Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 65
Libertação


Notas iniciais do capítulo

olá amores !! estão trancadinhos em casa?? como tão da cachola???


capitulo anterior elsie, armin e kentin vao dar um pau na primeira pessoa: dajan. kentin quase vai pro beleléu e o armin consegue resetar cronometro dele. elsie fica muito reflexiva (pra variar) e , por algum motivo, se sente mais proxima de conhecer o assassino de sua titia

pois agr bora pra onde estão nossos bolinhos de canela , nathaniel e burniel ……………..



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[Nathaniel] 

 

Encontramos um pen-drive entre as tralhas que o pessoal deixava no grêmio, resetamos toda a memória e passamos todas aquelas fotos e informações grotescas pro utensílio. Aquela minúscula e simples tecnologia de plástico nunca valeu um preço tão alto quanto valia agora, com o poder para destruir um esquema mórbido que tinha sido tão bem implantado por entre os muros de uma das melhores escolas da região. 

Agora precisávamos dar um jeito de conseguir escapar daquele lugar. Não éramos bestas; sabíamos que se Shermansky tinha nos colocado em seu joguinho, ela não tinha a intenção de nos deixar sair. 

Saímos os dois da sala do grêmio para o corredor principal e, depois, cautelosamente, fomos para o pátio. O pátio, caso não se lembre, é um dos pedaços mais espaçosos e expostos do colégio; isso nos obrigava a manter os olhos bem abertos para possíveis perigos escondidos. 

O portão de entrada estava fechado a apenas alguns metros à nossa frente. Ali. Quase que como um portão para o paraíso. Bastava apenas corrermos para alcançá-lo em um minuto.

Dezenas de alunos se deslocavam diariamente sobre aquela porção do terreno; fossem com seus grupinhos jogando conversa fora ou sozinhos com seus fones de ouvido. Eu, por exemplo, costumava passar bastante apressado pelo pedaço; geralmente atarefado com algo que o grêmio tinha me enchido a cabeça, ou, às vezes, procurando Amber pela escola; também tentei estudar uma ou duas vezes naquela namoradeira envernizada que ficava ali próximo. 

Num geral, os momentos que vivenciei naquele pátio ao longo dos anos foram simples e, talvez, de pouca importância; meramente cenas do dia-a-dia corriqueiro. E posso dizer que -- até aquele instante --, aquele trecho do pátio, entre a entrada da escola e o portão, nunca havia exigido tanto esforço e complexidade para ser transpassado. 

— Como vamos fazer agora? — sussurrou Burniel. 

Mordi o lábio inferior enquanto me punha a raciocinar. Não estávamos numa situação convencional; o que pedia medidas não convencionais como resolução. Se na Sweet Amoris dos dias comuns aquele portão era nosso portal de acesso para o mundo exterior, agora a ideia de sair por ele parecia completamente fora de questão. 

— Pensa comigo. — falei. — Os muros têm o sistema de cerca elétrica. Fora que seria muito arriscado nos expormos desse jeito. Ou seja, nem pelos portões, nem pelos muros. Acho que a opção que parece mais segura seria… irmos por baixo

— “Baixo”…? 

— Sim… Vamos pelo sistema de esgoto. 

Burniel franziu a testa em descrença: 

— Meu... Deus... Acha que é realmente o lugar mais seguro pra gente passar? Naquele escuro? — a apreensão era visível em sua voz.  

— Conhecendo a Shermansky como tenho conhecido, ela não deve ter deixado o subsolo completamente livre de segurança, mas com certeza é o lugar mais tranquilo de tentarmos passar. 

— Okay… E como que a gente consegue entrar num lugar desses? Pelos bueiros?! 

— Que garoto esperto. — sorri. — Vamos pela lateral direita da escola, em direção ao ginásio. Lembro que sempre vinha alguém do Grêmio reclamar porque o pessoal da manutenção uma vez foi lá embaixo e depois esqueceu de fechar a tampa com o parafuso de novo. Eu imagino que até hoje a grade esteja aberta, esperando alguém prender o pé e cair no bueiro; ou melhor, esperando por nós!

Burniel me encarou alguns segundos, sério. De repente deu uma risadinha meio anasalada, sorrindo com o canto dos lábios:

— Então você tá contando com a sorte desse bueiro ainda estar aberto, tipo, como aconteceu com a ventana da ventilação?  

