Vida de Quem? escrita por March Hare


Capítulo 6
O Menino Mais Importante de Todos


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura



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[In my field of paper flowers
And candy clouds of lullaby
I lie inside myself for hours
And watch my purple sky fly over me]

Ele se aconchegou em seus braços, aquele corpo pequeno não podia ser só imaginação, podia? Parecia tão real... talvez você fosse louco. Já pensou nisso Marcos?

Cláudio começou a falar e logo só sua voz era o único som do mundo. Não havia mais chuva do lado de fora da janela, não haviam mais passos dos médicos nos corredores, não havia mais mundo. Não, nada além daquele menino encantador.

– Eu te disse e você não acreditou. – ele disse baixinho antes e você não viu sentido naquelas palavras, pois ele logo continuou – Começou quando sua tia ‘tava grávida... Você não lembra, né? Eu lembro...

“ Ela ia ter um menino e você estava sonhando com um amigo. Tinha três anos e achava que o pequeno ia nascer logo da sua idade e vocês poderiam brincar o tempo todo. Esperando esse momento acontecer, você seguia ela quase o tempo inteiro. Como o bebe ia nascer no inverno, você a viu comprar várias roupinhas de frio e acabou pedindo para sua mãe comprar um presente para ele.

Mas o mundo é mal, muito mal. Foi um aborto natural. Você não entendeu o que tinha acontecido, só continuou esperando aquele amigo que nunca vinha, guardando o seu presente. Toda a vez que você se sentia sozinho, você pegava aquela pequena touca azul e conversava com seu futuro priminho, comentando sobre tudo que vocês fariam juntos no futuro.

Foi assim que eu nasci. Eu era só uma ideia, pequena e fraca, sem forma, sem nada... ficava quietinho no escuro, esperando ouvir sua voz. Ai você vinha e falava comigo, e cada pequena palavra enchia o meu mundinho de cor e de brilho. Era tão lindo Marcos, você tinha que ver! Parecia... Como é o nome? Ah, aquela coisa brilhante que aparece no céu nos lugares frios!”

Você riu da animação dele que basicamente pulava sobre seu colo, gesticulando enquanto tentava lembrar o nome da ”coisa brilhante”

– Aurora boreal, meu anjinho.

– Isso, isso! Toda vez que você falava a aurora boreal aparecia na minha frente e era a coisa mais linda do mundo. Você passava um tempão falando comigo... acho que eu era seu único amigo. Demorou um bom tempo para sua mãe descobrir. Ela pegou você falando sozinha e logo começou a se preocupar. Coisa de mãe, né?

Ele riu antes de continuar a falar. O tom ainda era tranquilo e ele ainda parecia uma criança fofa, mas... Você sentia que tinha algo errado, tinha certeza. Ele parecia ter saído de um filme, onde o psicopata sorri quando diz que vai matar alguém. Ele logo continuou, todo doce.

– Não que eu possa saber. Não sei como é ter mãe, como é conhecer outra pessoa que não seja você. Mas sua mãe, em um gesto que eu suponho que seja de carinho materno, ela te explicou docemente que você não ia mais ter um priminho, que ele agora era um anjinho no céu. Ela logo sumiu com o gorrinho também...

“Eu morri pela primeira vez depois disso. Fiquei trancado no fundo mais escuro de sua mente, esquecido e ignorado... Foi horrível, pois eu era só uma pequena ideia sem forma, mas mesmo assim conseguia sentir toda aquela dor de não existir...”

Ele inclinou levemente a cabeça para o lado, suspirando mas sem perder o sorriso. Você resolveu interromper.

– Como você pode sentir?

Viu os olhinhos dele piscarem confusos. Por alguns segundos o silêncio reinou no pequeno mundo de vocês. O sorriso dele só aumentou, e aquilo te assustou demais.

– Você pode me contar. Eu não sei. Sinto por que você me fez assim, Marcos.

Antes que você pudesse pensar em qualquer coisa ele te deu um selinho e continuou a falar.

– O seu mundo continuou a rodar e eu fiquei ali escondido e esquecido. Não tinha mais a luz de sua voz para me fazer feliz, não tinha mais nada. Eu acabei perdendo a consciência, achando que nunca mais fosse voltar. Mas uma pequena rachadura no seu mundo perfeito me fez acordar depois de um tempo, sair de toda aquela dor. Seus pais estavam se separando e você estava ainda mais solitário do que antes.

“Eu sempre vou ser tudo que você precisar... Quando você tinha sete anos você precisava de um amigo, um que fosse menor e mais fraco que você, para que você pudesse sempre ganhar e se sentir bem com isso. E esse sou eu, aquele que serve para te fazer companhia e aumentar seu ego.

Só que você cresceu e não precisava só de alguém para perder pra você no futebol. Queria uma competição de verdade, eu estava me tornando chato demais para você. Então você cansou de mim e arrumou outros amigos. E eu voltei para o escuro...”

