Separate Ways - Requiem escrita por WofWinchester


Capítulo 34
Meu demônio pessoal


Notas iniciais do capítulo

Olá, bebês! Como estão? Bem, primeiramente vocês vão querer me matar (talvez), o capítulo é gigantesco mesmo, não é bug do site. Segundo, agora eu tenho um novo hobbie: Fazer gifs. E os gifs que eu colocar como capa vão ser (obviamente) correspondentes às cenas do capítulo. Terceiro, preparem um lencinho no final.
Muito obrigada a todos os comentários e favoritos, suas lindas e lindos!
Espero que gostem.



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Aquilo estava mesmo acontecendo? Eu estava mesmo frente a frente com Lúcifer, o rei do inferno? Arrastei as mãos pelo cabelo, balançando a cabeça para os lados, como se isso fizesse com que aquele homem, que se intitulava o Diabo, desaparecesse dali.

Olhei ao redor, ainda pasma e descrente, procurando qualquer objeto útil naquele momento, mas o que seria útil contra Lúcifer? Nada que eu soubesse, porém não podia simplesmente ficar parada.

— Exorcizo te...

— Espera aí, você tá tentando me exorcizar? — perguntou incrédulo, me interrompendo com uma risada histérica que só fez me assustar mais — Eu não sou um demônio, sou um anjo. Vai ter que fazer melhor que isso.

— Isso é uma alucinação, só pode ser! — chiei comigo mesma, sacudindo os braços no ar. Não havia outra explicação para aquilo. Pelo que eu saiba, Lúcifer estava numa jaula com Miguel, no inferno. Ele não podia simplesmente aparecer ali do nada, ou será que podia?

— Em parte é. — esclareceu ele jogando a cabeça para os lados — Eu ainda estou na jaula e você só consegue me ver e falar comigo por causa do nosso laço de amor, não é lindo?

— Sai da minha mente! — gritei apontando para ele.

— Assim você me magoa, Esther, sério. — fingiu-se de ofendido, colocando uma mão sob o peito — Depois de tudo que eu fiz por você, nem um “obrigada” eu ganho? Quem você acha que te puxou de volta quando você surtou naquele sanatório? E quem você acha que encantou aquele octeto de rubi para começar o assunto? Eu!

— Eu não posso... — comecei buscando as palavras que me fugiam a toda hora. Eu lembrava perfeitamente do homem estranho que havia visto antes de me apagarem no sanatório, então desde aquele tempo era ele? — Eu não devia ver você, não posso! — falei me virando para os monitores e percebendo o fluxo de demônios que já estavam dentro da fábrica, e pelas suas expressões furiosas, eu sabia que não gostaria de enfrentá-los cara a cara. Onde estariam os Winchester, Maison e Jimmy nessa hora?

— Vai me ignorar? Isso é falta de educação. — comentou Lúcifer, revirando os olhos e estalando os dedos em frente ao meu rosto de maneira debochada.

— Por que só agora? — indaguei mais para mim do que para ele, voltando a fitá-lo.

— Por que antes você estava ocupada demais sendo racional e boazinha para que eu conseguisse me comunicar. Quando você fica com raiva ou em perigo, fica mais vulnerável. — explicou abaixando a mão e as luzes piscaram novamente, dessa vez demorando cerca de três segundos entre cada apagão.

— Ótimo, agora eu não estou mais com raiva. Pode sair da minha mente! — rosnei fechando os olhos e desejando que o mesmo sumisse da minha frente, e quando eu os abri de novo, ele continuava ali com uma expressão de tédio e os braços cruzados.

— Acha que é assim? Que você estala os dedos eu desapareço? — indagou com descrença, fazendo o movimento de estalar — Eu vim para ficar.

Ouvi estrondos contra a porta e então fitei as câmeras. O corredor estava abarrotado de demônios dando investidas contra a entrada, o objetivo deles deveria ser derrubar aquilo e com o impacto desfazer a linha de sal.

— Eu não tenho tempo para ficar discutindo com o Diabo — devolvi com sarcasmo e irritação, ligando o microfone e dando leves batidinhas em cima para ver se estava funcionando. Eu não podia esperar que o reforço chegasse, precisava exorcizá-los agora, antes que colocassem as mãos em mim.

— Não me chama de Diabo. Magoa. — falou forçando uma fungada e então se aproximou por trás, colocando a cabeça por cima do meu ombro como quem não quer nada. Trinquei os dentes ao sentir o contato físico e comecei a recitar, gaguejando cada vez que um estrondo novo vinha da porta e desprendia mais as dobradiças — O que você pretende? Um ritual de exorcismo? Acha mesmo que vai dar certo com todos esses demônios?

— É a única coisa que eu tenho para fazer até Sam, Dean, Jimmy e Maison chegarem. — rebati nervosa, me perdendo no meio das palavras em latim e recomeçando tudo de novo.

— Você não vai conseguir terminar a tempo, não antes de eles invadirem essa sala — comentou Lúcifer novamente, fazendo com que eu parasse.

— Se você parar de me interromper talvez eu consiga! — gritei, aumentando o volume das caixas e percebendo que alguns demônios riam da minha tentativa falha de exorcizá-los.

— Deixa eu te ajudar. — disse calmamente, colocando a mão em cima do microfone para abafar minha voz.

— Não! — rosnei afastando seu braço de perto do equipamento, respirando fundo antes de recomeçar o ritual.

— Pelos meus cálculos você tem dez segundos antes de ser torturada, linchada e possivelmente violada por uma horda de demônios furiosos. — murmurou fitando um relógio imaginário no pulso esquerdo — Dez, nove, oito, sete...

— Pelo amor de Deus, cale a boca! — exclamei novamente, percebendo que uma das dobradiças havia caído e a porta agora estava prestes a ruir. Senti minhas mãos suando frio e um branco tomou conta de mim, eu não sabia mais nem como começar o exorcismo.

— Me deixa te ajudar. — insistiu Lúcifer.

— Eu não quero a sua ajuda! — vociferei virando de costas e tampando os ouvidos, numa tentativa de tentar contactar o meu anjo guardião, talvez o único que pudesse me tirar daquela enrascada agora.

— Castiel não vai vir, Elisabeth tem seus truques. Eu a conheço bem, aquela safadinha. — comentou, adivinhando o que eu estava fazendo — Vamos lá, você prefere morrer a aceitar que eu te salve? — indagou tocando meu ombro de leve. E nesse instante a porta foi abaixo com baque violento.

As luzes piscavam e o cheiro insuportável de enxofre parecia ser trazido com o vento, quase me sufocando por completo. Tudo que eu via eram dezenas de assassinos prontos a me massacrar, um arrepio de medo percorreu a minha espinha e por um segundo eu havia desaprendido como respirar.

— O que eu tenho que fazer? — gritei para ele, que deu um sorriso satisfeito enquanto erguia meu braço em direção a horda de olhos negros.

— Sinta a eletricidade do poder dentro do seu corpo e redirecione para a palma da sua mão, ordene que eles fiquem imóveis. — instruiu Lúcifer fixamente.

— Como sabe que vai dar certo? — deixei o braço do jeito que estava e forcei o fiapo de tensão a correr por minhas veias e se juntar na minha mão, me surpreendendo ao sentir que a sensação elétrica aumentava gradativamente, como um pulsar.

— Eu os criei, eu os controlo. — gesticulou dando de ombros e de repente a porta que estava no chão se levantou, voltando a posição normal e dando na cara de um dos demônios que estava mais a frente sem entender nada, ou o porquê de não conseguir se mover — Agora ao invés de fazer o ritual romano, faça o exorcismo enoquiano, é mais rápido e garantido.

— Eu não sei fazer isso. — falei sentindo uma onda de poder ir e voltar, as criaturas tentavam escapulir do meu controle com fúria e medo, sem saber o que estava acontecendo. Minha cabeça começou a latejar com força, e eu sabia que não iria aguentar por muito mais tempo.

— Repita tudo que eu disser. — ordenou Lúcifer. Aproximei-me do microfone de costas, sem quebrar o contato visual com os demônios e apurei os ouvidos para todas as palavras que mais pareciam vogais estendidas, exclamando alto e inclinada em direção ao aparelho.

