Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 81
No escuro


Notas iniciais do capítulo

feliz 2024 queridos e queridas!!!



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[Kentin] 

Quanto mais o tempo passava, o borrão indistinguível e angustiante no meu olho esquerdo se intensificava cada vez mais. Os grãos de areia da ampulheta estavam chegando ao fim.  

Mas isso não podia me parar naquele momento. 

Burniel sempre foi uma incógnita pra mim: às vezes tinha a impressão que ele era um palerma; outras vezes, reconhecia que ele era um gênio incompreendido.  E quem diria que aquele esquisito tinha decorado perfeitamente a fórmula que Nathaniel tinha nos explicado algumas horas atrás. 

Por isso, derreter o cronômetro do pulso da Elsie não foi nenhuma dificuldade e acabou sendo a parte mais simples de toda a nossa movimentação. 

Estávamos de saída do laboratório, quando tive a leve impressão de ouvir um “bip” das duas câmeras de dentro da sala. Poderia ser um engano da minha visão, mas não pude deixar de perceber que as luzes vermelhas da câmera pareciam ter se apagado. 

Sem fazer qualquer comentário sobre a minha observação, seguimos pra fora, ignoramos o corpo de Íris estendido sobre o chão à nossa frente e prosseguimos para o terraço. Tinha sido tão simples que era de se estranhar -- como a sensação de que está se esquecendo de algo importante, sabe? Mas, afinal, Sweet Amoris era uma verdadeira zona de guerra. Não estávamos mais acostumados a andar com facilidade ou sem sofrer algum tipo de contra-tempo. 

Não à toa, aquela paranóia de que algo estava fora do lugar estava prestes a se comprovar, quando chegamos ao terraço e não vimos nem Armin, nem Nathaniel, como tínhamos combinado. 

No lugar deles, uma outra companhia nos aguardava, bem ao centro do terraço, parado como uma estátua sinistra em meio ao chuvisco que começava a cair. 

Imediatamente virei à minha esquerda, para Elsie, que parecia ter visto o próprio diabo na sua frente. À minha direita ouvi Burniel balbuciar amedrontado: 

— J-Jade?   




[Nathaniel] 

 

Faraize estava ali, há poucos metros de nós. Continuava com as mãos estendidas pro alto, pacificamente. 

— Eu programei as câmeras para desativarem — disse ele, sério — Sem câmeras, Hórus, aquele que tudo via, deixa de existir. 

Por um momento me questionei o que Faraize estaria fazendo naquele jogo e se eu não estava tendo algum tipo de alucinação. Mas a sua maneira enigmática de falar não me trazia dúvidas de que aquele à nossa frente era o meu querido professor. 

— Eu não estou armado como podem ver — continuou — Não ofereço nenhum risco a vocês.  

— E por que a gente deveria confiar em você? — rosnou Armin, que já estava com o punhal na mão, apertando-o firme. 

— Se vocês quiserem me matar, vão em frente. Mas aconselho que me ouçam antes. 

Armin me encarou. Acenei com a cabeça e ele meteu sua arma de volta na alça da calça. Faraize finalmente baixou os braços e prosseguiu: 

— Quero compartilhar algumas coisas com vocês. Tentarei ser o mais breve possível… Estava atrás de vocês há algum tempo já. Sei que querem e agora podem sair daqui. Mas será preciso uma mobilização conjunta. Me compadeço por vocês, que foram meus alunos, e por Jackelino, que foi um irmão para mim, por isso estou arriscando tudo que ainda tenho. A luz provavelmente retornará daqui uma hora, será o tempo que Shermansky se dará conta da minha interferência. Logo, esse é o tempo limite para vocês. 

Armin e eu o ouvíamos atentamente. Era como um prelúdio de morte. Faraize dizia muito sério e determinado, um contraste com o nosso professor acanhado de sempre:   

— A Central, grupo no qual você e Jack faziam parte e que você já descobriu se tratar de uma farsa, é um dos pilares que sustentam esse jogo. Quando Shermansky criou o jogo 20 anos atrás, onde Agatha Cotton foi a vencedora, todo o material recolhido… tudo tinha que ficar alojado em algum lugar físico. Por isso o campus da Central foi montado numa zona fabril pouco distante daqui, misturado entre tantas outras construções, passando despercebido.     