— E nós não estamos contando com a sorte o tempo inteiro nesse lugar? — ri. 

 

***

 

Diferentemente do cenário claustrofóbico que eram os dutos de ventilação, os canais de esgoto eram consideravelmente largos, com uma profundidade de dois metros e meio mais que suficiente para nos mantermos de pé. Ouvíamos a presença do ar que circulava por aquelas entranhas, assim como o som ecoado dos pingos que vazavam para fora de algum encanamento velho. O cheiro de água podre era obviamente insuportável; e fazia o nariz arder. A única sorte -- se é que podíamos chamar desse jeito -- era o nível baixo da água, já que devia fazer umas boas horas desde que ninguém usava os banheiros. 

Eu e Burniel éramos, naquele momento, os maiores experts em andar por lugares incomuns dentro de Sweet Amoris. 

Logo que desci pela escada de ferro (ela, completamente degradada e fazendo rangidos que faz o maior dos ateus começa a rezar preces), acendi a lanterna do celular velho e iluminei a gruta que se estendia à nossa frente. Burniel desceu logo em seguida, cobrindo o rosto do nariz para baixo com o suéter. 

Eu definitivamente não tava num dos meus melhores dias. Imagine a figura: sujo, o antebraço com esparadrapo, barras da calça dobradas até o joelho, mocassim mergulhado no esgoto, camiseta praticamente aberta, gravata amarrada no pulso e olheiras cravadas no rosto. Desde que tinha acordado na sala com Burniel, era adrenalina atrás de adrenalina. A fome também já tava querendo me abater. Mas era lembrar daquele pendrive que eu carregava no bolso; lembrar de Amber, Jay, e até Melody; que surgia em mim um instinto que me impulsionava a sair daquele lugar a qualquer custo. 

Já não se tratava só do meu trabalho como detetive. Pessoas que eram importantes para mim tinham sido vítimas daquele esquema, afinal. 

Encarava o fundo aparentemente interminável do túnel pensando em tudo isso, sentindo o turbilhão de sentimentos e a ansiedade que inquietava o meu peito. Foi quando me caiu a ficha de que entregar aquele pendrive às autoridades significava não só uma forma de trazer justiça, mas também uma libertação, quase que espiritual, tanto para as pessoas que eu amava, quanto para mim mesmo. 

— Pra onde a gente segue agora? — perguntou Burniel, com a voz abafada pelo suéter. 

O keypass que tínhamos conseguido na sala em que acordamos tinha a planta do colégio, mas só para as salas… convencionais. Ou seja: nada útil para aquela ocasião. Tentei pensar logicamente. 

— Se formos pra lá, — apontei com o polegar por cima do ombro, para trás. — imagino que saímos de frente pra escola. 

Ambos demos meia-volta como o corpo e encaramos o longo caminho o qual iríamos percorrer.

Burniel bufou, receoso. E disse, parecendo tentar se auto-reconfortar: 

— Se o bueiro e a ventana tavam abertos, isso quer dizer que a sorte tá ao nosso favor, né?  

Quase no mesmo momento que eu iria respondê-lo, um esforço descomunal pareceu necessário para que eu conseguisse emitir qualquer som com a minha voz. O “sim” saiu quase inaudível, num gemido não codificável. Minhas pálpebras tremeram e um cansaço implacável pesou sobre mim. Burniel ficou turvo na minha visão, e sua voz pareceu longe, longe: 

Nath? Nath! 

Logo em seguida, ele mesmo ficou paralisado; como se o mesmo sono mortal tivesse se apossado também dele. Me utilizando da última força restante nos meus músculos, ergui a mão até a parte de trás do pescoço, onde o que parecia um dardo tranquilizante estava preso. Minhas mãos se abriram espasmodicamente e o celular despencou na água suja junto à única fonte de luz que tínhamos. Tentei lutar contra os efeitos, mas a química no sangue era indomável. Cai de joelho e de repente tudo estava escuro. 

 

***     

Demorei um tempo considerável até que conseguisse me lembrar com clareza o que estava acontecendo. Cogitei, em meio aos sentidos atordoados, que tudo o que vivi aqueles últimos meses não tinha passado de um sonho angustiante; e que ele tinha finalmente chegado ao seu fim. 