E quando minha cabeça começou a pulsar fazendo uma dor enorme percorrer todo o meu corpo como um choque, eu terminei o ritual e todos aqueles olhos pretos caíram uns por cima dos outros, amontoados no corredor enquanto uma grande nuvem de fumaça negra subia para o teto e colidia com o piso, desaparecendo como se fosse tragada para baixo. Deixei meus joelhos caírem, respirando fundo e sentindo a corrente elétrica ficar cada vez menos intensa e se esvair aos poucos.

— Eu consegui — murmurei comigo mesma, a visão ficando turva de repente.

— Boa garota, agora descanse. — elogiou com uma piscadela, desaparecendo em frente aos meus olhos. Então meu corpo inteiro amoleceu, eu não tinha mais controle sobre os meus músculos. Deslizei para o chão vagarosamente, não conseguindo mais ver, sentir ou ouvir qualquer coisa, apenas o gosto metálico do sangue que parecia subir pela minha garganta como ácido.

Acordei com uma dor enorme e quanto mais eu recobrava os sentidos, mais ela ficava insuportável. Era como se minhas entranhas tivessem sido esfoladas e ardessem até quando eu respirava. Senti a superfície macia embaixo de mim e logo reconheci meu edredom, rolei na cama com uma careta de dor, o quarto estava escuro e silencioso, o que indicava que deveria ser noite.

Pisquei para ajustar a visão, tentando inspirar o mais calmamente possível para que a sensação ácida não me corroesse tanto por dentro. Minha mente vagava por tudo que havia acontecido com descrença. De repente senti o colchão afundar e quando foquei melhor, reconheci uma silhueta ao meu lado, e assim que a fitei melhor, sentei-me num pulo, sentindo uma tontura forte.

— Lúcifer. — sussurrei. Tudo havia sido real, os demônios, a armadilha, o exorcismo, tudo. Era inacreditável e aterrorizante, ao mesmo tempo em que eu queria sair correndo dali eu tinha medo até de me mexer.

— Vim ver a minha humana preferida. — pronunciou-se o mesmo, inclinando-se na minha direção e tirando uma mecha de cabelo do meu rosto com um sorriso diabólico.

— Vá embora. — falei entre dentes, me esquivando e ficando há cerca de um metro e meio de distância, preocupada o suficiente em não deixar que ninguém ouvisse aquela súbita conversa. — Eu vou gritar.

— Você quer mesmo chamar os Winchester para a nossa reuniãozinha? Não acho prudente. — começou o anjo calmamente, mas sua voz tinha uma pontada de ironia — Eles meio que te veem como uma “chave do caos”, e contar que está tendo contatos de primeiro grau comigo vai fazê-los ficarem paranoicos. Mas se quiser passar alguns bons meses encerrada dentro de algum cubículo fedorento enquanto eles procuram algum feitiço desesperado para reverter isso, que possivelmente possa te matar, vá em frente. — finalizou com uma careta divertida, passando o dedo pela ponta do meu nariz. Dei um grunhido, virando a cabeça para o outro lado. Era horrível admitir, mas ele tinha razão. Eu não achava que os Winchester fossem fazer algo ruim ou mesmo me machucar, mas eles com certeza iriam redobrar a atenção e me manter o mais trancafiada possível.

— Isso tudo é nojo? — indagou com as sobrancelhas juntas, puxando meu rosto para encará-lo — Eu sei que essa casca não é nada agradável às moças, mas faça um esforço. — pediu abrindo os braços, sarcástico. E vendo que eu continuava a fitá-lo com descrença, o mesmo suspirou, deixando as mãos caírem sob o edredom — Ok, você venceu, um minutinho.

E dizendo isso, Lúcifer desapareceu. Olhei ao redor por vários segundos, constatando estar sozinha novamente. O que infernos ele estava fazendo? Levantei da cama, andando até o meio do quarto com uma careta confusa quando senti uma respiração atrás de mim e me virei subitamente.

Em frente aos meus olhos, alguns poucos centímetros mais alto que eu, estava um garoto de aproximadamente dezessete anos. Os olhos verdes claros com as sobrancelhas arqueadas e o cabelo loiro escuro em contraste com a pele pálida e o sorriso debochado.

— Para o Diabo, você é bem idiota. — falei ao notar a mudança, então dei meia volta, jogando as mãos para cima — E eu devo ser uma completa louca, conversando com o rei do inferno no meu quarto.

— Agora me sinto mais apresentável. — disse ele com o tom de voz mais juvenil, me ignorando totalmente e passando os dedos pela camiseta preta — Se bem que não é lá muito fácil ficar distorcendo a aparência assim, principalmente quando estou sem meus poderes originais e preso.

— O que quer comigo? — disparei apontando um dedo em sua direção — Eu não vou te tirar de jaula nenhuma e muito menos começar um apocalipse, então se manda.

— Minha intenção nunca foi essa, nós apenas temos uma ligação quase como de irmãos gêmeos. — esclareceu levantando as palmas — A ideia do apocalipse foi sempre sua, minha querida. — deixei meu queixo cair por um momento, incrédula. Não, ele estava mentindo, estava tentando me confundir e eu não ia cair naquele truque.

— Eu me recuso a continuar discutindo com você, então me deixe em paz.

— Você está triste. — observou Lúcifer depois de uma pausa, passando por mim e colocando-se indiretamente ao meu lado — Por favor, me diz que não se apaixonou pelo anjo bipolar de novo. Mas será possível que você não aprende que...

— Cale a boca! — interrompi alterando a voz, eu odiava que ele falasse comigo como se me conhecesse, e então percebi a porta ser aberta suavemente e a luz se acender, me cegando por um segundo. Vire-me estupefata e dei de cara com meu espelho, ou melhor, Elisabeth.

— Oi, eu não queria entrar desse jeito, mas ouvi você falando alto então achei que... — começou sem graça, parada no espaço estreito da entrada. Notei que ela usava um vestido com minúsculos floreados e um casaco bege por cima, peças que definitivamente não pertenciam ao meu vestuário. Pelo menos havia deixado minhas roupas em paz.

— O que infernos você está fazendo aqui? — indaguei tentando controlar a súbita irritação ao ver aquela mulher, mas um rosnado ameaçador no fundo da minha garganta acentuou minha voz fazendo-a soar um tanto ameaçadora.

— Olha se não é a Beth... — comentou Lúcifer ao meu lado, dando uma risada e apontando para a mesma, que era bem óbvio que não estava percebendo a presença dele ali.

— Calma! — pediu ela, gesticulando com as mãos — E a propósito, seu braço não parava de sangrar, então eu tomei a liberdade de fazer uma mistura de ervas para estancar a hemorragia. — explicou apontando para o curativo de gase e espanadrapo abaixo do meu ombro, que só agora eu havia percebido.

— Que gentil, não acha? — ironizou o anjo, revirando os olhos.

— Não era necessário. — dei de ombros, suavizando meu tom e suspirando pesadamente. Toda aquela situação estava me deixando incrivelmente estressada, mas eu não podia simplesmente sair distribuindo patadas por aí. — Onde estão todos?

— Lá embaixo, descansando. — respondeu Elisabeth — O mais difícil de convencer a dormir um pouco foi o Dean, ele passou os primeiros dias ao lado da cama. E o Castiel também não saia do quarto.

— Ele estava aqui? — a pergunta veio de repente, e quando eu me dei conta dela, já havia saído pela minha boca que tinha um sorriso idiota que eu logo tratei de desfazer.

—O Cass disse que você estava machucada por dentro, ele tentou te curar várias vezes, mas conseguiu pouco progresso e acabou ficando muito fraco. — assentiu com uma careta curiosa, entrando e fechando a porta silenciosamente atrás de si.

— Iludida. — murmurou Lúcifer no meio de uma tosse forçada, me fazendo lançar um olhar mortal na direção dele e nisso Elisabeth franziu o cenho.

— Onde ele está agora? — questionei caminhando em direção a cama e me sentando recostada na cabeceira. Fechei os olhos por um instante, me sentindo cansada. Minhas mãos tremiam levemente, então agarrei o travesseiro, colocando-o sob meu colo e o abraçando, a minha súbita inclinação fazendo com que a dor dentro do meu corpo voltasse como uma pontada repentina.

— Decifrando a placa da revelação junto com Balthazar e Maison. Ele acha que pode ter algo lá que pare a profecia. — disse a garota normalmente — Você dormiu por uma semana, não está com fome?

