Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 80
O plano




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/508366/chapter/80

[Armin]

A emoção e o calor do momento não deixaram que eu percebesse num primeiro instante os donos das outras duas vozes que conversavam com Kentin instantes antes: Nathaniel e Burniel. 

Às costas do meu velho amigo, encontrei seus olhares exaustos e assustados, provavelmente pegos de surpresa pela nossa aparição repentina e escandalosa. Estavam sentados sobre os degraus logo de frente para a grande porta do terraço e levavam consigo alguns “brinquedinhos” que me fizeram ouriçar feito um felino em perigo: uma katana e uma espingarda. 

— Kentin, seu olho…! — Elsie se dirigiu a Kentin com lamento, cheia de compaixão. Seu olho atingido durante nosso combate contra Íris e Jun permanecia com a pálpebra fechada, tinha um pequeno e brutal rasgo desde a sobrancelha. Doía só de olhar.   

— Não foi nada demais — falou Kentin, com um sorriso desconcertado, claramente mentindo — Estaria muito pior se aqueles dois não tivessem me ajudado mais cedo — apontou com o polegar para trás, para Burniel e Nathaniel 

“Ajudar”? Essa era nova. Killers ajudando uns aos outros parecia uma grande piada. Até entendia a existência de “panelinhas” dentro do jogo, mas agregar desconhecidos dentro da própria panela e fazer novos aliados era uma tática que simplesmente não fazia sentido. 

Nathaniel se ergueu do degrau (ele quem segurava a katana) e disse com os ares cerimoniais de representante do grêmio de sempre: 

— Nós três queremos sair daqui. Por que não se juntam à gente?  

— Isso, isso — Kentin não deu tempo para que nós respondêssemos e segurou minha mão e de Elsie com força. Ele sorria, mesmo que seu olhar carregasse um desespero contido — Vamos sair daqui. Vamos colocar esse lugar de cabeça pra baixo. Temos provas pra conseguirmos mostrar pra toda a França o que Shermansky fez e tem feito durante todos esses anos. Não, não — abanou a cabeça — Melhor. Mostrar pra todo o mundo. Todo o mundo vai descobrir o inferno que nós tivemos que viver nesse lugar. Com essas provas nossos crimes serão redimidos. Vamos estar livres. Livres…!     

Agora entendia o porquê da “ajuda” de Nathaniel e Burniel. Então era isso? A revolta das baratas realmente estava pra acontecer? Isso era melhor do que tudo que eu poderia ter cogitado até então. Sorri confiante: 

— Não precisa falar mais nada, Kentin. Era exatamente o que eu e Elsie estávamos planejando. Tô mais que maluco pra sair desse inferno.

Parei por um instante. Eu mesmo não tinha traçado nenhum plano concreto quando decidi que cairia fora daquele jogo.

— Mas o que vocês pretendem fazer? — perguntei, com grande curiosidade. 

Kentin nos explicou detalhe por detalhe a ideia que tinham: com alguns materiais que conseguiram obter na sala de química, queriam provocar uma combustão no terraço da escola, um “sinal de fumaça”, como assim disseram, na ideia de atrair a atenção de fora para dentro. Logo de começo achei uma maluquice tremenda, papo de doido. Mas, de repente, percebi que não tínhamos muitas escolhas nas nossas mãos. Era impossível escapar para fora sem ser pego e devorado. Era como se realmente estivéssemos ilhados dentro do colégio. O sinal de fumaça seria nossa única alternativa para pedir socorro. 

— Primeiro precisamos parar os seus cronômetros também — disse Kentin apontando para Elsie e eu. Daí reparei como nenhum dos membros do trio, inclusive ele próprio, carregava mais o apetrecho nos punhos. 

— Como vocês conseguiram tirar essa porcaria? — perguntei, com um sorrisinho de canto, num misto de espanto e esperança com aquela constatação. 