Até que, de repente, recobrando a lucidez, senti a realidade, o chão duro de cimento-queimado sob as costas e os odores infelizes que estavam impregnados na minha roupa. Ergui as costas e me sentei, esfregando os olhos e recuperando a visão. Alguns metros à frente, a pistola que tinha entregado ao Burniel, jogada no chão. Pouco distante à minha esquerda, o próprio, que parecia estar despertando do mesmo transe que o meu. 

Meus olhos escanearam o ambiente. Estava ainda muito confuso e ofuscado pelos diversos holofotes. 

Ah! Os holofotes... Agora eu sabia que lugar era aquele. Fazia muito tempo desde a última vez que estive ali. E como poderia me esquecer? Foi onde vi Melody pela última vez... Aquela passagem da biblioteca. A caldeira de reciclagem inativa da escola. 

Como tinha parado ali? E nós não estávamos quase cumprindo nosso objetivo? 

Quase como num choque com a lembrança, botei a mão no bolso da calça, ficando profundamente aliviado ao sentir o volume do pendrive ainda ali. Mas era muito inocente da minha parte achar que aquilo automaticamente resolveria as coisas. 

Pelo menos dez metros à minha frente estava o terceiro ocupante do cenário. Digo “cenário”, pois de fato era um. Tudo ali tinha sido montado, como uma cena teatral. Quem eram os espectadores eu não sei, mas o diretor da peça, com certeza, era Eleonora Shermansky. 

Demorei para reconhecer quem era aquela figura alta, larga, presa como se estivesse sendo crucificada, com punhos presos acima da cabeça. Levantei e rapidamente recolhi a arma do chão, erguendo-a na direção do terceiro coadjuvante enquanto seguia em sua direção. Quando estava suficientemente próximo, larguei o braço rente ao corpo, completamente arrasado, reconhecendo que aquela pessoa de roupas rasgadas e cheirando a sangue seco não era ninguém menos que…  

Jack! — berrei e voei em sua direção, tentando inutilmente arrancar as amarras de ferro dos seus pulsos.  

— Quem bom que você tá bem, moleque… — disse, enfraquecido, virou o rosto para o lado e cuspiu sangue no chão.

— Como eles te pegaram? O que eles fizeram com você?! 

— Tsc. — sorriu dolorosamente, os lábios inchados e roxos. — Eles só queriam me deixar um pouco manso. Sabiam com quem estavam lidando. 

— Escuta o que eu tô falando: Nós vamos botar todos esses desgraçados atrás das grades, Jack! — falava eufórico e enraivecido, enquanto analisava os arredores em busca de algo para quebrar as amarras de aço. — Eu consegui diversas provas. Tudo. Tá tudo em um pendrive. Todos os alunos desaparecidos realmente estão mortos. E foram mortos aqui, dentro da escola! Quando sairmos daqui vamos entregar tudo à Central e acabar com essa merda! 

Jack deu um risadinha nasalada, num tom sarcástico: 

— “Central”? Então você ainda não sabe de tudo…  

De repente, parei. Olhei pro seu rosto:

— Como assim? 

— A Central, moleque… ela é uma farsa. 

Balancei a cabeça, franzindo a testa e forçando um sorriso:

— O-o que você dizer com isso? 

— Quem comanda a Central é a própria Shermansky, moleque. As pistas que chegavam até nós, tudo, ela quem decidia. Estávamos só correndo atrás do próprio rabo.

Toda aquela ideia parecia tão absurda, mas, ao mesmo tempo, tão real, como se o destino risse da nossa cara. 

— Jack, não brinca com uma coisa dessas. 

— Não é brincadeira, não, moleque. — dizia com uma monotonia angustiante na voz. —  Estávamos sendo usados o tempo inteiro. 

Uma descrença e desesperança horríveis tomaram conta de mim naquele instante:

— Usados… pra quê? — perguntei, as palavras saindo com dificuldade. 

— Toda essa conspiração. Ela planejou um jogo. A carnificina… os alunos realmente estavam sendo motivados a cometer assassinatos. Essa é a verdade desde o começo, desde vinte anos atrás. Desde que a Agatha e outras pessoas desapareceram…      

Alguns metros atrás de onde eu estava, mais especificamente próximo do lugar onde acordei, estava o keypass que estávamos usando, com a tela piscando uma luz branca e emitindo um toque genérico de celular. Acredite, aquele keypass e aquela arma não estavam ali por engano; nem aquele pendrive no meu bolso. Eles não deixariam escapar de suas vistas nada que não fosse calculado. Tudo isso era parte daquele terrível espetáculo que Shermansky propunha.

