dedos cortados , a esquerda era vermelha e a direita, azul. As duas possuíam palavras nas costas da mão, mas Lee não conseguiu lê-las.

— Olá, Leander. — Reggie cumprimentou, com um sorriso irônico familiar ao condutor de fumaça.

Lee tragou outra vez, consumindo o cigarro até a metade.

— Olá, Reginald. — Expirou a fumaça, sentindo o sabor da nicotina nos lábios. — Como foi a Filadélfia?

— Meh... — Fez o condutor, com certo desdém. — O queijo era bom! — Ergueu o indicador em riste. — Mas eu achei aquilo que estava procurando.

— E o que era? — Lee questionou.

Reginald ergueu ambas as mãos e Lee conseguiu ler o que estava escrito.

Bendito na azul e Maldito na esquerda.

Ele flexionou os dedos e soltou, e suas mãos ficaram acinzentadas e metalizadas.

Lee ficou nas pontas do pé, se inclinando para frente.

— Isso é aço? — A curiosidade dançava em seus olhos.

Reginald balançou a cabeça em negativa e seu sorriso se alargou alguns milímetros.

— Carbono, — Encostou a mão na parede e deu duas batidinhas como se fosse uma porta. — Mais duro que aço. — Atingiu a parede com o nó dos dedos e sua mão afundou como se o cimento fosse farinha. — Mas isso foi um bônus apenas.

Esperou que Lee perguntasse, mas o condutor de fumaça não mordeu a isca, então decidiu continuar mesmo assim.

— Eu fui lá para confirmar o movimento dos Infames. — Sinalizou para que Lee guardasse as perguntas para o final. — Eu tinha umas suspeitas que, infelizmente, se provaram verdadeiras.

Pausou, e sua expressão se carregou.

— Os Infames vão atacar Manhattan esta noite. — Correu os dedos pelo cabelo. — A cidade será esmagada. — Olhou para a lua. — Devem estar em Jersey, a essa altura do campeonato.

Lee tragou mais uma vez, queimando até chamuscar o filtro. — E agora? Qual nossa parte nisso? — Sua voz soou calma, fria.

Reggie olhou para ele por alguns segundos e se dirigiu até a beirada do prédio, sondando o horizonte de norte a sul como se esperasse ver os Infames. Lee se postou ao seu lado, deixando os braços penderem ao lado do corpo e o cabelo chicotear com o vento.

Reginald suspirou e tomou fôlego antes de falar em tom culpado. — Vai ser tudo muito rápido, temos de reunir os Third Sons e dar o fora daqui.

— Third Sons? — O condutor de fumaça ergueu uma sobrancelha, como se ouvisse uma piada que não entendesse.

Depois de escolher as palavras, Reggie tentou explicar. — Pessoas importantes, pessoas únicas. Eu, você, Yasmine, Hunter, Marie, Nazareth e Hugo.

— Hugo...— Lee fechou os olhos, como se absorvesse os nomes. — E por que somos tão únicos assim?

A expressão de Reginald tornou-se aborrecida, como se não houvesse tempo para bobagens como aquelas. — Você, Leander, é um espião nato, essa sua polaridade entre “frio calculista” e “cara legal” possui muitas utilidades; Hunter é a pessoa mais mortífera que eu já conheci, e ele é apenas um humano; Hugo e Yasmine possuem poderes que eu prefiro manter bem longe do Rowe; Nazareth possui contas a acertar; Marie conduz som e é a filha do próprio Tirano.

— Mas... — Lee começou. — E você, aonde você entra nisso?

Reginald sorriu, depois riu, depois gargalhou de forma ruidosa. — Em três pontos. — Ergueu três dedos. — Primeiro: Eu arquitetei isso tudo; segundo: Eu sou uma esponja de poderes; e terceiro... — Olhou Lee no fundo dos olhos. — Meu pai está usando uma coroa, e eu quero ela para mim.

O condutor de fumaça sustentou o olhar por alguns segundos, antes de prestar atenção no horizonte.

— E por onde começamos? — Perguntou, no mesmo tom monocórdio.

— Eu vou atrás da Nazareth, e você, da Yasmine. — Explicou. — Quando encontrá-la, leve-a ao Forrest’s, eu vou aparecer por lá e passar o resto do plano.

— Mas e quanto ao Hunter, o Hugo e... a outra?