— O que você quer dizer com… “material recolhido”? — perguntei.  

— Então vocês ainda não perceberam o que é esse jogo?

Armin e eu nos entreolhamos. Faraize prosseguiu: 

— O “Identidade Homicida” teve como pontapé inicial as motivações... filosóficas… o que quer que queiram chamar essa insanidade da Shermansky. Mas ele não se sustentaria por muito tempo só com isso. Além do natural perigo disso tudo ser descoberto, Shermansky precisava de patrocinadores. De dinheiro. Precisava de dinheiro pra construir aparelhos como o keypass, pra incrementar mecânicas no seu jogo, pagar funcionários. E foi assim que ela construiu o seu império: com patrocinadores.  

— “Patrocinadores”?

— Isso. Institutos de psicologia, Universidades, grupos de estudo, seitas, todo tipo de pessoa que tinha interesse em uma ou nas duas dessas coisas: experimentação e sofrimento humano. Além de patrocinarem essas experiências, grande parte dessas Universidades servia também de bode expiatório, dando segurança em casos que saíam do controle de Shermansky. Todos os alunos desaparecidos apareciam inscritos nessas outras Universidades, mesmo que não as frequentassem, por exemplo. Porque esses alunos tinham sido mortos dentro do jogo. E Shermansky precisava desviar qualquer suspeita para cima de Sweet Amoris. Afinal, como que tantos alunos de um mesmo colégio estariam desaparecendo “misteriosamente”?       

— Foi assim que conseguiram despistar Amber das investigações… — me lembrava amargamente como Shermansky e o seu jogo tinham me tirado tudo aos poucos: primeiro Melody, depois Amber, Jay, e agora Jackelino.  

— Exatamente — disse Faraize, suspirando como se se lamentasse — No meio disso tudo, Shermansky começou a frequentar alguns grupos mais afortunados, onde conseguiu agrupar algumas pessoas com dinheiro que tinham interesses em comum com o dela. Daí surgiram os “telespectadores”, um grupo de apostadores que debate sobre as movimentações dentro do jogo. “Quem vai matar quem?”, “quem vai morrer primeiro?”, “o que será que ele faria nessa situação?”, “será que ele aguentaria passar por isso?”... são esses tipos de assuntos que saem da boca dessa gente. É como se apostassem o resultado de um jogo de basquete. O Identidade Homicida é um grande experimento da psique humana, manipulado pela Shermansky como um teatro de fantoches, fetiche de gente que gosta de ver o sofrimento humano. 

Armin e eu continuávamos em silêncio. Um filme fotográfico parecia passar bem na frente dos meus olhos, relembrando tudo o que eu tinha feito e visto dentro dos últimos meses em Sweet Amoris. E embora a ideia de ter sido observado durante todo aquele tempo me perturbasse ao extremo, trazia lógica às ações aparentemente arbitrárias de Shermansky. 

— Com o tempo, a própria Central se tornou um lugar de experiências — continuou Faraize — Você próprio e Jack eram experiências, por exemplo. A relação que vocês dois criaram era importante para que Shermansky manipulasse situações de estresse extremo para você. Jay também. Você deve se lembrar que ela foi estudada na Central desde que era uma criança. No caso, as habilidades dela eram estudadas lá. No mais, é só você observar o tanto de vezes que seus ideais foram colocados à prova, ou quantas pessoas próximas a você se tornaram vítimas do esquema. A própria morte de Jay e de Jack foram planejadas. Tudo que aconteceu e acontece aqui era observado por esses apostadores e telespectadores. Há muito dinheiro em torno disso e muitos nomes poderosos e famosos. Foi dessa forma que Shermansky se tornou “Hórus” e construiu o seu Império. É assim que ela possibilita criar situações dentro do jogo e mantê-lo funcionando.          