Burniel encarou o aparelho de longe enquanto tentava, ainda meio zonzo, se levantar do chão para apanhá-lo.

— Espera. — falei. A voz facilmente ecoava por aquele cômodo como numa sala de ópera. — Pode ser uma armadilha.

Burniel me encarou chocado e obedientemente se sentou de volta no chão. 

Apertei o cão do revólver, girando o tambor e encaixando uma bala pronta pra usar. Andei até o aparelho, muito certo do que faria. A certa distância segura, parei e mirei o keypass. Tudo naquela ocasião era, de alguma forma, suspeito; o que me motivava a apontar a arma pra qualquer coisa que pudesse ser um perigo em potencial. 

— Tome cuidado, moleque... — se esforçou Jack em dizer. 

— Pode deixar. — respondi com os nervos à flor da pele e o dedo no gatilho, de costas para ele.

O rosto de Shermansky apareceu sob a tela, fazendo com que eu -- embora sem expressar -- me sobressaltasse. Parecia uma transmissão ao vivo, enquadrada de seu colo para cima, sendo possível ver Eleonora, sorrindo, com suas costas engolfadas sobre uma cadeira de escritório enquanto alisava os pelos de um cachorro deitado em suas pernas. Não consegui deter a dura e infeliz expressão que se fez em meu rosto autonomamente; o revolver continuava apontado para o keypass, pronto para estourá-lo caso fosse necessário. Reprimi minha ira com muita força de vontade, engolindo todas aquelas lembranças amargas sobre Melody, Jay, Amber; sobre todas aquelas fotos grotescas e aqueles crimes cruéis! Minha vontade era que o rosto digital de Shermansky fosse o próprio dela; se fosse o caso eu não me conteria em manter o gatilho solto. Mas naquele instante as coisas tinham de ser pensadas com muita cautela. Engoli minhas emoções e mantive a frieza na expressão. 

Aquele lugar, Jack aprisionado, a verdadeira identidade da Central -- estávamos mais encurralados do que nunca. Aparentemente, nossa única escapatória naquele instante era aceitarmos o jogo de Shermansky e jogar conforme as suas regras. 

— Primeiramente...  eu gostaria de parabenizá-lo. — disse ela. — Confesso que nunca imaginei que fosse chegar tão longe, Nathaniel. — sorria com uma naturalidade repugnante, digna dos psicopatas mais cruéis. 

Por quê? — o braço que segurava a arma começou a tremer. Senti meus músculos da face se enrijecendo, as sobrancelhas se torcendo numa expressão cheia de ira. Tantas perguntas preencheram minha mente que a frase não se completou; o simples questionamento sintetizava tudo o que eu poderia vomitar para fora naquele momento. 

Em efeito, o sorriso de Shermansky se alargou; como se as coisas estivessem se encaminhando conforme suas expectativas e ela não conseguisse conter uma empolgação que pulsava e transbordava do seu interior: 

— Você acha que as coisas precisam de um porquê?

— É claro. — respondi prontamente. 

Ela deu um risinho deliciado e se aproximou da câmera, apoiando seu cotovelo sobre alguma superfície abaixo do seu apetrecho de gravação e o rosto sobre seu punho.

— Eu gosto como você é um menino de princípios sólidos, Nathaniel. Sempre foi. Mesmo agora. — falou. — Seria um neto adorável.  

Me mantive em silêncio. Num gesto rápido movi a cabeça para o lado, captando Burniel, ainda sentado no chão, parecendo aflito, tenso dos pés à cabeça. Às minhas costas, Jack, crucificado em suas amarras e pensamentos, carregava no olhar o peso do que toda aquela situação significava para ele. Ele já tinha experienciado de todo tipo de crime e situação terrível; mas nada parecia pior do que algo que desafiava seu próprio passado. Também devia ter muito o que dizer, mas não o fazia; fosse pela tristeza, pelos numerosos machucados em seu corpo e rosto que dificultavam a fala, ou, simplesmente pelo cansaço, porque ele sabia que estava -- estávamos -- num beco sem saída. 