— Os três conseguem se virar sozinhos, Marie vai guiar Hugo para a direção certa. E o Hunter? — Riu seco. — Ai de quem cruzar o caminho dele!

Lee se permitiu um sorriso.

— Acho que é melhor irmos, então. — Fez menção de pular do prédio, mas Reginald o segurou pelo braço com sua mão de carbono.

— Lembre-se, Lee, muita gente vai morrer hoje. Você pode ser um herói, mas nós temos prioridades, ok?

O condutor de fumaça assentiu, com determinação. — Ok.

Reginald o soltou. — Boa sorte.

Lee saltou e disse antes que a gravidade o reclamasse. — Não precisamos de sorte! — Despencou para a noite, usando as mãos como propulsores e brilhando como um vagalume.

— Não era para você... — Disse baixo, vendo o condutor se afastar. — Era para você.

Olhou por cima do ombro e um homem estava apoiado na parede com os braços cruzados. Ele usava um casaco preto e aberto, e na sua cintura, uma grande espada estava embainhada.

Ele olhou para Reginald como se ele fosse uma peça um mínimo interessante, apenas digna de ter seu final visto. — Ele se equivocou ao dizer que não precisamos de sorte. — Disse, subindo o capuz. — O tempo está em fluxo, tudo pode acontecer. — E desapareceu.

O último vislumbre de sua imagem foi o brilho feérico de seus olhos cor de cobre.

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Hunter segurava uma grande caneca de conteúdo fumegante enquanto andava calmamente pelos corredores da base.

Bebericou o chá forte em seu copo e sorriu, com satisfação.

— Senti sua falta. — Disse para a bebida, sem tentar esconder o sotaque forte.

Deu um longo gole, ávido por queimar a própria língua, quando viu que um grupo de cinco condutores caminhava na direção oposta à dele. Hunter nunca havia visto-os, mas não estranhou mesmo assim já que uns tempos atrás os generais avisaram que a população de condutores de Manhattan iria aumentar muito.

Os cinco, sendo quatro homens e uma mulher, andavam com firmeza pelo corredor em um grupo fechado, parecendo uma formação militar.

“Devem estar assustados.” Pensou com seus botões, caminhando na direção de seu quarto sentindo os olhos pesarem um pouco pelo chá. “ Lugar novo, vida nova.”

Quando chegou ao grupo de novatos, eles abriram passagem, deixando-o passar sem ao menos lhe dirigirem o olhar.

Sorriu para eles, gostava quando tinham medo dele.

Mesmo que, na maioria das vezes, eles não tinham tempo de sentir medo.

A mulher no grupo lançou-lhe um olhar rápido, quase rápido demais para ser percebido, mas Hunter não ligou. Quando o grupo retomou o andar, o caçador reparou algo, um leve lampejo logo acima dos ombros da mulher, algo que não deveria estar lá.

Hunter estacou e suspirou, vendo eles se afastarem por cima do ombro. — Droga... — murmurou. — Nem terminei meu chá.

Pousou a caneca pela metade na soleira de uma porta e rumou na direção dos novatos.

— Hey. — Tocou no ombro do último da fila. Ele virou rapidamente e foi de encontro a lâmina de Hunter, que entrou fundo nas suas entranhas.

Ele não gritou, mas o ruído da lâmina roçando em seus ossos alertou os outros.

— Bem-vindos à Manhattan. — Hunter fez um profunda referência, largando o corpo. — Eu serei seu guia.

A mulher foi a que saiu do torpor primeiro, avançando com um soco inglês preparado para abrir a nuca do anfitrião.

Hunter sorriu e se inclinou mais, esticando a perna para trás e chutando por cima da própria cabeça, atingindo o meio do rosto da jovem com sua sola e sentindo a cartilagem macia ceder. Puxou o pé e desferiu um chute de bico do estômago dela, fazendo-a dobrar-se como um feixe de trigo molhado

Ela caiu para trás lentamente, engasgando com o próprio sangue.

Hunter sacou uma de suas muitas facas e girou, lançando-a na direção de um dos três sujeitos que restava, mas o mesmo se desfez em fumaça e desviou.

O caçador não conseguiu não pensar em Lee, o sorriso no rosto cresceu um pouco enquanto ele desviava de uns golpes enérgicos desferidos por três correntes fortalecidas por fumaça.