    — Então… nós estamos sendo vigiados? Tipo, nesse exato momento? — perguntou Armin. 

— Não. Por enquanto. Não até as câmeras ligarem novamente. Fui eu quem criei os keypass e ajudei Shermansky a modernizar o seu jogo, anos atrás. Por um convite dela e uma necessidade financeira que eu passava no momento. Essa foi a minha ruína. Mas exatamente por isso posso dizer que conheço cada canto em que há uma câmera instalada e cada tubulação desse lugar. O conhecimento é a minha arma contra o império de Shermansky, mas não tenho como usar isso ao meu favor sozinho. Porque eu ainda não sou nada contra Shermansky e, vocês sabem… por algumas circunstâncias da vida nós acabamos nos enfiando em buracos sem volta…   

— Nós podemos sair juntos, professor. Podemos unir o seu conhecimento ao nosso. Tudo o que vimos e tudo o que o senhor sabe. Tudo isso precisa ser revelado.  

— Sim! — vibrou Armin — Já estamos quase finalizando o plano pra conseguirmos chamar a ajuda. Em poucas horas todo esse inferno vai estar terminado! 

— O plano de vocês será que inútil se não derem um jeito em Shermansky primeiro. Será como cortar ervas-daninhas sem arrancá-las — verificou seu relógio de pulso — Vocês tem exatamente cinquenta e um minutos antes que as câmeras retornem. Usem esse tempo para irem até Shermansky despercebidos. Ela está no subsolo onde você esteve com Elsie anteriormente, Armin. É onde ela tem se mantido durante todo esse tempo. Vocês precisam expor não só o jogo, mas todos esses outros envolvidos, inclusive a Central. Além disso, precisam matar Shermansky. Essa é a única solução. 

— Enquanto a você? — perguntei — O que vai fazer? Por que não vem conosco?     

— Olhem… — suspirou — A minha salvação está em saber que expus a verdade às pessoas certas. Alguns pecados não podem ser simplesmente perdoados. Eu conspirei junto a Shermansky e contribui para a morte de inocentes, colaborei com quem destruiu a vida de Agatha e meus atos resultaram na morte de um colega que eu tinha como um irmão. O que eu sinto que posso fazer para me reconciliar com os vivos é ajudá-los a escapar daqui e dar um fim nesse ciclo de horrores de Eleonora. Pra mim, isso já é o suficiente.  

— Todos nós temos culpa no cartório — falou Armin. 

— Sim — reiterei — Não há santos neste lugar.  

Faraize balançou a cabeça enquanto exibia um sorriso triste.  

— Obrigado, Nathaniel e Armin. De verdade — suspirava — Mas já tomei muito do tempo de vocês. Agora aconselho que corram. Antes das câmeras se apagarem Shermansky tinha libertado seu cão sanguinário para mais um dos seus “teatro de horrores”. Ele muito provavelmente irá atrás de Elsie primeiro, mas ele busca dupla vingança. 

Vi Armin enrijecer ao meu lado, como se ele soubesse exatamente o que aquelas palavras significavam, e encarar Faraize com terror: 

— Você tá falando…?

— De Jade. Isso mesmo. 

Não consegui elaborar nenhuma resposta a tempo. Armin largou para trás todo o calhamaço de papel que demoramos para recolher na sala do Grêmio e disparou pelo corredor escuro sem sequer olhar para trás. 

Não sabia exatamente o que era o certo a se fazer. Para falar a verdade, lembro que naquele momento, depois da sequência nauseante de fatos que Faraize nos relatou, quase nenhum pensamento concreto rondava pela minha cabeça. Eu apenas sabia que algo deveria ser feito; mas não exatamente o quê. Então, rapidamente apanhei os papéis que Armin deixou para trás e, meio letárgico, sem pensar na possibilidade de que aquela era a última vez que veria Faraize, me despedi como se aquele fosse um dia qualquer em Sweet Amoris:

— Muito obrigado por tudo, professor. Até mais.  

 

 

 


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