— Eu suponho que a essa altura você tenha se encontrado em muitas situações que botaram à prova todas essas suas convicções. — continuou Eleonora. — Ter que atirar em sua parceira, perder sua irmã e sua colega de trabalho, espionar colegas de classe, mentir, omitir, falsificar...  Você teve que sacrificar muita coisa por esse trabalho, não? Trabalho que você decidiu e insistiu em manter. — deu uma pausa dramática, afastando-se da câmera e voltando à posição inicial. — Escolhas são coisas difíceis, não acha? 

Ainda preferi guardar todas as minhas palavras pra mim. Queria ver onde aquele seu monólogo pretendia nos levar. 

— Se eu dissesse agora, por exemplo, — pausou por um instante para umedecer os lábios enrugados. — que você deveria escolher entre um desses seus companheiros para manter vivo?

Naturalmente imaginava que o que Shermansky havia acabado de dizer era mais uma das frases de efeito que ela adorava botar pra fora. Ela prosseguiu:

— Como você escolheria isso? Pela razão? Pela emoção? — riu. — Acho intrigante; ao mesmo tempo que é um intelectual, você também se comove fácil, e é tão racional quanto empático. O que acha disso? Um equilíbrio perfeito… ou um castigo? 

— Já acabou com as perguntas retóricas? — perguntei, ácido; meu braço ainda tremia, como se todo nervosismo que eu sentia tivesse se concentrado unicamente nele. 

Shermansky sorriu com as bochechas, ficando em silêncio. 

— O que é isso?! — o espanto de Burniel reverberou alto pelo cômodo. 

Bruscamente me virei em sua direção. O mecanismo em seu pulso, até então quieto, exibia uma contagem regressiva. Sete minutos

— Você sabe quantos amperes são suficientes pra transformar um humano em torrada? — Shermansky riu com uma cruel energia amistosa. — O cronômetro no pulso do Burniel é uma invenção minha; depois de ajustado é impossível de ser retirado sem o tratamento adequado. Quando a contagem acaba, ele dissipa pelo corpo do usuário exatamente o necessário de energia elétrica para fritar todos os seus órgãos. 

Burniel pareceu ter sido tomado por um pavor incontrolável, tiritando dos pés à cabeça. Os olhos cor de mel querendo pular pra fora de suas orbes.  

— A boa notícia... é que a contagem pode ser parada por você, Nathaniel. 

O desespero começou a me incendiar por dentro; porque eu começava a entender, finalmente, quem era o protagonista e qual era o enredo daquela medonha peça teatral. 

E Shermansky bradou como em incentivo:

—.Mate Jackelino!

Arregalei os olhos. Depois apertei as pálpebras uma contra a outra, franzindo a testa com força, e balancei a cabeça; como se quisesse evitar enxergar toda aquela situação angustiante. Minha respiração perdeu o ritmo. Queria chorar. 

— Vamos! Faça sua escolha!    

Os segundos do cronômetro pareciam um prego martelando meu cérebro. Esfreguei a mão na testa, colocando a franja pra trás. Respirei fundo. Até que gritei; gritei para o alto daquela imensa sala com todo o fôlego do meu pulmão, enquanto minha voz embargava:

— SUA MALDITA!

Me tremia tanto quanto Burniel; de medo, ira, tristeza, frustração. Era verdadeiramente como um daqueles pesadelos de infância, imobilizantes, que te fazem acordar chorando, fragilizado, e ir buscar segurança no colo dos seus pais. 

A única diferença ali, é que não se tratava de um pesadelo, tampouco de um sonho; era a realidade mais crua e viva possível. Sentia todos os meus nervos em pane, o suor escorrendo pelas têmporas e meu coração comprimido, afundado dentro do peito, consumido pela angústia. 

Nathaniel! 

Saí do transe imediatamente. Aquela era uma das poucas vezes que Jack me chamava pelo nome -- e ele bradou como nunca tinha feito; era uma mistura de autoridade e emoção, como um pai censurando o próprio filho pequeno. Olhei-o no mesmo momento, até que ele disse, quase que como uma súplica: 

— Por que ainda tem dúvida? — sorria, acorrentado, sangrando. 

Balancei a cabeça, negativamente: 

— Do que você tá falando, Jack? — meus olhos marejaram. Minhas emoções estavam completamente fora do meu controle. 