— Química — Burniel respondeu com a voz cansada, como quem economiza nas palavras para não perder a pouca força que lhe restava. Sequer lembrava a última vez que o tinha visto e de repente encontrá-lo ali, naquele estado de alma, me causou certo espanto. 

Nathaniel de repente se virou para todos:     

— Agora que estamos em número maior e a chuva parou, dá para nos dividirmos em algumas tarefas e já colocar o plano final em prática.  

— Certo — interveio Elsie — Mas como? 

— Bom… — Nathaniel limpou a garganta pigarreando - Depois da chuva o terraço está úmido. Seria um desastre tentar fazer uma combustão desse jeito. Então pensei em algo que pudesse ampliar a fumaça: algumas pilhas de papéis inúteis que ficam lá no Grêmio. Então, podemos fazer o seguinte: Vou com Burniel lá embaixo. Kentin leva vocês dois até o laboratório de química e destrói o cronômetro no pulso de vocês. Quando cada um terminar a sua parte, nos unimos aqui em cima de novo e fazemos o que precisa ser feito.  

— Ah… — balbuciou Kentin com algum constrangimento — Eu não lembro de como vocês fizeram aquilo de derreter o cronômetro… Só ajudei a arrombar a porta…  

Nathaniel começou a coçar o queixo, pensativo:

— Burniel vai com Elsie e Armin, então. Você vem comigo, Kentin.

No mesmo momento olhei para o olho machucado de Kentin, rasgado. Lembrei do nosso combate fracassado contra Jun e Íris e o fato de que tinha covardemente deixado meu melhor amigo para trás naquele momento de pânico. Não que tivesse pensado muito racionalmente a respeito, mas aquele era o momento ideal para me redimir da culpa:

— Kentin tá com o olho machucado, – falei – não é seguro se arriscar assim caso vocês se depararem com alguém no meio do caminho. Kentin e Burniel podem levar a Elsie até o laboratório em segurança. Eu vou com você, Nathaniel. 

— Não faz sentido — respondeu o loiro — E você vai ficar com o cronômetro no pulso? 

— Só quero agilizar o processo. Meu cronômetro ainda tem bastante tempo. Eu resetei ele.  Elsie tem menos tempo. Tem que ser a nossa prioridade. 

Olhei para o lado pela força do hábito e me deparei com a expressão contrariada de Elsie olhando pro fundo da minha alma. Sabia que ela provavelmente tinha se sentido ofendida com a minha ideia intrometida dentro do plano, porque ela não era do tipo que gostava de sentir que precisava ser ajudada. Mas, de repente, Elsie acenou com a cabeça --  ela entendia a minha urgência e sabia que aquela era a nossa melhor estratégia dentro dos recursos e do tempo que tínhamos sobrando, afinal. 

O grupo expôs todos os armamentos que tinha em mãos. Repartimos tudo tendo em mente quem tinha mais experiência ou mais facilidade com uma arma específica, quem era mais habilidoso e tal… Fiquei aliviado porque a pistola que Elsie tinha pego no subterrâneo da escola já estava com pouca munição.    

Me virei para Elsie e sorri com os lábios. Ela me olhou com um rostinho de aflição que me doeu por dentro. Não havíamos nos separado desde que o jogo tinha começado e aquela despedida, mesmo que momentânea, dava um tremor no coração. 

Me aproximei, coloquei a mão na lateral do seu rosto, fechei o olho e tasquei-lhe um beijo. Ali mesmo. Não percebi se os “espectadores” tinham ficado incomodados -- e nem ligava que fosse o caso. Elsie apertou meu rosto com as suas duas mãos e pressionou os lábios com mais força. Desgrudamos o beijo e ela me olhou nos olhos com firmeza, falou baixo: 

— Você ainda vai ter que me levar no Arribas, viu?

Alarguei o sorriso:

— Não precisa nem me lembrar – murmurei. 

Nos despedimos ali. Saí com um sentimento de um soldado que vai pra guerra, pra um destino incerto de morte, e deixa sua noiva pra trás. 