— Uma semana?! — exclamei surpresa, dando um grunhido em seguida.

— Quando você usa os poderes, eles acabam danificando seu corpo por dentro, então ele demora para curar-se sozinho. — explicou Lúcifer, andando próximo à janela — Mas isso é só no começo.

— Mas o importante é que você acordou. — falou Elisabeth e depois de uma pausa veio sentar-se ao meu lado, passando uma perna por cima da outra e deixando um sorriso maroto escapulir pelos lábios — Isso é tão estranho, não é?

— O quê? — rebati automaticamente.

Eu sou você, você sou eu. — gesticulou para nós duas — E nós aqui, conversando.

— Não acho que somos parecidas.

— Fisicamente ou psicologicamente falando? — perguntou num tom descontraído — Por que se for fisicamente, você é uma cretina. Nós somos idênticas! — girei a cabeça com a expressão séria, encarando-a por segundos e me perguntando quando foi que eu dei tanta intimidade para ela vir de cumplicidades comigo.

— Mesmo assim ele ainda prefere ela. Será que é o cabelo ou por que ela é boa de cama? — ponderou Lúcifer, alisando o queixo.

— Cale a boca! — exclamei com os punhos cerrados e os olhos fechados, me arrependendo disso no instante em que terminei de falar. Elisabeth deixou o sorriso morrer, espelhando a minha cara de irritação com uma pontada de dúvida.

— Esther, por que você me odeia? — perguntou solenemente, e aquilo foi como o pino sendo tirado de uma granada.

— E isso realmente precisa de uma resposta? — indaguei retórica, jogando o travesseiro em cima dela e levantando da cama, ignorando a dor ácida — Você matou seu próprio filho!

— Sacrificou num ritual como se fosse um peru na ceia de Natal, para ser mais específico. — corrigiu Lúcifer com um dedo levantado.

— Ele seria morto de qualquer maneira, era um nefilim. — explicou-se me acompanhando com o olhar — Eu não tinha como criá-lo, meu futuro marido nunca aceitaria o fruto de uma traição e naquela época qualquer mínima suspeita de bruxaria levava à fogueira.

— Dane-se! Era uma criança inocente. — girei nos calcanhares para encará-la de cima, então a mesma levantou, colocando-se centímetros a minha frente.

— Eu não vou discutir com você, ou comigo mesma, tanto faz! — disse balançando os braços no ar e apontando para o meu peito — Você ainda não entende que coisas terríveis devem ser feitas para que coisas boas possam ser mantidas, não é? Eu também não entendia, mas fui obrigada a fazê-lo!

— Nisso eu tenho que concordar com ela. Às vezes você tem que se juntar aos porcos para conseguir um pouco de bacon. — assentiu o anjo sarcasticamente.

— Acha mesmo que essa ladainha cola comigo? — indaguei com uma risada de escárnio.

— Não espero isso, muito menos que acredite em mim. Eu, se fosse você, não acreditaria. — falou dando de ombros — Olha, Esther, eu fiz coisas terríveis, mas eu paguei por isso. E partindo do princípio que você sou eu, continuo pagando. — terminou quase num sussurro, os olhos castanhos se estreitando com um sentimento de pena que me deixou mais furiosa ainda.

— Você matou pessoas, nada lava esse sangue. — cuspi as palavras com raiva.

— Mas no fim eu me arrependi, por amor. — explicou segurando meu braço e eu encarei o gesto com repúdio.

— Como é? — questionei desvencilhando-me de seus dedos gélidos e finos.

— Eu me lembro dessa parte e vou admitir que fiquei muito puto. — comentou Lúcifer com um rosnado, fazendo uma careta ameaçadora para Elisabeth.

— Nem mesmo Castiel sabia, mas antes de ser condenada eu havia conseguido parar. Então me sentenciaram a ser imprisionada, mas Darvúlia me salvou e naquele dia eu rezei para que ele viesse e então contaria que eu estava grávida, de novo. — revelou a garota, as imagens passando em minha mente conforme ela ia falando. A cena em que a bruxa troca de lugar com a Condessa através de uma magia de tempo e ela foge rumo ao penhasco, eu lembrava perfeitamente.

— Quando você diz que achou uma maneira de parar... — comecei com um fio de esperança, mas fui drasticamente interrompida.

— Eu não consegui quebrar a profecia, desculpe, era só uma espécie de auto controle.

— Ela achava que havia conseguido parar, mas mais cedo ou mais tarde tudo ia para os ares de qualquer maneira — destacou o anjo que já estava ao meu lado.

— Eu havia aprendido que se ficássemos juntos poderíamos dar um jeito. Mas ele não me ouviu, e nós morremos. — terminou, a última parte se referindo a nós duas como uma só, então suspirou e o som saiu quase como um assovio — Ele não sabia naquela época.

— Ou seja, ela fez uma algazarra e depois simplesmente jogou tudo para o alto e correu para os braços do bonitão. Mas aí se deu mal. — ele deu uma risada divertida — Bem feito.

— Castiel sabe disso? — questionei depois de um momento.

— Me contou que descobriu logo depois. — murmurou Elisabeth, encarando as mãos e brincando com os dedos de forma constrangida.

— E deve ter recompensado ela de um jeito bem a altura, pelo que eu soube, eles estão sempre no quarto. — intrometeu-se Lúcifer novamente, me fazendo bufar ao imaginar certas cenas que não queria e ao mesmo tempo sentir medo. Se ele sabia coisas que nem eu mesmo tinha conhecimento, então quer dizer que ele podia simplesmente andar por onde eu estivesse bisbilhotando? Eu era uma espécie de conexão direta do mundo real com a jaula?

— Eu não espero que você entenda o que é amar algo que não deveria. — falou a garota com a voz triste, mal sabendo ela que eu tinha plena consciência do que era aquilo — Eu simplesmente fui trazida de volta e mesmo não tendo um corpo humano, uma alma ou mesmo um coração que bate, eu ainda o amo, com todos os meus pedaços de barro.

— E meu irmãozinho a ama, e você, Esther, meio que sobrou aqui. — disse o anjo com um bico e uma careta.

— Você deveria ir embora. — decretei calmamente, imóvel no lugar onde estava.

— Por favor, me dê uma chance. — pediu ela — Eu sei que você viu o meu passado, você sabe o que eu vivi.

— Vá embora, Elisabeth. — interrompi com a voz mais firme, apontando para a saída. A mesma então suspirou, mexendo os ombros para cima e caminhou silenciosamente.

— As pessoas nascem más, ou a maldade é imposta a elas? Isso vale para mim e para você, Esther. — falou e então fechou a porta suavemente, me deixando novamente com meus demônios pessoais.

Por um lado eu me sentia furiosa por toda aquela situação, amedrontada pelo fato da pessoa que eu mais tinha medo de me tornar estar ali na minha frente. E por outro, eu sabia que ela não tinha culpa, pelo menos não dessa vez. Elisabeth não pediu para ser ressuscitada e isso me instigava inclusive a ter pena daquela garota. Mas lá no fundo, o maior motivo que me fazia ter aquele furacão de sentimentos controversos dentro de mim era Castiel.

Quem era eu comparada a ela naquele momento? De certa forma eu a invejava por ter conseguido a melhor coisa que eu jamais poderia ter. E isso era o que mais me destruía por dentro.

— Que cena comovente. — ironizou Lúcifer com um bocejo.

— Vá embora você também, eu quero ficar sozinha. — falei, a voz saindo quase numa súplica. Apaguei a luz e me arrastei até a cama, me enfiando embaixo do edredom como se fosse um esconderijo secreto, e para falar a verdade era.

— Você realmente acreditou nela? Elisabeth é uma vadia da pior espécie, não que você seja também. — aproximou-se, inclinando o corpo para cutucar a minha testa e forçar uma voz infantil — Estherzinha, não faz essa cara.

— Não chega perto de mim! — rosnei e virei para o outro lado, afundando a cabeça no travesseiro. Ele suspirou, contornando a cama e me fitando por alguns segundos.

— Tente dormir um pouco e sonhe comigo, e com os belos momentos que passaremos juntos daqui para frente. — disse com um sorriso irônico.

— Para o inferno você e seus momentos bons. — chiei com raiva. Fechei os olhos e lágrimas não paravam de descer pelo meu rosto. Aos poucos minha respiração irregular foi se silenciando e quando dei por mim, meus sentidos estavam se esvaindo. Não sei em que momento eu finalmente cai no sono, mas sei que ainda não havia parado de chorar.