— Eu só sou um lobo velho, moleque. Já vi muita coisa nesse mundo. Vocês… vocês dois ainda são jovens. 

— Jack, para! 

Naquele momento eu já não conseguia mais raciocinar, tremia, e chorava convulsivamente. Burniel também parecia não saber onde depositar suas emoções; seu olhar alternava entre Jack e eu, como uma criança assustada.       

Eu odiava ter que concordar com Eleonora, mas em uma coisa ela tinha razão: o racional e a emoção sempre disputaram lugar na hora de definir minhas condutas. Nunca parecia haver um equilíbrio de fato; ou eu reagia completamente movido pelas emoções e depois me arrependia, ou assimilava os fatos de maneira totalmente insensível e era atormentado depois pela culpa. Naquele momento cheguei a levantar o braço -- porque algo na minha mente insistia em dizer “Burniel te traiu, ele não é confiável, ele foi cúmplice na morte da Jay”—-, mas logo interrompi o movimento -- porque sabia que não era capaz daquilo. Não, Burniel não tinha culpa pela Jay, ele não era um assassino, Jade sim. Eu sabia disso; sentia isso, acima de tudo. Eu não queria matá-lo e não queria vê-lo morrer. Simplesmente queria poder tirá-lo daquele lugar. Queria libertar tanto ele do seu passado, quanto eu dos meus pecados. 

Enquanto Jack… Jack era muito mais que um mero superior. Enxergava nele um amigo e um pai; assim como sabia que ele também sentia o mesmo em relação a mim e principalmente à Jay. E mesmo que ele parecesse complacente com a ideia de se sacrificar… o meu estômago simplesmente não digeria aquilo.    

Tem que ter um jeito! — bradei, histérico. 

E a contagem do cronômetro continuava a descer, com Burniel falha e desesperadamente tentando arrancá-lo de seu pulso por um tempo, até que desistisse, e escolhido simplesmente ficar naquele estado inerte, com as mãos no joelho enquanto olhava para o chão. 

— Garoto! — Jack novamente chamou minha atenção. — Eu não vou mentir e dizer que não gostaria de ter mais tempo-

— Jack, por favor, não começa… — balancei a cabeça, exausto.

Me escuta, MERDA! — bradou, as correntes acima de si se mexendo, e eu prestei muita atenção nos seus olhos. — Vocês dois são jovens, tem muita coisa boa pra viverem ainda, e… agora sabem de toda a verdade! 

— Mas, Jack-

— Sobrevivam! E se libertem! Pela Jay e por todas as outras vítimas desse mundo. Libertem-se e vivam sem qualquer peso do passado! Acertem o que precisarem acertar, e sejam sinceros com vocês mesmos, sempre!

Eu me debulhava feito uma criança nas próprias lágrimas. O tempo não parava. E isso era cruel demais. 

Quando Jack disse aquilo com tanta propriedade, na sua forma de general de sempre, mas com uma expressão tão emotiva e sincera, eu percebi que ele mesmo, naquele momento, tinha conseguido sua libertação. Descobrir toda a verdade sobre o esquema parecia tê-lo, de alguma forma, libertado do seu passado mal resolvido com Agatha Cotton; como se a resposta que ele sempre temeu buscar tivesse sido justamente a peça que faltava dentro dele.        

O tempo não parava, mesmo. Nem a vida, nem o cronômetro. 

Olhei pro lado oposto enquanto sentia as lágrimas, amargas, descerem uma após a outra, e ergui a arma com os braços trêmulos. 

— Jack, me perdoa. Por favor. — sussurrei. 

Eu não vi sua expressão. Apenas fechei os olhos com força e pressionei o gatilho.

Era a segunda vez que eu matava alguém naquele mesmo lugar. O estouro da bala ecoou por todos os cantos. O cronômetro tinha desligado nos últimos 40 segundos. 

Cai de joelhos no chão, sem forças pra segurar o peso do próprio rosto. 

A voz de Shermansky falou às minhas costas, vindo do keypass: 

— E mesmo assim, você manteve seus princípios até o final. Estou...  impressionada. 

A transmissão desligou. E um silêncio angustiante inundou aquele ambiente horrendo. 

Eu não pensava em matá-la. Também não sentia vontade de praguejar, nem de gritar ou de chorar. Naquele momento, exausto, com os olhos fixos no chão, a única coisa que eu desejava era a minha própria morte.


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