Aqueles novatos sabiam lutar, de fato, mas o corredor estreito não facilitava para eles, apenas fazia com que tivessem de atacá-lo um de cada vez. Hunter esperava uma abertura, e achou-a quando uma corrente voou na direção de seu rosto, destruindo um grande pedaço daquele papel de parede horroroso, mas sem o brilho nocivo da fumaça.

Lançou a mão para frente e agarrou a arma, ferindo a mão no processo. Deu um puxão forte e o portador da arma caiu para frente, obstruindo o corredor para os outros. Puxou a corrente e tomou-a para si com um sorriso bem mais discreto que os anteriores.

Enquanto os novatos tentavam passar por seu amigo caído com muitos palavrões e maldições, Hunter levou a mão ao cinto e puxou um dos ganchos que havia adquirido há algum tempo, abrindo a presilha e encaixando o na ponta da corrente.

Agora era a hora.

Rodou a corrente e tudo desacelerou. Retalhando o papel de parede e arrancando lascas do chão de madeira, aproximou-se com um passo curto e soltou um pouco a corrente, deixando que ela se esticasse. Outro passo e soltou um pouco mais.

Mais um passo e o gancho atingiu o rosto de um dos homens, destruindo do seu queixo ao olho esquerdo em uma revolução e o nariz o olho direito em outra.

Um dos condutores tirou seu companheiro em agonia da frente e carregou um disparo na palma da mão, entretanto, a foice de Hunter o obrigou a cancelar seu ataque quando entrou em seu maxilar. O humano puxou e um forte estalo foi ouvido quando a boca do condutor foi esmigalhada.

Mais um caiu em agonia e o anfitrião foi para o último, largando a corrente que voou em seu rosto e destruiu seu nariz com uma nuvem de fumaça que foi bastante cômica na concepção do humano, que adicionava mais um número a sua lista de narizes quebrados.

Puxou a alavanca da pinball gun, tão familiar, agora, e disparou o projétil no rosto do condutor, que rodou no ar uma vez antes de se desfazer em enxofre.

Recuperou a corrente e a enrolou no braço e, com duas estocadas rápidas da faca que trazia na bota, finalizou os dois sujeitos caídos.

Quando cessou os gritos do segundo homem caído, ergueu o olhar a tempo de ver um disparo brilhoso e luminoso de neon sendo carregado pela mulher do soco inglês que havia se recuperado parcialmente.

Ergueu o braço e bloqueou o disparo com a corrente que queimou sua pele. Puxou novamente a alavanca da pinball gun e recarregou-a com um de seus pequenos pingentes de vidro. Disparou e atingiu a mão da condutora, apagando o brilho do disparo de uma vez.

Antes que ela pudesse pensar em usar a outra mão, Hunter se aproximou e atingiu seu estômago ferido com um soco e sentiu-a cuspir sangue quente em seu rosto. Ergueu-a pelo pescoço e bateu suas costas contra uma porta.

— Que surpresa, não? — Levou a mão à gola da condutora e rasgou sua camisa para baixo, expondo uma tatuagem pequena em seu ombro.

Um crânio de pássaro coroado por duas asas vermelhas.

— Você é muito, muito estúpida. — Deu um soco em seu rosto e recuou alguns passos, pulando para agarrar o batente de cima e se balançar como um macaco, atingindo o peito da mulher com ambos os pés.

Ela soltou um grito profundo ao sentir seus seios serem esmagados pelas botas de Hunter.

— Me conte, o que vocês estão fazendo aqui? — Ela chorava descontroladamente, respirando em arfadas ruidosas, mas ele não podia afrouxar a pressão, senão ela conseguiria se desfazer. — Vamos, responda. — Balançou-se para trás novamente e atingiu-a no peito novamente, quebrando algumas costelas.

Dessa vez ela não gritou, mas vomitou nas pernas do humano, que ficou feliz ao ver que era apenas sangue.

“Seria nojento, caso não fosse.” Pensou, irônico.

— S-somos muitos... — Ela gaguejou entre golfadas. — Es-s-sa cidade de merda v-vai ser esmagada... — Torceu a boca em um sorriso nem um pouco convincente. — V-você v-vai morrer, todos vão m-morrer.