Quando abri os olhos no outro dia, logo um cheiro delicioso despertou meu estômago. Ao que parece, fazia uma semana que eu não me alimentava direito e mesmo antes disso eu apenas lanchava alguns petiscos aqui e ali. Rolei na cama e senti a ferida no meu braço latejar, e com a ponta dos dedos eu descolei um pouco o curativo grudado na pele, vendo que o corte estava visivelmente cicatrizado. Suspirei ao lembrar que fora Elisabeth quem havia feito a tal mistura de ervas, uma parte de mim sentia que preferia estar morrendo de dor ao dever algo para ela e outra me punia mentalmente por isso.

Por alguma sorte, Lúcifer não havia dado o ar da graça ainda e isso me deixava um pouco mais confortável. Como eu contaria para os rapazes que estava tendo uma aventura alucinante com o Satã? Eu não tinha total certeza sobre a reação que eles teriam ao saber disso, e no momento em que estávamos eu não queria dar mais um motivo para eles se preocuparem comigo. Lúcifer não exercia influência nenhuma sobre mim, eu tinha pleno controle da situação no momento, então só iria contar se as coisas ficassem sérias.

Levantei da cama, sentindo uma tontura que me fez cair novamente no colchão. Eu precisava comer alguma coisa, definitivamente. Peguei peças de roupas limpas, dobrando-as umas sobre as outras e sai do quarto arrastando os pés. Desci as escadas esfregando os olhos e logo sons de risadas e conversa alta encheram meus ouvidos. Segui o barulho até a cozinha e me deparei com uma cena que me fez abrir a boca em descrença.

Sam, Dean, Jimmy e Bobby estavam sentados à mesa enquanto Elisabeth servia panquecas vestindo um avental com os dizeres “Mãe do ano”. A minha cara de espanto foi tão grande que eu poderia ser confundida com a obra “O grito” naquele momento. Aquilo era uma piada, certo? Tinha de ter alguma câmera escondida ali.

— Você tem que nos passar essa sua receita especial, realmente ficou muito bom! — elogiou o Winchester mais velho com a boca cheia.

— Eu aprendi com uma das colonas do castelo, ela era uma ótima cozinheira — respondeu Elisabeth com um sorriso meigo e irritante.

— Você disse que usou cominho em grão? — questionou Sam, terminando de dar um gole no suco e passando o vidro de mel para Bobby que balançava a mão na direção dele.

— Direto da Hungria.

— Mas como você... — começou o moreno curioso, mas então deu uma olhada rápida para Castiel.

— É sempre bom ter um anjo que pode se teleportar e buscar as coisas para você num piscar de olhos — esclareceu a garota olhando de soslaio para o mesmo, que estava escorado na pia com os braços cruzados. O mesmo abaixou a cabeça para dar uma risada breve.

— Desde quando você se interessa por culinária, Sammy? — indagou Dean com uma sobrancelha erguida.

— Qual é! Eu gosto de aprender coisas novas. — rebateu o Winchester caçula.

— Nerd. — retrucou o loiro.

— Gay. — murmurou Jimmy de boca cheia.

— Idiotas. — xingou Bobby, revirando os olhos enquanto levantava da cadeira e levava o prato até a pia.

— Oh, Esther, você acordou — cumprimentou Elisabeth ainda sorrindo, então me apontou um lugar à mesa e gesticulou para a frigideira — Panqueca?

— Ainda bem que você está de pé, nós estávamos ficando preocupados — comentou Dean.

— Senta aqui, precisa se alimentar. — convidou Jimmy, indicando a cadeira vaga ao seu lado — Está uma delícia. — acrescentou. Observei-os por segundos e só de pensar em sentar e compactuar com aquilo fazia meu estômago se retorcer de nervoso. Eu não seria comprada com uma mísera panqueca, fosse ela da Hungria, Turquia, China ou dos quintos dos infernos.

— Eu... Ah, eu estou sem fome agora. — recusei educadamente e de modo sarcástico, apontando para o lado que ficava o banheiro — Vou tomar um banho e depois com alguma coisa.

— Tudo bem, vou guardar panquecas para você! — avisou Elisabeth assim que eu virei às costas.

O que diabos era aquilo? Eu me sentia traída. Como eles podia simplesmente sentar e comer com Elisabeth Bathory? Isso só podia ser um pesadelo. Tomei um banho rápido e troquei de roupa, colocando um short jeans e uma camiseta do Kansas. Sai pela porta e logo vi Elisabeth e Sam na sala jogando cartas em volta da mesa. Mais uma vez eu tive que segurar minha vontade de espancar alguém com uma frigideira fervendo.

— Uno! — gritou ela, colocando as mãos para cima e dando um pulinho.

— Seria uma pena se... — disse o Winchester caçula, jogando uma carta e fazendo com que ela tivesse que pegar mais quatro.

— Isso não vale. — murmurou a garota com uma careta, olhando desanimada.

— Claro que vale. — falou Dean do sofá onde estava bebendo uma cerveja com o notebook no colo.

— Esther, quer jogar? — virou-se para mim, apontando o baralho sobre a mesa — Acho que eles estão me roubando nesse tal de Uno.

— Cadê a Maison? — disparei depois de balançar a cabeça para os lados, recusando o convite.

— Lá fora consertando a moto. — respondeu Jimmy, que estava deitado no chão com o celular em mãos e um fone no ouvido.

— Como está seu braço? — perguntou Castiel, materializando-se com um farfalhar de asas logo ao meu lado e colocando os dedos para apoiar meu cotovelo de forma gentil. Fitei-o por alguns segundos enquanto seus olhos moviam-se do curativo para segurar meu olhar.

— Parece bem melhor, ainda bem que eu me lembrava de como se preparava aquelas ervas — comentou Elisabeth, vindo colocar-se ao lado dele com um saltinho gracioso e inclinando-se na ponta dos pés para depositar um beijo na sua bochecha.

— Obrigada — agradeci me desvencilhando da mão dele e indo em direção a porta. A última coisa que eu precisava ver agora era aqueles dois de gracinha.

— Mas... — ouvi Castiel protestar alguma coisa, mas eu já estava do lado de fora.

Marchei pela oficina e logo avistei Maison agachada na lateral do veículo, o sol quente batia contra seus cabelos amarrados num rabo de cavalo, dando um tom de dourado nos fios. Aproximei-me pelas suas costas enquanto ela tateava o chão sem ver, procurando por alguma das várias ferramentas espalhadas. Como a loira estava segurando uma rosca contra a roda da moto, logo deduzi que procurava pela chave de fenda. Abaixei-me e estendi o objeto para ela, que me olhou por um longo segundo antes de pegá-lo.

— Obrigada, Esther. — agradeceu e voltou-se novamente para sua atividade.

— Estava verificando se era eu ou a Elisabeth? — questionei olhando ao redor e inspirando o aroma enferrujado que vinha das carcaças espalhadas por ali.

— Não, estava tentando decifrar essa sua cara de quem comeu e não gostou. — respondeu calmamente — Se fosse Elisabeth, provavelmente chegaria aqui saltitando.

— Pelo menos alguém que não me confunde com ela. — grunhi sentando no chão com as pernas em forma de triângulo.

— Deve ser um saco mesmo. — assentiu a loira, sem me fitar em nenhum momento — Acho que já percebeu que a miss simpatia está conquistando todo mundo.

— Como isso aconteceu? — perguntei com a revolta evidente na voz.

— Você passou uma semana desacordada e ela estava agindo feito “a rainha das ervas” e “cozinheira perfeita” — Maison deu de ombros. — Tanto faz, não gosto dela de qualquer jeito.

— Eu tenho vontade de estrangulá-la. — admiti, fazendo o gesto de agarrar e apertar com as mãos em frente ao corpo. Bufei espalmando as mãos nas coxas e sentindo meu estômago se contorcer, dessa vez de fome.

— Me deixa adivinhar, você não comeu nada que ela fez? — questionou, não esperando a minha resposta e pegando um sanduíche enorme de dentro de uma lancheira aberta e colocando em minhas mãos.

— Achei que anjos e caídos não precisassem comer — observei.

— Não precisamos, mas é um hábito que eu adquiri. Comer me acalma — esclareceu a loira com um sorriso fraco.