– Não é verdade – Você negou sem sequer pensar suas vezes.

O olhar levemente confuso dele foi a prova de que você não tinha nenhum motivo para negar. Você lembrava de como o menino da touca azul era o mais chato de seus amigos, de como não era mais interessante ir jogar bola com ele quando podia ficar na casa de seus outros amigos jogando vídeo game ou fazendo qualquer outra coisa.

– É sim, bobão. Mas eu não fico chateado com você, não se preocupe.

Você suspirou e acabou tentando tirar a touca azul da cabeça dele para poder fazer carinho no cabelo dele. Tinha a curiosidade se saber como ele ficava sem aquilo e como era a sensação de tocar sua cabeça sem nada no caminho. Mas não conseguiu tirar.

– Não! – Ele gritou tão alto e segurou o pano da touca com tanta força que você afastou as mãos instantaneamente. Sua sorte no momento foi que só você podia ouvi-lo, se não Cláudio já teria a atenção de todo o hospital.

– Calma, calma....- Quase gaguejou em resposta.

– Não encosta nela, sim? Eu não gosto. – a voz dele era de uma criança assustada e manhosa.

Só suspirou, descendo sua mão para as costas dele e acariciando ali ao invés de na cabeça. Ele ficou um tempo quietinho, quase como se tentasse se recuperar da sua tentativa de remover aquela touca. Era fofinho, apesar de, para você, totalmente incompreensível.

Aproveitou o momento de quietude para pensar um pouco. Sabia que deveria ter sido muito difícil para Cláudio ser descartado na maneira que foi, afinal, ele era um garotinho na época... talvez ainda fosse um garotinho agora, não só naquela imagem que propositalmente aparecia em sua frente.

– Por que você não ficou com raiva de mim? – perguntou depois de muito matutar em sua mente.

Os olhinhos de Cláudio focaram nos seus, um brilho confuso e um franzir de sobrancelhas naquele rosto pequeno mostraram que ele não tinha entendido nada de sua pergunta. Adorável foi a única palavra que veio a sua mente antes de você continuar a falar, explicando sua pergunta.

– Quando você.... “voltou para o escuro”, por que não ficou com raiva de mim? Quer dizer... Você estava vivendo e te tranquei na minha cabeça, deve ter sido a horrível, muito horrível.

Ele riu divertido, como se você tivesse feito a mais engraçada e idiota de todas as perguntas. Você não entendeu nada, só observou aquele ser pequeno ter um ataque de risos.

– Cláudio?

– Você é tão bobo, Marcos!

Se irritou e bufou, o empurrando para fora da cama. Ele estava certo, você é bobo. Sempre foi e sempre será. Afinal, se não fosse, por que se irritaria com as palavras de um menino de sete anos que nem existia?

Cláudio caiu sentado no chão, confuso.

– Ai! Por que me empurrou? – a sua falta de resposta o fez continuar a falar – Bobo. Primeiro acha que eu poderia ficar com raiva de você, depois me joga da cama, são suas bobices bobeirosas em pouco tempo.

– Para de me chamar de bobo moleque!

O seu tom irritado e alto colocou um biquinho no rosto da criança, que se sentou no chão e apoiou o queixo em seu colchão, quase como um cachorrinho assustado. Ficaram quietos por alguns segundos antes de você resolver se desculpar.

– Desculpa, não deveria ter gritado com você.

– Não precisa pedir desculpas.

O sorriso doce dele te fez suspirar. Se sentia culpado, estranhamente culpado.

– Você deveria ter ficado com raiva de mim. – Sussurrou.

Cláudio sorriu ainda mais, arrumando sua touca antes de falar qualquer coisa. Ele estava totalmente relaxado.

– Eu nunca ficaria com raiva de você.

– Mesmo tendo motivos para isso?

– Eu não tenho nenhum motivo para ficar com raiva de você. Nunca tive.

– Por que não? Se toda a sua vida você só existiu para mim e eu te deixei sozinho...

Antes que você pudesse terminar de falar tudo que pensava ele respondeu da forma mais simples que você podia imaginar. Ou que você não pudesse, por que talvez não estivesse preparado para aquelas palavras doces, ditas num tom tão infantil e sincero.

– Porque eu te amo.

Ele levantou e beijou o seu rosto, levemente, como faria uma criança daquela idade que se declarasse para um coleguinha de turma. Você fechou os olhos e quando abriu não era mais um menino de sete anos que tinha ao seu lado. Era o Cláudio de dezesseis, aquele que era sua maior distração quando você tinha quatorze. O Cláudio por quem você começou a se apaixonar quando tinha quatorze anos.

[Don't say I'm out of touch
With this rampant chaos - your reality
I know well what lies beyond my sleeping refuge
The nightmare I built my own world to escape]


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Notas finais do capítulo

Desculpe qualquer erro e obrigada por ler



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