Hunter deu de ombros. — É, sempre achei que fosse morrer, uma hora ou outra. — Balançou-se mais uma vez e juntou toda a força nas pernas.

Dessa vez, um estalo como de um trovão ecoou pelo corredor quando a porta atrás da Infame se partiu. Ela caiu em uma cama de lascas com olhos perdidos e com o sangue correndo em um rio pelo nariz e pela boca.

Hunter soltou o batente e se aproximou do corpo, removendo o soco inglês da falecida dona. Só depois que a arma escorregou pelos seus dedos ele se deu conta que estava no quarto de alguém.

Olhou ao redor e viu quatro pessoas jogando cartas em uma mesa, todos estavam atônitos e escandalosamente nus.

Abriu seu sorriso mais encantador e disse. — Era uma Infame, tem mais dois no corredor. Eles são muitos, se eu fosse vocês, iria me preparar.

Eles se levantaram de prontidão e começaram a vestir suas roupas que jaziam amontoadas no chão.

Hunter saiu do quarto com um sorriso.

— Quem diria, Reyk Garside em pessoa fazendo a coisa certa. — Falou, recuperando sua caneca e dando boas goladas. — Langley ia rir muito disso.

Esfregou a mão na parede para se livrar do sangue gosmento e correu para as escadas.

Se a merda estava prestes a cair no ventilador, achava que Forrest deveria saber. Além do mais, ele tinha uma boa história.

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Hugo estava fazendo o máximo para dormir, mas não conseguia.

Os Rebeldes, que agora somavam algumas centenas, estavam acampados no parque James J Braddock. Todos estavam terrivelmente exaustos, já que haviam caminhado (ou melhor, corrido) de Chicago até Nova Jersey em cinco dias, e precisavam de uma noite longa e restauradora e sono para que alcançassem Manhattan no dia seguinte.

Mas o sono se negava a cooperar com o condutor.

Hugo não estava pensando muito bem quando poupou a vida de Marie, nem quando decidiu mantê-la escondida do resto dos Rebeldes. Apenas parecia a coisa certa a se fazer.

A coisa heroica, talvez.

Mas agora que estavam tão próximos de casa, as consequências de seus heroísmos estavam cada vez mais iminentes.

O que ele faria? Se simplesmente soltasse ela, ela iria voltar para o pai e Hugo teria de lidar com ela novamente, e ele não estava tão ansioso para cair em um ringue com ela tão cedo, visto que ainda tinha uns sonhos bem ruins com a luta dos dois.

Se conseguisse esconder ela na cidade ao invés de soltá-la ou matá-la, era uma questão de tempo até alguém encontrá-la e ai iria tudo para a merda. Ele seria julgado por conspiração, abrigo ao inimigo, ou qualquer outro crime que pudessem pensar e seria executado em praça pública, depois empalariam sua cabeça no topo do Empire State. Talvez mantê-la na surdina fosse uma opção, mas teriam de tingir o cabelo dela e teria de ser muita tinta para esconder aquele vermelho absurdo.

Yasmine talvez conseguisse, mas Hugo duvidava que ela chegasse perto de qualquer pessoa de cabelos vermelhos, ainda mais se fosse a mesmíssima pessoa que a traumatizou tanto. Elas acabariam se matando e esta era uma cena que o condutor de gás gostaria de evitar o máximo possível.

E, se entregasse ela aos Rebeldes, iam torcer cada gota de informação dela, matariam-na e, muito provavelmente, dariam ela de mão em mão para que todos se divertissem. E depois disso, executariam-na e empalariam sua cabeça vermelha no topo do Empire State. Hugo não deixaria, não conseguiria.

Outra hipótese, quase tão absurda quanto as outras, seria que ele, Marie e Angela fossem para a Filadélfia ao invés de irem para Manhattan, seria bem mais fácil esconderem a Marie lá, além de que Angela conhecia o lugar e eles talvez encontrassem o Hector.

Balançou a cabeça, afastando a ideia da cabeça. Hugo era capaz de muitas coisas, mas era igualmente incapaz de abandonar Lee e Yasmine dessa forma.

— Acordado ainda, Hugo? — A voz de Angela soou próxima de seu ouvido, fazendo cócegas. — Você deveria dormir. Amanhã é o grande dia, não é?

— É, tem razão... — Respondeu, sem virar para ela.