— Obrigada — agradeci dando uma mordida e logo sentindo o gosto do presunto defumado. Eu não fazia ideia estar com tanta fome até esse exato momento e isso me fez acabar com o sanduíche em menos de cinco minutos.

— Como você está lidando? — indagou a garota assim que eu acabei de comer.

— Como o que exatamente? — perguntei de boca cheia, amassando o papel que envolvia em uma bola em minhas mãos.

— Você e o Castiel não estavam numa espécie de “Amor e ódio. Te odeio agora, te pego quando puder”? — questionou com uma risada displicente.

— Maison, isso não tem nada a ver. — rolei os olhos, sentindo meu rosto ficar vermelho. Ela parou o que estava fazendo para me encarar com um olhar insinuativo.

— Vai mentir para mim a essa altura do campeonato? — duvidou passando as costas da mão pela testa, deixando uma marca de graxa.

— Ok, quer saber? Dane-se! — bufei joguei as mãos para o alto — É óbvio que eles estão juntos, mas isso não me importa nenhum pouco. — menti, desviando os olhos para o outro lado.

— Sinto por você. — ela puxou os cantos dos lábios para baixo, uma careta pesarosa — Mas quer um conselho?

— Já sei: Esqueça. — disse, pressupondo o que Maison iria falar.

— Lute por ele. — murmurou a garota enquanto me estendia a chave de fenda e indicava para o alicate que estava próximo a minha mão.

— Como é que é o negócio? — indaguei surpresa, fitando-a por alguns segundos antes de pegar o objeto e alcançar o outro para ela.

— Você gosta dele, isso tá na cara. — falou voltando-se para a moto — Então tem que dizer para ele, o Castiel é tapado demais para perceber. Ele mal sabe o que é isso, é quase um adolescente na puberdade descobrindo a mast...

— Ok! — interrompi antes que a minha mente criasse cenas que eu provavelmente não queria imaginar.

— Como você é puritana. — desaprovou a loira com uma risada alta — Mas é isso, se você quer, lute por ele.

— Mas você mesmo me disse que anjos não foram feitos para isso. — rebati com o pessimismo de uma solteirona com vinte e sete gatos.

— E não fomos, mas os humanos foram. E a partir do momento que compartilhamos afeto e sentimentos com vocês, acabamos nos tornando capazes de qualquer coisa, inclusive amar. — explicou Maison, o azul claro adquirindo um tom acinzentado em contraste com o som, mas mais do que isso, havia um brilho especial em seu olhar. — E eu não gosto da Elisabeth e quero ver ela se ferrar, então vá lá e conquiste o anjo do senhor. — acrescentou com sarcasmo, me fazendo dar uma risada.

— Eu não posso competir com ela. — suspirei depois de uma pausa.

— Ela é só um corpo de barro, sem alma, sem nada. É a mesma coisa que uma fruta real e uma fruta de plástico, daquelas que vocês usam para enfeitar a mesa. Até podem ser melhores ao olhar, mas nunca vão ter sabor. — exemplificou com uma careta — Vamos, você nem tentou, só fica aí se lamentando e chorando as pitangas. As coisas não caem do céu, Esther. — falou seriamente, me encarando por um segundo e então sua expressão se tornou mais suave — Ok, algumas coisas caem do céu. Eu cai de lá, por exemplo.

— Por que está me ajudando? — questionei depois de uma longa risada.

— Não sei, tem dias que eu simplesmente tenho vontade de ajudar alguma trouxa por aí. — respondeu irônica, voltando-se para o veículo novamente.

— Você é um amor sabia? — rolei os olhos e mesmo sem ver, sabia que ela estava espelhando o meu gesto.

— Ei, Esther! — ouvi a voz do meu irmão na porta da casa, acenando em nossa direção. O nefilim caminhou até onde estávamos e parou com as mãos na cintura, observando Maison com a testa franzida.

— Conversa de moças? — indagou brincalhão.

— Cale a boca. — latiu a loira, jogando a ferramenta que tinha em mãos para trás e o mesmo desviou no segundo em que ela ia bater na sua cabeça.

— Eu vou colocar pó de mico nas suas calcinhas de novo. — ameaçou Jimmy, apontando um dedo para a garota.

— Avisa para o seu irmão que se ele fizer isso eu vou raspar o cabelo dele quando ele estiver dormindo. — disse Maison antes que eu pudesse abrir a boca.

— Vadia. — Jimmy rolou os olhos.

— Viado. — devolveu ela, imitando o gesto do garoto.

— O amor aqui tá exalando forte hoje. — comentei encarando os dois que começaram a rir. Então o nefilim parou na minha frente, estendendo as mãos para mim e eu as segurei.

— Como você está? — perguntou me puxando para levantar.

— Bem, apesar de tudo. — admiti.

— A gente tava bem preocupado, mesmo. — assegurou torcendo a boca para o lado — Quer olhar um filme? Elisabeth está fazendo um bolo.

— Não estou com vontade de entrar agora. — descartei imediatamente qualquer possibilidade de estragar totalmente o meu súbito bom humor conquistado com dificuldade.

— Pelo amor de Deus, saiam da minha volta. — bufou Maison com um tom ranzinza que me lembrou o Bobby em seus piores dias — Vão sair, vão ao cinema, vão fazer alguma coisa de irmãos bem longe de mim.

— Credo, que mau humor. — debochou Jimmy, cutucando-a com o pé e ouvindo um rosnado como resposta — Quer ir a algum lugar?

— Na verdade eu quero sim. — falei mordendo o lábio inferior com a ideia súbita que me passou pela mente.

O vento jogava meus cabelos para todas as direções, fazendo os fios negros virem de encontro ao meu rosto e eu os retirar com as mãos a cada dois segundos. As nuvens pesadas passavam por cima de nós fazendo grandes sombras, o tempo não estava dos mais amigáveis, provavelmente choveria.

A viagem de moto até Elwood havia durado algumas horas, e depois de três paradas em postos de gasolina, nós havíamos chegado. Acho que quando você chega ao seu limite e não sabe mais pelo que continuar, tem que voltar ao início e lembrar-se de todos os motivos que te fizeram seguir em frente. E era exatamente isso que eu estava fazendo agora, parada em frente ao lugar onde tudo começou.

— Você morava numa funerária, que mórbido — comentou Jimmy, recostado na moto um pouco atrás de mim.

— Depois de um tempo você se acostuma, inclusive com o cheiro de velas e caixões — falei olhando-o de soslaio. A casa de dois andares tinha as janelas abertas, o varal da rua estendia grandes lençóis brancos que se moviam com o vento sinuoso da tarde. Definitivamente tinha uma família morando ali, e eu não sabia se aquilo me deixava triste ou feliz. Eu queria entrar, visitar meu antigo quarto, mas acho que ninguém deixaria um estranho fazer isso.

Ouvi um ruído atrás de mim e logo me virei, vendo que meu irmão estava distraído olhando para o céu. Rolei os olhos ao redor e um movimento entre as folhagens do outro lado da rua chamou minha atenção. Permaneci imóvel por mais uns instantes e de imediato reconheci duas orelhas pretas e pontudas saltarem do mato com um miado.

— Não acredito! Lilly! — exclamei feliz da vida, andando devagar até lá para não assustar a gata. Agachei-me com gestos lentos, estendendo a mão para a mesma que veio receosa até mim, cheirando minha mão e soltando mais alguns miados. Então pulou no meu colo, esfregando a cabeça contra mim. — Eu também estava com saudades — murmurei acariciando-a.

— Era sua gata? — questionou Jimmy, vindo de mansinho até o meu lado e passando os dedos nos pelos negros de Lilly.

— Sim, eu não a via desde que tive que sair daqui às pressas. — esclareci. Constatei que ela parecia bem, não estava magra nem ferida, e eu que achava que a pobrezinha morreria de fome, estava muito feliz ao vê-la saudável.

— Dona Mel! — ouvi uma voz infantil e girei a cabeça, encontrando uma garotinha de aparentes dez anos de idade atravessando a rua. Lilly escapuliu dos meus braços e foi logo se colocando próxima a menina, passando entre suas pernas.

— Olá. — cumprimentei enquanto ela pegava a gata no colo.

— Olá, quem é você? — questionou ela, balançando as tranças dos cabelos castanhos.