Mas agora não era momento para deixar o medo me travar. Tínhamos que agir o quanto antes. Inclinei o olhar até Nathaniel, que estava alguns degraus acima, parado e olhando para o alto como uma estátua de herói dantesco, um mártir todo esfarrapado e cheio de hematomas.  

 

[Burniel]

Era difícil não ficar bitolado pensando se aquela aliança era ou não uma boa ideia. Mesmo que agora eu soubesse das mentiras de Jade e que existia o jogo da velhaca, as más impressões que tinha criado de Elsie e Armin ainda tinham ficado gravadas em mim. Kentin também -- embora até então tivesse se mostrado bastante alinhado conosco, tinha minhas dúvidas se não estávamos sendo usados por ele. Eu sei. Talvez eu estivesse sendo muito paranóico pensando em todas aquelas possibilidades, mas depois de viver tantas mentiras era difícil não desconfiar de tudo. 

Andávamos os três juntos pelos corredores, atentos. Foi esquisito não estar com Nathaniel pela primeira vez depois de ficarmos juntos durante todos aqueles dias esgotantes.

Quando chegamos à sala do laboratório, percebemos que a porta estava arregaçada (e bem lembramos que tínhamos deixado ela fechada antes de sair…) e uma surpresa um tanto desagradável nos aguardava alguns metros à frente: o corpo de Íris, estendido e ensanguentado sobre o chão. Estava caída de barriga para baixo enquanto diversos furos tinham perfurado suas costas. 

Cobri a boca com a mão tentando não vomitar. Kentin e Elsie se enrijeceram no mesmo instante e posicionaram seus armamentos, entrando instantaneamente em estado de alerta como dois felinos ouriçados.     

Kentin tomou a frente. Se esgueirou cuidadosamente sobre a parede e meteu a cabeça pra dentro da sala do laboratório para inspecioná-la, imaginando que o autor do crime pudesse ainda estar lá dentro. Se voltou para nós logo em seguida: 

— O Jun também não tá mais aqui. 

Fiquei até bambo nas pernas. Mas que putaria era aquilo ali, então? Íris e o japonês lá não eram um casalzinho? Será que ele tinha acordado e os dois tinham caído numa briga de marido e mulher? Trágico. 

Bom, algo me parecia mal contado naquela história, mas se isso significava que aqueles dois não nos ofereciam mais nenhum risco, pouco importava agora. Kentin se certificou de que Íris realmente estava… morta…       

Mesmo que fosse uma situação desconfortável e incerta, a barra tava “limpa” agora. Entramos no laboratório e nos trancamos lá pra começar os procedimentos.

  

[Nathaniel]

Diferentemente do que eu esperava, Armin e eu chegamos à sala do Grêmio sem qualquer complicação, o que não me impediu de fazer algumas reflexões durante o meio do caminho.

Naquela situação, transitando pelos corredores rumo ao térreo, não corríamos, mas andávamos com alguma pressa -- não aquela pressa afobada e louca dos primeiros dias que a escola se tornou um campo de batalha. Na verdade, andávamos como se estivéssemos atrasados para a aula num dia comum. Algo assim. Observava Armin ao meu lado, tão ferido e sujo quanto eu, com os passos pesados e uma feição endurecida de sobrancelhas franzidas. Era impossível não me recordar e fazer um paralelo com o Armin pascoalão e indisciplinado que sempre via passando por aqueles corredores, nos dias pacíficos de Sweet Amoris, como quem não queria nada com nada e que me dava nos nervos só de ver.

Jay tinha razão quando dizia que eu era um perfeccionista frustrado. Era realmente aquilo. Julgava Armin porque queria ser que nem ele. 

Pensei numa realidade alternativa onde fosse parte do seu grupo seleto de amigos. É, talvez isso pudesse acontecer numa realidade alternativa. Ser amigo do pascoalão irresponsável do Armin.     