— Não seja condescendente comigo. — Repreendeu, em tom severo de brincadeira. — Sabe que nossas conversas só acabam bem com você por cima.

— Não acho que... — Hugo avistou algo muito estranho, muito estranho. — O que foi aquilo?

— Aquilo? Eu não vi nada. — Hugo estava de costas para Angela, mas pôde senti-la franzindo o cenho a suas costas. — Hugo Caimán, você está se esquivando?

— Não! — Sibilou em tom urgente. — Olha aquele cara ali. — Apontou para as sombras, onde um vulto passou correndo, esmagando folhas e gravetos. ­

— Tá, o que tem? — Ela quis saber, possivelmente revirando os olhos.

— Ele deveria estar dormindo à essa hora, não acha?

— Olha só quem fala. — Ela bufou.

— Você me entendeu. — Desvencilhou-se delicadamente da condutora de papel e afastou a coberta que os cobria. — Vou só dar uma olhada. — Ficou em pé furtivamente e voltou a cobrir Angela.

Ajeitou a franja da garota insatisfeita com o máximo ternura que conseguia, conseguindo um suspiro resignado com isso.

— Volte logo, Ok? — Ela fechou os olhos e se enrolou na coberta, dando as costas para ele. — Não é educado deixar uma garota esperando.

Ele assentiu e começou a seguir os passos do suspeito.

Claro, ele adorava se intrometer em assuntos alheios como qualquer condutor, mas também precisava aerar seus pensamentos com o vento frio do fim do inverno.

“Por que não precisava aerar os pensamentos em Chicago?” Pensou. “Era o melhor lugar do mundo para fazer isso.”

O suspeito realmente não estava se esforçando para ser discreto, apenas avançava apressadamente pelo parque sem medo de acordar os muitos que dormiam por ali.

Hugo havia cogitado um ataque nervoso por parte dele, mas não parecia ser isso. Ele sabia perfeitamente aonde ia.

Hugo começou a achar genuinamente suspeito quando o sujeito saiu do parque e começou a correr pelo subúrbio, se embrenhando pelas ruas idênticas e, volta e meia, correndo como o neon quando parecia especialmente impaciente.

O condutor de gás o seguia bem de perto, tanto quanto possível, vendo onde ele iria levá-lo. Conforme a vizinhança ficava menos acolhedora, mais frequentes as “corridas luminosas” ficavam, e sempre que ele passava, as luzes esporádicas dos moradores se apagavam.

Conforme corria atrás do condutor, Hugo notava algumas pessoas na rua que se escondiam como baratas ante a passagem do suspeito, normais.

Fazia sentido que existissem alguns normais a mais no subúrbio do que na cidade, mas o condutor de gás começou a reparar que eles eram muitos. Naquele bairro, provavelmente eram milhares vivendo como miseráveis.

O gosto que Hugo sentiu na boca não foi agradável.

O condutor de neon começou a desacelerar até parar, e ali, parado, começou a esperar.

“Pelo que?” Hugo se perguntou.

Foi até a entrada de um beco, onde tinha uma boa visão do suspeito, mas ainda conseguia se manter fora de vista.

Foram longos minutos na tocaia, o condutor estava quase desistindo quando sentiu algo na sola dos pés. Uma vibração que lhe era totalmente alienígena e ficava cada vez mais alta.

O trem.

A vibração se aproximava, mas diminuía em intensidade. O trem estava parando.

— Merda.— Falou sozinho. Aquilo não poderia ser bom, não havia a mínima possibilidade daquilo ser bom.

Quando os vagões abriram, muitas pessoas desceram. Muitas mesmo, um número que, facilmente, ultrapassava o de Rebeldes acampados no parque.

Hugo se virou para correr, precisava alertar os companheiros desavisados, mas se deparou com um par de olhos violentamente azuis.

Marie abafou seu arquejo com a palma, drenando o som produzido. A expressão da jovem Infame era de uma urgência preocupante.

— Precisamos avisar os outros. — Ele sussurrou, quase guinchando. — Eles vão ser esmagados.

A ruiva balançou a cabeça.

— Não há tempo. — A voz soou alta de uma forma que deixou Hugo escandalizado. — São muitos outros além desses, milhares. — Suspirou profundamente e assumiu uma expressão decidida. — Nós precisamos chegar até Manhattan o mais depressa possível.