— Eu me chamo Esther — estendi a mão e a mesma olhou desconfiada para o gesto, recuando um passo — Eu morava aqui há um tempo, vim olhar a casa — admiti recolhendo meu braço e esfregando a nuca.

— Stephany! — chamou uma voz feminina, então eu percebi que uma mulher vinha ao nosso encontro. Ela usava um vestido com um casaco azul claro por cima, as feições delicadas e parecidas com a da garota. — Olá, posso ajudar?

— Ela morava aqui, mamãe. — respondeu Stephany antes que eu pudesse fazê-lo.

— Oh, veio dar uma olhada no antigo lar. — adivinhou com um sorriso — Eu me chamo Dora.

— É um prazer, eu sou Jimmy e essa é Esther — cumprimentou meu irmão.

— Nós viemos apenas para matar as saudades, mas já estamos de partida. — assegurei sorrindo.

— Vocês parecem cansados, devem ter vindo de longe. — observou a mulher, olhando para a moto por cima do ombro — Não querem entrar e comer alguma coisa?

— É muita gentileza sua! — disse Jimmy quase dando pulinhos de alegria, nesse aspecto ele era bem parecido com o Dean. Era só oferecer comida e ele já se derretia todo.

— Mas nós não podemos aceitar, não queremos incomodar. — acrescentei educadamente.

— Imagine, não é incômodo algum. — Dora balançou as mãos, insistindo. Entreolhamos-nos por um momento e o nefilim tinha um olhar pidão no rosto. E já que tínhamos vindo de tão longe e ela parecia tão gentil, eu assenti.

Entramos na casa e Stephany logo largou Lilly no primeiro degrau da escada. Percebi uma tigela cor de rosa com ração e outra com leite na entrada da cozinha e encarei a gata. Finalmente ela tinha encontrado o lar que eu não podia dar.

— Desculpe a bagunça, nós quase não recebemos visitas. — dizia Dora enquanto tirava algumas bonecas do sofá e ajeitava as almofadas coloridas. Olhei ao redor e tudo estava completamente diferente de quando eu morava aqui, fotos da família estavam espalhadas pela parede e porta-retratos, pinturas infantis ganhavam destaque em alguns locais, havia brinquedos espalhados por alguns cantos e os móveis eram todos em cores vivas, como laranja e verde claro. Tudo parecia mais quente e mais... Feliz.

— Oh! Olá, temos visitas! — falou um homem alto com suéter cinza e óculos, descendo as escadas e nos cumprimentando com um aperto de mãos animado — Eu sou Jason.

— Esther e Jimmy. — disse com um sorriso — Dora fez a gentileza de nos convidar para visitar a casa.

— Já moraram aqui? — adivinhou o mesmo. Olhei para Jimmy brevemente e assenti, não era exatamente uma mentira, só alterei o fato de que só eu havia morado ali. — Eu também faço isso às vezes, é uma pena que minha antiga casa fique na Califórnia — Jason deu uma risada e nós acompanhamos.

— Nem sempre o passado deve ficar no passado, coisas boas foram feitas para serem lembradas. Por isso permanecem na memória — comentei.

— Seu nome não me é estranho, acho que a garota que morava nessa casa antes tinha um nome parecido. — observou o homem, alisando o queixo — Foi realmente trágico o que aconteceu. A família foi assassinada e a menina encontra-se desaparecida até hoje, não pouparam nem o cachorro. — contou com uma expressão abismada. Engoli em seco e meu irmão pôs a mão sob meu joelho de maneira confortante.

— Jason, não os aborreça com essas histórias. — falou Dora na porta da cozinha.

— Eu ouvi falar do que aconteceu, foi realmente trágico. — assenti tentando manter a naturalidade. Ouvi um trovão ecoar no céu, me sobressaltando de repente e então a chuva começou a despencar, crepitando no telhado da casa.

— Isso é chuva? — questionou o homem, virando-se para a janela que estava sendo lavada por fora.

— Parece que sim. — constatou a mulher, franzindo o cenho. — Bem, pelo menos assim ameniza um pouco esse calor.

— Acho que devíamos ir. — comentei olhando para Jimmy que balançou a cabeça em afirmação.

— Vocês não estão pensando em sair com esse tempo, estão? Eu seria uma pessoa horrível se deixasse que fizessem. — falou Dora gesticulando para a porta.

— Nós não queremos abusar. — disse sem graça diante de tal gentileza.

— Por favor, fiquem. Vocês parecem ser boas pessoas e nós quase nunca temos visitas, só espero que consigam suportar o Jason falando sem falar — brincou com um sorriso escancarado, fazendo o marido estreitar os olhos e em seguida lhe lançar um beijo — Assim que amanhecer vocês estarão descansados e poderão fazer a viagem de volta.

— Mamãe, eu vou dormir com você hoje — resmungou Stephany, olhando pelo canto do olho o festival de trovões que acontecia lá fora.

— Tudo bem, meu amor. Mas então pega um fronha nova para... Ah, meu Deus! As roupas no varal! — exclamou a mulher balançando as mãos e correndo em direção a porta de maneira divertida.

Acabou que choveu a noite inteira e nós tivemos que ficar ali, pois Dora não permitiria que seus convidados fossem embora ensopados. Jantamos frango assado com batatas e depois eu e Stephany fomos escaladas para lavar e guardar a louça enquanto Jimmy ouvia Jason falar de seus planos e transformar o grande espaço no quintal em uma galeria de arte.

Conversamos sobre amenidades durante um longo período e até mesmo Stephany falava das suas aventuras na escola e seu sonho de ser bailarina, sendo quase aplaudida pelos pais. Em seguida Dora colocou a garota para dormir no quarto do casal e preparou o outro para mim e Jimmy, enquanto isso nós perdíamos de lavada no jogo de pôquer.

Aquela família era tão feliz que isso irradiava aquela casa quase como um sol, e por um momento eu me sentia também afetada por aquilo e sabia que meu irmão também se sentia daquela forma.

Já estava tarde quando todos nós decidimos por unanimidade que era hora de dormir. Eu não havia percebido antes, mas o quarto de Stephany, que fora destinado para nós, era o meu antigo. Abri a porta e logo me deparei com uma coleção invejável de bonecas e desenhos espalhados pelas paredes. A cama estava arrumada com um edredom da Barbie e havia um colchão no chão, fazendo outra.

Tirei os tênis em silêncio e deitei, observando o cômodo escuro por vários minutos. Uma sensação de nostalgia me invadia completamente. Os trovões estouravam do lado de fora da casa, me sobressaltando com pequenos sustos, e de repente eu senti Jimmy segurar a minha mão.

— Eu não consigo dormir com essa chuva. — murmurou com o olhar assustado na cama improvisada.

— Você tem medo de trovões também? — questionei franzindo a testa.

— Mais ou menos. — ele deu de ombros, olhando para baixo, então suspirou — Ok, eu tenho.

— Vem cá. — disse batendo com a outra mão no meu colchão e dando espaço para que ele pudesse deitar. Jimmy mais do que rapidamente pulou do chão, ajeitando-se ao meu lado. Ficamos em silêncio por mais alguns minutos quando me lembrei de algo importante — O Dean vai nos matar, já devíamos ter voltado.

— Mas o Castiel não tem tipo um radar para saber onde você está? — indagou o nefilim.

— Na verdade ele só consegue saber onde eu estou se eu rezar para ele, porque eu tenho um cunho enoquiano que impede que qualquer anjo me ache. — esclareci, de fato era isso que eu sabia. Agora se tinha algum modo dele me localizar por causa da marca do guardião, isso era outra história.

— Interessante. — murmurou o garoto, um trovão explodindo novamente e o sobressaltando — Posso te perguntar uma coisa?

— Claro. — respondi confusa com a questão repentina.

— Você está bem?

— Você acha que eu não estou?

— Não sou só eu, todos já perceberam. — revelou Jimmy com a voz baixa, dando uma pausa em seguida — Tem alguma coisa a ver com a Elisabeth?

— Eu realmente não quero falar sobre esse assunto. — suspirei, ajeitando o travesseiro e colocando os cabelos para trás.

— Mas devia. — insistiu o nefilim com um bico manhoso.

— O que você quer saber? — questionei bufando — Só por que eu não estou lá paparicando aquela genocida ressuscitada não significa que ela me afete em alguma coisa!