Mas agora eu o via com outros olhos. Assim que comecei a suspeitar do seu envolvimento na “morte” de Jade, comecei a ter uma ideia diferente a seu respeito. Pensei nele como um “duas caras”, alguém que tivesse nervos pra matar e no dia seguinte agir como se nada tivesse acontecido. Mas, parando para pensar, nós dois não compartilhávamos do mesmo pecado? Eu também não havia matado alguém com as minhas próprias mãos? 

Não trocamos uma palavra sequer durante o caminho. E eu fui pensando em todas essas coisas; em todas essas realidades alternativas e em qual seria a verdadeira identidade de Armin Moreau enquanto caminhávamos lado a lado, descendo andar por andar daquela Sweet Amoris silenciosa e apocalíptica até que enfim estávamos parados em frente a porta do Grêmio estudantil.     

Tinha que catar o máximo de papelada logo. Comecei a vasculhar a sala e abrir pastas e armários enquanto Armin ficou parado na porta, com os braços cruzados, de guarda. A minha curiosidade aguda não me permitiu ficar com a boca fechada por muito tempo, então logo tentei puxar algum assunto:  

— O que pretende fazer quando sair daqui? 

Minha pergunta pareceu desarmar Armin, que descruzou os braços e suavizou sua expressão rígida no mesmo instante.

— Quando sair? – perguntou ele, com a voz branda – De Sweet Amoris? 

— Isso. Deve estar cheio de planos já, não? 

Ele coçou a nuca como se isso o ajudasse a pensar, depois abriu um sorriso:

— Prefiro não comemorar antes de hora. 

Um silêncio duro prevaleceu por algum tempo antes que ele continuasse a falar:

— Parece que já faz tantos anos que tô dentro disso, que é difícil imaginar uma realidade que eu me sinta verdadeiramente livre do fantasma da Shermansky. Na verdade, parece até um sonho pensar nisso. Depois de perder a conta de quanta gente matei aqui dentro, comecei a ter medo de não conseguir mais viver uma vida normal…    

Sua última fala despertou algo dentro de mim. Não, não alimentou minhas desconfianças. Na verdade, era como se eu o compreendesse. 

— Jack foi morto – falei, de repente. Saiu como um soluço involuntário.  

Parei minha tarefa e encarei Armin:

— Eu o matei. 

Armin arregalou os olhos em sobressalto. Chegou a abrir a boca e soltou um balbucio indistinguível. 

— Ele descobriu boa parte da conspiração de Shermansky e por isso foi usado como refém por ela – continuei – Eu poderia tentar ignorar a culpa e dizer que foi Shermansky quem me obrigou a cometer o ato. Mas a partir do momento que você puxa o gatilho, foi você quem agiu, qualquer que fossem as suas motivações e responsabilidades. Quem vai carregar esse peso pro resto da vida é você.

Armin ficou inerte. Nada disse. Voltei à tarefa de recolher papéis depois da catarse, tentando -- é claro -- disfarçar a vontade de choro.

Quando finalmente estávamos para sair com três sacolas abarrotadas de papel e prontos para prosseguir com o plano, os poucos dispositivos eletrônicos ligados como o computador e as câmeras dos corredores de repente se desligaram. 

Pensamos que se tratava de um apagão generalizado que recaiu sobre o bairro inteiro e tinha nos abençoado. Mas sabíamos que isso não parecia algo plausível, porque Shermansky precavia os menores detalhes e com certeza os geradores de energia da escola teriam feito aquela falha passar despercebida. Logo, aquilo só poderia ser uma obra de mãos humanas. Alguém tinha desligado toda energia de Sweet Amoris e provocado um Blackout. 

E nossa hipótese estava prestes a se confirmar quando a penumbra de uma forma humana veio em nossa direção no corredor, com as mãos estendidas para o alto em sinal de paz. 

Quando a sombra em forma de gente ficou suficientemente próxima, não tivemos dúvidas de quem era aquele rosto familiar: professor Faraize.      


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Identidade Homicida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.