— Mas... — Hugo estava perdido, completamente perdido. — Eles vão morrer, todos vão morrer. — A cor fugiu de seu rosto. — Angela! — Jogou a ruiva para o lado e desatou a correr.

Mas foi impedido pela rasteira que o fez cair de cara no chão. A condutora de som montou nele e tapou sua boca enquanto a tropa Infame corria pela rua, indo na direção do parque. — Eles já devem estar mortos há essa hora, você não pode mais fazer nada!

— Mas... E a Angela? Você avisou ela? Você disse para ela fugir? — Marie desviou o olhar.

A ruiva saiu de cima do condutor de gás assim que as passadas dos Infames se afastaram. Ele se levantou de pronto, afastando-se alguns passos cautelosos da condutora.

— Hugo, por favor...

— Não! Eu preciso avisá-la, eu preciso salvá-la!

A mão da ruiva atingiu o rosto de Hugo com um tapa sonoro. Não foi um tapa afetado, não um daqueles que mulheres dão em pretendentes que avançam o sinal, não o que se usa para matar um inseto. Aquilo foi um tapa com o corpo todo, os joelhos flexionados, a cintura torcida, as costas retas, e as mãos firmes. Um tapa capaz de quebrar pescoços.

Pareceu que a criação inteira se havia se escondido atrás da mão de Marie.

A cabeça de Hugo foi jogada para o lado violentamente, fazendo com que as distrações em sua mente voassem para fora pelas orelhas. Olhou aturdido para a condutora de som e viu que o rosto dela não era raivoso, mas suplicante.

— Hugo, você não entende, nós temos que chegar a Manhattan. — Respirou fundo.— TUDO depende disso! Se não chegarmos à tempo, está tudo acabado! Eles vão atacar Nova York.

O condutor de gás não estava ouvindo realmente por causa do zumbido em seus ouvidos, mas conseguiu captar uma frase com clareza.

— Mas, talvez, consigamos salvar seus irmãos...

Assim que ela disse isso, uma folha de papel voou entre eles, soprada pelo vento que vinha do norte. Seria aquele um rastro de Angela?

De repente, a folha congelou no ar. Todos os ruídos foram abafados, o peito da ruiva parou de subir e descer. O próprio tempo pareceu congelar.

À esquerda de Hugo, Marie suplicava com os olhos estáticos, implorando para que ele escolhesse a razão e fosse para Manhattan salvar seus irmãos. Lee e Yasmine precisariam dele mais do que nunca, ele não podia abandoná-los, ele tinha que salvá-los.

À direita de Hugo, a página em branco o chamava, pedindo para que o condutor escrevesse ali sua história, a sua e a de Angela. A condutora de papel era, de repente, uma das pessoas mais importantes para ele. Ele tinha de tentar, ele tinha que salvá-la.

Fechou os olhos e respirou com força, pensando até sua cabeça doer, imaginando alguma forma de fazer as duas coisas, mas não encontrou nenhuma.

Ele teria de escolher entre os dois.

“Não há um terceiro.” Hugo ouviu em sua mente.

Quando abriu os olhos, a folha rodopiou para longe e Marie ainda o encarava com aqueles olhos cristalinos.

— Corra. — O condutor de gás disse, amarrando a máscara de caveira com firmeza no rosto e puxando algo grande de seu cinto. Eram as pequenas botas da condutora de som. — Eu vou no seu vácuo. — Entregou os sapatos para ela.

O olhar da ruiva se iluminou de alívio quando ela recebeu as botas de volta. Calçou-as e caminhou até o trilho do trem com os pés estalando no chão, sendo acompanhada de perto por Hugo.

— Preparado?

O silêncio foi a resposta que ela precisava. A ruiva respirou profundamente, se inclinou para frente até os dedos tocarem no chão e, com o estampido de uma escopeta, desapareceu.

Hugo esperou por um segundo inteiro antes que uma onda de vento viesse para encher o vácuo criado pela condutora e, junto dessa onda, ele também desapareceu, disparando no encalço da ruiva.

Logo atrás do ponto em que ambos haviam sumido, um homem observava, com um pé em cada lado do trilho, a nuvem de poeira que corria na velocidade do som para o leste.

— Não há um terceiro. — O espadachim murmurou, e seus olhos reluziram como estrelas cor de cobre antes que ele desaparecesse também.


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