— Já vi tudo. — Jimmy rolou os olhos, puxando o edredom para si e me deixando sem nada — Olha, no começo todo mundo pensava assim, só que nessa semana a Elisabeth nos ajudou muito. Parece até mentira toda aquela história...

— Mas não é mentira, Jimmy! — interrompi, pegando o tecido com estampa da Barbie e colocando sobre mim novamente, dessa vez o deixando de fora — Ela fez coisas horríveis e todo mundo parece ter esquecido.

— Acho que é porque vocês são idênticas, e todos nós sabemos que você seria incapaz de qualquer maldade. — observou o garoto, pegando o travesseiro inteiro para ele.

— Só que... — comecei, tentando puxar de volta, mas ele não soltava. Outro trovão ecoou alto, me fazendo dar um pulinho sobre a cama.

— Calada, não terminei ainda. — cortou com um sorriso, aquela brincadeira estava divertida para ele. — E por mais que ela tenha feito o que fez, as pessoas mudam e merecem segundas chances. — falou soltando o objeto e ajeitando-se embaixo do edredom novamente, adquirindo um tom sério de repente — Olha pra mim.

— O que tem você? — questionei.

— Esther, não fica brava comigo, ok? — começou depois de inspirar fundo — Mas eu sempre culpei você pela morte da nossa mãe.

— Como é? — perguntei logo após alguns segundos, pisquei várias vezes para processar a informação, um nó se formando na minha garganta.

— Eu era pequeno, mas eu me lembro de quando aqueles homens entraram na casa e ela te trancou no guarda-roupas. Logo depois Marina me olhou e disse “Você precisa proteger a sua irmã quando chegar a hora”. E em seguida ela se sacrificou para te manter a salvo. — revelou o nefilim com os olhos tristonhos — Sempre que eu me lembrava disso, eu tinha muita raiva, Esther.

— Me desculpe. — sussurrei com uma mistura de tristeza e constrangimento.

— Não se desculpe, eu estava errado. — Jimmy balançou a cabeça, segurando minha mão — Depois que eu te conheci, eu finalmente pude entender o quanto eu estava errado. E eu nunca poderia ter feito isso se não tivesse me dado uma segunda chance.

— Mas você não pode compará-la a você. — disparei. Era completamente diferente uma situação da outra.

— Tem razão, mas isso não muda que o princípio das segundas chances está certo. — descartou o garoto — O Castiel disse que o que faz o portador da graça se tornar cruel é justamente a parte de Lúcifer, e Elisabeth não a tem mais, logo ela voltou a ser uma garota como você. Incapaz de machucar qualquer coisa.

— E partindo desse ponto, quem vai acabar machucando sou eu. — disse secamente, mais uma vez aquela maldita profecia batendo na minha cara e dizendo o que eu iria me tornar.

— Não vai. — ele balançou a cabeça para os lados várias vezes, então deu um sorriso juvenil, apertando a ponta do meu nariz — Eu confio em você, mana. — destacou o final, me fazendo sorrir também.

— Vem cá, cabeção. — brinquei, abraçando-o apertado por alguns segundos — Eu vou tentar, ok? Mas não prometo nada. — finalizei com um suspiro e Jimmy assentiu, outro trovão ecoou no céu e nós nos assustamos de novo, dessa vez começando a rir em seguida. Alguns minutos depois, finalmente conseguimos pegar no sono.

Abri os olhos e a luz da manhã já entrava pelas frestas da janela, mas havia algo diferente, ou melhor, algo familiar. O quarto estava idêntico ao que eu havia deixado, a cama no mesmo lugar, o mesmo cobertor, o computador, as cortinas, tudo. Levantei e observei ao redor, não encontrando Jimmy no cômodo ou mesmo a cama improvisada.

Girei a maçaneta e comecei a caminhar pelo segundo andar e em seguida descer as escadas, seguindo o cheiro das torradas com geleia de uva que vinha da cozinha. A casa estava completamente igual à antiga funerária, os móveis, a bíblia, os quadros e até mesmo os terços de Lucius sob a escrivaninha.

Parei em frente à estante, onde em um porta retrato tinha uma foto minha com meus tios. Na imagem, eles me abraçavam, felizes, e até mesmo Elena que nunca fora de demonstrar sentimentos, sorria. Não pude deixar de puxar os cantos dos lábios para cima ao ver aquela cena, eu lembrava perfeitamente. Foi no meu aniversário de doze anos, não tinha tido festa ou brincadeiras, ao invés disso, nós comemos bolo numa casa de caridade e rezamos para os doentes. Não era o aniversário perfeito para uma criança, mas me trazia saudades.

Larguei o objeto, sentindo um nó na garganta com a nostalgia e entrando na cozinha que estava completamente vazia, a não ser pela mesa cheia com o café da manhã. Estava na cara o que era aquilo, eu só me perguntava o porquê dos meus tios não estarem ali.

— Isso é um sonho, certo? — perguntei em voz alta.

— Ótima percepção. — respondeu a voz de Castiel, aparecendo atrás de mim de repente. Sua expressão era calma, porém demonstrava certa preocupação — Onde você está?

— O que eu te falei sobre entrar nos meus sonhos? — disparei piscando duas vezes.

— O que eu te falei sobre não desaparecer como fumaça? — rebateu o anjo no mesmo lugar, a voz adquirindo um tom sarcástico desaprovador — Ah é mesmo, não falei porque achei que você não fosse ser tão imprudente!

— Dá para se acalmar, por favor? — pedi gesticulando com a mão.

— Você está com Jimmy, não está? — questionou sem me dar ouvidos, apertando os olhos e olhando ao redor como se o procurasse — Eu vou matá-lo.

— Sem dramas, Castiel. — fiz uma careta de tédio — Eu só vim fazer uma visita na minha antiga casa, nada demais.

— Isso explica esse cenário. — comentou o anjo, observando o cômodo por longos segundos — Você tem que voltar agora.

— Eu não tenho que fazer nada. — dei de ombros, indo até a mesa e pegando uma torrada quentinha que parecia deliciosa. E mesmo que não fosse real, o gosto ainda era incrível — Vá embora e me deixe ter um sonho em paz. — decretei de boca cheia.

— É perigoso, se acontecer alguma coisa, Jimmy não será capaz de te proteger. — advertiu o anjo de maneira persuasiva.

— E você seria? Claro, se a Elisabeth te der uma folga de lixar as unhas dela. — retruquei, virando o rosto para fitá-lo com os olhos apertados, então apontei um dedo como se desse ordens para um cachorro de forma irônica — Castiel, rola! Castiel, senta! Castiel, não faz xixi no tapete importado da Hungria!

— Sarcasmo? — questionou arqueando uma sobrancelha.

— Ótima percepção. — devolvi com um sorriso debochado enquanto me levantava e ia até a geladeira pegar a caixa de leite, que segundo as minhas lembranças, estava escondida atrás dos potes de margarina.

— Você está sendo infantil. — falou Castiel vindo atrás de mim. Servi um copo rapidamente e fechei a porta com o calcanhar, tomando um longo gole e voltando a encará-lo.

— E você é um cretino estúpido, o número de assassinatos dela é maior que os números da bolsa de valores e mesmo assim você vai correndo e abanando o rabo, feliz da vida — meu tom de voz saindo com níveis até então desconhecidos de acidez e ironia. O anjo manteve a expressão calma e moveu a mão em direção ao meu rosto.

— Dá para parar de me comparar a um cachorro? — pediu de maneira suave, passando o dedo por cima do meu lábio superior e limpando um bigode de leite que havia ficado ali, me desconcertando com o gesto súbito.

— Quando você parar de agir feito um. — murmurei, piscando algumas vezes e me afastando dele.

— Você não entende. — explicou com um suspiro derrotado, os olhos azuis vagando pelo cômodo e voltando a me encarar com um ar triste.

— Tem razão, eu não entendo. — admiti balançando a cabeça — Mas queria entender. — falei seriamente. Então Castiel respirou fundo, deixando o ar sair de uma só vez pela boca, a linha do maxilar levemente tensionada.

— Vem cá. — pediu com a voz baixa e calma, estendendo as mãos em direção as minhas e me puxando pelos pulsos para que pudesse ficar extremamente perto de mim. Como ele era significativamente mais alto, eu tive que levantar cabeça para encará-lo diretamente, e aquela aproximação toda fazia com que até mesmo minha respiração ficasse descompassada.

O anjo deslizou os dedos pelos meus braços, deixando um rastro elétrico pelo caminho e encostou a testa na minha, respirando contra o meu rosto. Fechei os olhos por um momento, tentando me desvencilhar quase sem querer, mas ele me segurou com mais força, levantando o meu queixo e me olhando fixamente, fazendo com que eu me perdesse naquele azul poderoso. Então tudo tremeu.

Uma cena familiar passava pelos meus olhos, só que dessa vez eu conseguia ver o que acontecia depois dela. Elisabeth caia do penhasco e Castiel permanecia ali, parado e imóvel, com se tivesse desaprendido a mover-se. Embora a casca não fosse a mesma, seus olhos inconfundíveis brilhavam na penumbra da noite com uma melancolia quase palpável. A brisa gélida e abafada pelo calor das chamas fazia as copas das árvores dançarem sob o som das ondas quebrando-se nas pedras e os gritos dos aldeões.

O brilho dourado na lâmina angelical foi apagando-se lentamente conforme as gotas de sangue escorriam para o chão, e seus dedos logo largaram o objeto que rolou sinuosamente penhasco abaixo. Eu conseguia sentir dentro de mim o tamanho da dor que ele trazia naquele momento, era tão intensa que parecia rasgar o peito de dentro para fora. E de repente, informações começaram a ser recebidas aleatoriamente, os sentidos angelicais captando uma segunda frequência que agora conseguia fazer-se audível dentro de um corpo que não mais respirava. Um segundo coração parava de pulsar naquele instante.

Castiel ficou completamente atônito e confuso com aquilo. As ordens estavam cumpridas, então porque ele se sentia tão mal? Como se tivesse sido dilacerado por séculos. Precisava de explicações e sabia exatamente onde encontrar.

— Ei, quem é você? Não pode ir entrando assim... — tentava intervir o guarda do castelo onde a suposta Elisabeth Bathory fora condenada a ser imprisionada viva.

— Sai da minha frente! — falou Castiel, movendo o braço e no mesmo segundo o homem foi arremessado contra uma parede, caindo inconsciente. Outros vieram e tiveram o mesmo destino do primeiro. O anjo parou em frente ao cômodo fechado e a parede ruiu como se tivesse sido explodida por dentro, e lá estava uma mulher envolta numa capa de seda negra. A mesma encarou a cena por um momento e então se virou para ele.

— Se estás aqui é porque a Senhora está morta — disse com um suspiro derrotado.

— Não tenho tempo para perder com você, bruxa. Só quero que me responda uma pergunta: Elisabeth estava grávida? — questionou impaciente.

— O poder da graça ficava minando tanto a tua percepção que tu não conseguiste perceber a tempo, não é? — indagou Darvúlia com um sorriso diabólico, mas carregado de tristeza.

— Não responda uma pergunta com outra pergunta. — chiou Castiel, o tom autoritário. A mulher caminhou lentamente até o outro lado do cubículo, arrastando a capa pelos destroços da parede.

— Dois meses. — respondeu com um suspiro. O anjo abaixou a cabeça com o olhar descrente e cheio de dor, fechando os olhos por segundos, como se tentasse negar para si mesmo que por sua culpa, o próprio filho estava morto. — Mas tu não pareces bem para quem acabou de mergulhar as mãos no sangue. Está sentindo tuas veias se inflamarem por ódio, raiva, dor? Isso se chama remorso, e ele vai te perseguir pela eternidade. — Darvúlia deu uma risada alta, fazendo com que ele a encarasse novamente.

— E você vai morrer nesse buraco. — disse com frieza, movendo a mão em direção a bruxa e então os destroços começaram a se juntar em seus devidos lugares vagarosamente — Tanto você como Elisabeth fizeram coisas terríveis e isso precisa ser consertado e apagado. Você continuará aqui e ninguém nunca descobrirá a fuga da Condessa.

— Começos violentos têm finais repletos de sangue, lembre-se disso, Castiel. — começou a mulher com a voz rouca e cheia de si, enquanto era imprisionada novamente — Isso vai se repetir vez após vez até que tu aprendas que algumas coisas simplesmente não foram feitas para dar certo. — disse por trás do muro, enquanto o último pedaço de pedra era colocado e o anjo desaparecia.

Tudo tremeu e eu estava sendo tragada de volta, mas não antes de ver a cena que mais me fez ser despedaçada por completo. Uma rosa vermelha era colocada em cima de um túmulo alto, a chuva caia sem parar e os trovões ricocheteavam no céu com ferocidade, causando flashes de luz intensos combinados com os relâmpagos. Reconheci de imediato o cemitério onde tudo começou, completamente abandonado, a não ser por Castiel que continuava imóvel em frente à estrutura de mármore.

A água descia pelo seu rosto conforme ele movia a mão e uma estátua moldava-se sob a lápide na forma de um anjo vigilante, em letras douradas e ásperas estava escrito “Catherine Lisenbroder”, um nome falso para alguém que nunca deveria se encontrada.

E de repente, como se tivesse saído de um torpor de séculos, ele ajoelhou-se em frente ao túmulo com um grito que ecoou raios no céu. O anjo dava socos que faziam a estrutura balançar e relâmpagos iluminarem o cemitério. Logo a sombra de uma grande par de asas negras mostrava-se imponentemente erguida sob suas costas. Ele chorava, mas não havia lágrimas. Ele gritava, mas não havia som. E quando tudo parecia doloroso demais para ser suportado, veio a calmaria.

Castiel sentiu seu braço iluminar-se, era como se queimasse no fogo mais quente que já existiu. A marca do guardião do guardião desaparecia por completo e de repente não havia mais nada. O anjo levantou-se confuso e atordoado, a expressão óbvia de quem não entendia o que estava acontecendo. Ordens foram mandadas através do radar angelical para que retornasse ao céu imediatamente, e assim ele o fez. Tudo fora apagado e consertado, mais uma vez.

— Isso foi... — comecei a falar, mas senti que minha garganta estava presa. Meus olhos ardiam profundamente com o choro trancado. Eu não sabia exatamente o que eu sentia, se era por mim, se era por ele, se era por tudo, eu apenas sentia.

— Agora você entende? — perguntou Castiel, me encarando com as íris azuis intensas e então eu percebi que ele segurava meu rosto entre as mãos como se eu pudesse simplesmente vazar pelos seus dedos — Toda vez que essa cena passa na minha mente, eu sinto como se fosse desaparecer, quisera eu poder desaparecer. Agora que eu sei de tudo isso, eu não posso e não quero magoá-la de novo.

— Você a ama? — questionei, fazendo-o piscar algumas vezes. E vendo que ele havia ficado sem resposta eu o puxei pela nuca para que encostasse o rosto no meu de modo que nossos narizes se tocassem — Você a ama Castiel? — repeti de modo mais firme. Ele fechou os olhos, respirando de forma irregular.

— Eu não sei. — sussurrou com a voz grave. Dei uma pausa, puxando o ar devagar antes de me desvencilhar gentilmente de suas mãos.

— Eu espero que o “eu não sei” valha a pena. — falei limpando as lágrimas que melavam todo o meu rosto e recuando alguns passos.

— Você... — começou completamente perdido.

— Sai daqui, Cass. Eu volto amanhã, só me dá um tempo. — interrompi virando as costas e ele veio atrás de mim, segurando meu cotovelo.

— Mas Esther... — tentou dizer alguma coisa, porém eu o cortei novamente me esquivando de seus dedos. Uma lágrima triste e solitária escapou pelo meu olho, caindo até meus lábios para que eu pudesse sentir seu gosto amargo. Uma única lágrima com a intensidade de mil.

— Volta para ela e me deixa em paz, por favor. — sentenciei fazendo com que o anjo me encarasse por alguns segundos, e então pareceu entender que deveria ir embora. Desviei o olhar por um instante e ouvi um farfalhar de asas, ele havia partido.

Tudo precisava ser apagado e consertado. Mas para mim essa frase não tinha utilidade nenhuma. Não se podia apagar um sentimento, e era impossível consertar um coração.


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Notas finais do capítulo

Tio Lú mais divertido do que nunca. Elisabeth "boazinha", será? Jimmy e Esther fortalecendo as relações de irmãos. Castiel mais confuso do que nunca (novidade).
Próximo em breve! Um beijão! ♥



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